Capítulo 275: Planos Interrompidos
A noite havia se assentado como um manto pesado, e a única luz que lhes restava vinha das lanternas âmbar penduradas ao longo das plataformas suspensas. Os olhos de Dante haviam se acostumado à penumbra, mas, ainda assim, ele se pegava atento demais, como se as sombras escondessem inimigos. Ou pior: velhos amigos prestes a cravar-lhe uma adaga nas costas.
Foi então que um dos trumanos se aproximou. Os passos leves demais para alguém com carne e osso, como se fosse uma extensão das próprias árvores. A mulher parou diante deles, envolta em um manto feito das fibras da própria floresta, o capuz ocultando-lhe o rosto.
— O Conselho aguarda — disse ela. A voz era um sussurro.
Estavam todos reunidos no mesmo recinto. Dante trocou um olhar breve com Guaca. Porto se ergueu com uma lentidão que sugeria desconfiança, a mão ainda no cabo da adaga curta à cintura. Miatamo foi o último a se levantar, mas quando o fez, parecia um tronco arrancado da terra.
O caminho até o centro do Conselho não foi longo, mas parecia que a madeira sob seus pés afundava um pouco mais a cada passo. As plataformas se alargaram, formando um círculo amplo, com bancos entalhados diretamente dos galhos vivos. As árvores ali não eram apenas velhas: eram ancestrais. Suas cascas brilhavam num tom dourado esverdeado, e seus galhos entrelaçados formavam um teto natural. Dezenas de trumanos estavam ali. Alguns sentados, outros de pé, e todos em silêncio absoluto.
O Conselho era composto por sete anciões. Cada um parecia esculpido no tempo, com peles enrugadas e olhos cinzentos que não piscavam. Ao centro, havia um altar baixo onde queimava uma chama azulada, lançando sombras frias sobre os rostos impassíveis.
Foi a mais velha que falou, embora sua voz fosse firme como um tronco que não cede à tempestade.
— Vieram pedir abrigo. Vieram pedir ajuda. Mas, trouxeram consigo a própria calamidade.
Ninguém respondeu de imediato. Dante sentiu a garganta seca. Guaca se adiantou, ajoelhando-se de um jeito cerimonioso.
— Não buscamos trazer guerra. Fugimos dela.
O velho ao lado dela inclinou a cabeça, sem demonstrar emoção.
— Não se foge da guerra carregando sua semente nos ombros. Nem mesmo quando sabem o peso das consequências de suas ações. Com Bulianto morto, o mar não é mais um lugar seguro. Toda a parte Leste do Oceânico Polar I está em risco. Agora, mais do que nunca, devemos nos proteger, mas não aos intrusos que causaram a morte do antigo Rei.
Miatamo apertou os punhos, e Porto deu um meio passo para frente antes que Dante o segurasse pelo ombro. Ele respirou fundo, deu um passo à frente e falou.
— Dizem que a guerra é uma besta sem dono. Nós a domamos por um tempo. Agora tentamos deixá-la para trás.
A anciã pousou os olhos nele, perscrutando-o como se cavasse a alma por dentro de seus ossos. Então, ela ergueu uma das mãos enrugadas e, de algum lugar, surgiu uma corrente de cipós grossos, arrastando algo pesado.
Era Nekop. Amarrado. Desarmado. Os olhos ainda turvos do golpe que levara antes de subirem ao platô. Ele estava desacordado, respirando com dificuldade.
— Ele é o preço.
As palavras caíram como um raio seco em uma noite sem tempestade.
— O Bastardo deseja o Anão. Não apenas por ódio ou vingança. Ele sabe algo que nós não sabemos — continuou a anciã, sem pestanejar. — Entreguem-no. Salvem Truman. E a vocês.
— O Anão deveria estar no navio — comentou Dante. — Como…?
— Nossos andarilhos são mais fortes, melhores e sabem como utilizar essa terra. — Outro Ancião disse, erguendo seu cajado. Esse era o homem que centava bem no centro. — O Anão carrega o desejo do Bastardo. Para nos poupar, precisamos entregá-lo.
O silêncio que se seguiu foi como uma faca pressionada contra a pele, sem saber se iria cortar.
Guaca ficou imóvel. Porto deu meio passo para o lado, olhando para Dante com a expressão de quem esperava um comando que não queria ouvir. Miatamo apenas encarava o Anão, como se calculasse se aquele peso valia mais morto ou vivo.
Dante respirou devagar. Passou os dedos pela barba curta e áspera, sem conseguir tirar os olhos de Nekop. O Anão. Um homem pequeno demais, aterrorizado porque era o único alvo que Bastardo queria vivo.
Mas, a Vanguarda inteira não aceitava isso.
— E depois? — Dante perguntou, a voz baixa. — Depois de entregá-lo? Acham que o Bastardo vai parar? Ele vai olhar pra essas árvores, pra essas casas, e decidir que são suficientes?
A anciã não respondeu. Mas a chama azul crepitou mais forte, lançando sombras que pareciam dentes famintos.
Porto cuspiu no chão de madeira, o som seco ecoando.
— E se não entregarmos? — Miatamo questionou, como um trovão surdo.
— Então, Truman cairá — disse outro ancião. — E com ela, todos que aqui se escondem.
— Nekop é um dos nossos. Foi um dos que serviu com Bulianto. — Porto ergueu a voz, irritado. — Nós deixamos um homem morto naquele convés, mas não vou deixar nenhum dos meus vivo aqui.
E antes que mais fosse dito, algo aconteceu.
Primeiro, foi um som. Um estalo seco, como madeira se partindo ao longe. Depois, um grito. Não humano. Algo agudo, cortante, que fazia o sangue gelar nas veias. Os trumanos ergueram a cabeça todos ao mesmo tempo, como se fossem uma única criatura.
O céu sobre as árvores piscou em laranja e vermelho. E, então, a fumaça veio. Não a fumaça fina de incenso e ritual. Era densa. Preta. E fedendo a carne queimada.
— Felroz — sussurrou Guaca, os olhos arregalados.
As bestas voadoras mergulhavam por entre as copas das árvores, asas de couro batendo com violência. Cada uma cuspia fogo das mandíbulas pontiagudas, lançando chamas azuis que se prendiam às folhas e às construções como se fossem resina ardente. As casas nos galhos mais altos já estavam em chamas. Pessoas gritavam, correndo pelas pontes, empurrando-se, saltando para redes abaixo enquanto os Felroz mergulhavam de novo e de novo.
Um dos anciões se ergueu, a voz cortando o caos ao redor.
— Defendam Truman! — Mas já era tarde para ordem.
Um Felroz explodiu no meio da plataforma, quebrando galhos e lançando estilhaços de madeira em todas as direções. A explosão jogou todos para trás, incluindo Dante. As chamas azuis e roxas incendiaram a madeira como se fosse óleo, se estendendo por todos os cantos.
Dante ficou caído, com Porto ao lado, segurando Nekop. O Anão tinha rolado até a beirada, e sua corrente foi segurada. O corpo dele pendeu no meio do ar, soltando um berro.
— Me tirem daqui, cacete. Eu não sei voar.
Miatamo correu até ele e pegou a corrente, puxando com um braço só. O pequeno homem foi colocado sentado, arfando enquanto os demais estavam sujos de fuligem, e palha queimada.
As chamas tocavam o topo das copas, acendendo as casas ao mesmo tempo as criaturas passavam em rasante. Dava para ver alguns disparos feitos do solo. Dante reparou, por um segundo, que um dos trumanos carregava uma espécie de arma de longa distância, parecida com o que Marcus utilizava.
E no momento seguinte, uma bola de fogo explodiu sua posição. O grito de dor e morte se espalhava entre os homens e mulheres.
— Pra onde vamos? — gritou Guaca com sua espada desembanhada, olhando para todos os lados. — Não podemos voltar para o navio. Vai atrair essas coisas.
— Não pra acertar eles — respondeu Miatamo segurando a corrente com Nekop preso. — Cacete, Nekop, como eles te pegaram?
— Deixa isso pra depois. — Dante gritou. As pontes já ruíam, e o fogo fazia o ar vibrar. Um Felroz passou baixo, quase lhe arrancando a cabeça com as garras.
Eles abaixaram todos, fugindo do ataque. Mas, era só mais um dos que voavam ao redor.
Não viam mais o Conselho ou qualquer um dos lutadores. Eles haviam corrido, pra dentro da grande casa atrás ou no meio das chamas? E eles não pareciam tão abalados com aquela chegada.
— Vamos nos mover — anunciou Dante apontando na direção de uma das pontes em chamas. — Se eles perceberem o Nokia no mar, vamos perder tudo.
— E o que vamos fazer? Só correr?
Dante respirou fundo. Ele podia…
A ideia era idiota, mas não custava tentar.
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