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    Três dias depois, o Nokia finalmente avistou Truman. Não havia torres de vigia, nem portos de pedra, nem o cheiro de fumaça de um reino em guerra. O que havia era verde. Um verde profundo, úmido, denso como musgo velho em troncos antigos. A ilha surgia do mar como se tivesse sido esquecida pelo tempo, com árvores que pareciam tocar o céu encoberto de nuvens baixas. As copas formavam um manto contínuo de folhas grossas, onde a luz do sol mal conseguia se infiltrar.

    Dante se encostou no parapeito do convés, os coturnos cobertos de sal, e ficou observando enquanto o casco do Nokia, com seus buracos mal remendados e as velas chamuscadas, rangia nas águas calmas que cercavam a ilha. Não havia ondas ali, só um silêncio úmido, como se até o oceano tivesse medo de fazer barulho perto de Truman.

    — Finalmente — disse Miatamo, com a voz baixa, como se tivesse medo de ser ouvido pelas árvores.

    A aproximação não se deu por um canal aberto ou um ancoradouro seguro. Eles entraram num labirinto de raízes que brotavam diretamente do mar, galhadas grossas como braços de gigantes mortos. O leme foi entregue a um rapaz magro, que fazia sinais para os homens nas velas, enquanto Miatamo e Guaca ficaram na proa, atentos, como se esperassem uma flecha atravessar a garganta de alguém a qualquer momento.

    Dante seguiu até eles. O ar ali era pesado, cheio do cheiro de madeira molhada e flores apodrecidas.

    — Ninguém vai nos receber? — perguntou, apertando os olhos para enxergar através da névoa rala que subia do mar.

    Guaca deu de ombros.

    — Se nos viram chegando, vão esperar a gente descer. Truman não é lugar de pompas.

    Não era, pensou Dante. Truman era um segredo, um desses lugares que não gostavam de ser encontrados. E agora, pela primeira vez em muitos anos, eles tinham vindo até ela. Não para negociar, mas para pedir ajuda.

    Chegaram a um pequeno cais de madeira, nada mais que toras presas por cipós trançados, que balançava suavemente com o peso das marés. Não havia guardas. Nem homens, nem flechas, nem bandeiras. Só silêncio.

    — Deixem o navio com quatro homens. O resto vem comigo — ordenou Miatamo, com a autoridade de quem sabia o risco de colocar o pé em terra desconhecida.

    Dante foi o primeiro a descer. O som do impacto das botas sobre a madeira reverberou, e ele se perguntou se alguém, acima deles, ouviria. Talvez estivesse. Não demorou para que percebessem o que antes não tinham visto: as casas, suspensas no alto das árvores, quase quarenta metros acima de suas cabeças. Havia centenas delas, talvez mais, construídas entre os galhos como ninhos de aves antigas. Algumas pareciam pequenas fortalezas de madeira escura, outras eram simples plataformas cobertas por folhas e lonas feitas de fibras trançadas. Cordas e pontes suspensas conectavam uma casa à outra, tecendo um emaranhado que parecia tão vivo quanto a própria floresta.

    O mais estranho eram as luzes. Pequenos globos pendiam dos galhos e das pontes, pairando imóveis. Brilhavam com um tom âmbar, suave e morno, mas sem fogo, sem fuligem. Como se fossem pedaços de luar engarrafado.

    Dante sentiu um arrepio subindo pela coluna.

    — Bonito — murmurou.

    — Bonito… até você tentar subir sem permissão — disse Porto, com a voz baixa. — A última vez que alguém fez isso, jogaram o corpo de volta. Sem a cabeça.

    Guaca fez sinal com a mão, chamando a atenção. Um som surgiu do alto: o estalar de madeira, o ranger de cordas. Eles estavam sendo observados.

    E então, eles desceram.

    Eram homens e mulheres de pele escura como casca de nogueira, com roupas feitas de couro fino e tecidos rústicos, mas bem trançados. Cada um trazia um arco recurvado nas costas e adagas nos cintos. Tinham olhos afiados, atentos, e se moviam com a calma de quem está em casa — e sabe que quem chega de fora está à mercê de suas leis.

    Um deles, mais velho, com tatuagens serpenteando os braços, parou à frente de Dante e dos outros.

    — São bem-vindos a Truman… se forem dignos de entrar — disse, em um tom sem calor nem ameaça, apenas constatação. Seus olhos varreram o grupo como se fossem lâminas.

    Miatamo cruzou os braços sobre o peito.

    — Viemos falar com o Conselho. Em nome de Bulianto.

    Houve um silêncio depois daquelas palavras. Os olhos dos nativos brilharam de forma estranha, como se tivessem ouvido o nome de um deus morto.

    — Bulianto está morto — disse o velho, simples.

    A notícia tinha corrido mais rápido do que Dante imaginou.

    — E por isso estamos aqui — respondeu Dante. — Para impedir que morram mais.

    O homem encarou Dante, e então se virou sem mais uma palavra, caminhando até uma das pontes de corda que subia em direção às árvores. Os outros arqueiros fizeram um gesto para que os seguissem.

    Guaca suspirou fundo.

    — A pior parte não é escalar… é subir e não saber se vão cortar a corda quando você estiver no meio.

    Dante deu um meio sorriso.

    — É por isso que eu não confio em cordas.

    Começaram a subida. As cordas eram firmes, mas balançavam ao menor movimento. O cheiro da seiva era forte, misturado ao de flores estranhas que brotavam das rachaduras nas cascas. Dante subia com cuidado, mas olhava para baixo sempre que podia. O Nokia parecia pequeno dali, um brinquedo preso entre raízes. A floresta engolindo tudo ao redor. E ele soube, com um peso no peito, que se algo desse errado… ninguém viria buscá-los.

    Chegaram a uma grande plataforma circular, onde o Conselho de Truman os aguardava. Sentados em cadeiras talhadas nos próprios troncos das árvores, sete homens e mulheres, com mantos verdes e dourados, fitavam-nos com a mesma expressão de quem avalia um animal para saber se vai servir para caça… ou para montaria.

    Miatamo parou ao lado de Dante.

    — Agora é com você, Capital. Tente ser um pouco cortês, mostrar nossa situação. Trabalha melhor a palavra do que a gente.

    Dante puxou o ar fundo, tragou o gosto de folhas velhas e esperança quebrada. Então, avançou.

    — Viemos propor uma aliança — começou. — Ou, pelo menos, evitar uma guerra que ninguém vai ganhar.

    As folhas sussurraram ao redor, mas não era o vento.

    Era Truman ouvindo.

    Quando se aproximou, o Conselho se mexeu na cadeira, incomodado com a postura aberta dele. Dante não era um inimigo, não mais do que Bastardo ou Bulianto foi um dia.

    — E quem é o homem que fala pela tripulação do Nokia? — A voz partiu do homem ocupando a cadeira do meio. O único com uma tipo de cajado de madeira, as raízes ordenando-se no interior, lembrando muito a habilidade que Cloud possuía. — Não me recordo do seu rosto.

    Dante curvou a cabeça em sinal de respeito, levantando em seguida.

    — Eles me chamam de Capital. Venho de um lugar distante demais. Salvo pelos homens que ocupam o Nokia agora, esperando uma oportunidade para defender o que pode ser tirado do antigo Rei do Leste.

    — Capital… — o nome soou como um preságio. — Esteve presente na morte de Bulianto?

    — Eu… — Dante parou. — Não vi como ele morreu, senhor.

    — Não viu o Rei morrer, mas carrega a palavra de todos os que estão nas suas costas. Um fardo e tanto. O que te torna especial para vir até nós, pedir ajuda e afirmar que nem mesmo observou a morte do Rei?

    Seu tom não era amigável.

    — Porque sei que se o Bastardo chegar até aqui, então não será só o Rei quem vai estar morto.

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