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    Dante ainda estava ali, encostado na lateral da cabana onde a mulher o havia deixado. O cheiro da fumaça entranhava suas roupas, a madeira ao redor parecia absorver o calor dos incêndios que ainda ardiam à distância. Ele ouvia vozes abafadas lá dentro, palavras sussurradas como promessas ou condenações, mas não conseguia distinguir o conteúdo.

    O tecido da entrada, uma trama rústica de fibras e couro curtido, foi puxado de lado com um gesto seco. A mulher surgiu outra vez, de olhos estreitos e quietos. Ela parou ali, sem falar, só o fitando como se ainda ponderasse se valia a pena perder tempo com ele. Como se, a qualquer instante, pudesse simplesmente deixá-lo ali, no escuro.

    Depois de um longo momento, fez um sinal breve com a cabeça, um convite que parecia mais uma concessão do que um gesto de boa vontade.

    Dante não discutiu. Seguiu atrás dela, o peso das botas abafado pelo chão de terra batida.

    A cabana era simples, rudimentar até, mas havia nela um sentido de permanência difícil de ignorar. As paredes eram um círculo apertado de estacas firmemente fincadas, unidas por cordame grosso e cobertas de barro seco, que rachava em veios finos como cicatrizes velhas. O teto era baixo e em forma de cone, feito de folhas ressequidas e palha trançada.

    No centro, um tapete desbotado de peles costuradas abrigava um braseiro, onde brasas ainda ardiam em um vermelho morno, lançando um brilho fraco nas faces que habitavam as sombras. Havia mais pessoas ali. Três, talvez quatro. Nenhum deles se moveu quando Dante entrou, mas seus olhos o seguiram. Havia julgamento naqueles olhares. E uma certa aceitação de que, se ele morresse ali, ninguém sentiria falta.

    A mulher sentou-se com as pernas cruzadas diante do braseiro, o gesto fluido, quase ritualístico. Bateu a mão aberta no tapete ao seu lado, um convite para que ele fizesse o mesmo.

    Dante se abaixou sem pressa, as juntas doendo no silêncio, e cruzou as pernas, as costas retas. Manteve uma mão próxima à adaga, mas não à vista.

    — Então, como vai ser? Vai me explicar agora? — A voz dele era controlada, mas a firmeza estava ali, feita de aço temperado.

    Ela não respondeu logo. Preferiu olhar o fogo por um tempo, os olhos refletindo a dança lenta das chamas. Quando enfim falou, foi como se estivesse começando de longe.

    — Você conhece Bulianto?

    O nome parecia carregar o peso de um martelo batendo em um escudo. Dante deixou a mão fechar aos poucos sobre o joelho, sentindo o couro ranger sob a pressão dos dedos.

    — Conhecia — respondeu. A palavra ficou suspensa no ar. — Lutei com ele. Poucas vezes. Mas, não estive quando ele precisou. Era um bom homem. Foi ele quem me libertou quando achei que ficaria preso por muito tempo.

    Um traço vago de sorriso cruzou os lábios dela. Não durou muito.

    — É sempre assim com reis de verdade.

    Dante não corrigiu, nem provocou. Apenas olhou para ela com atenção renovada.

    — Você era dele? — perguntou, já sabendo a resposta.

    — Sou dele — corrigiu, e dessa vez havia algo quase religioso em sua voz. Não fervor, mas convicção fria. — Bulianto nos deu abrigo. Quando Truman caiu pela primeira vez, foi ele quem mandou içarem de novo. Ele ensinou a cidade a viver nas raízes, porque sabia que os galhos cedem ao peso da ganância. Aqui embaixo, a cidade não desaba.

    Dante passou os olhos pelas sombras ao redor. Nenhuma das figuras se moveu. Estavam todos ouvindo.

    — E agora que o rei morreu? — Dante tornou, olhando de volta para ela. — O que ele mandou fazer?

    Ela inclinou a cabeça para o lado, como quem examina um objeto que ainda não decidiu se vale ou não o esforço.

    — O que foi combinado — respondeu, como se fosse óbvio.

    Pensou em esperar o resto da resposta. Mas não era um homem paciente.

    — Que acordo? — insistiu.

    Ela respirou fundo.

    — Bulianto escondeu as Pedras Lunares no Nokia.

    O impacto da frase não precisava ser encenado. Dante ficou imóvel, os olhos fixos nela, como se tentasse decifrar onde terminava a verdade e começava a armadilha.

    — Claro que escondeu — disse enfim, e um riso curto, sem humor, escapou de sua garganta. — Por isso ele pediu que viéssemos pra cá. Mas… se as Pedras estavam no Nokia, por que ninguém as encontrou?

    Ela abriu a mão, os dedos ásperos e cobertos de cicatrizes expostos à luz fraca.

    — Porque o Nokia nunca ficava aqui. Nem por muito tempo. Quando aportava, era sempre em águas profundas, longe das docas. No mar, o Rastro se perde. Em terra firme, não.

    Dante entendeu.

    — O cheiro da Pedra chama coisa demais. Homens, monstros… e piores.

    Ela assentiu devagar.

    — As Pedras Lunares deixam uma trilha, como sangue fresco na neve. O Bastardo sente. Os homens do Glossário sentem. E há… outros.

    — Os Felroz — complementou, lembrando as chamas caindo do céu.

    Ela ergueu os olhos.

    — Eles são só um começo.

    Por um instante, ninguém falou. Só o crepitar das brasas preenchia o espaço entre eles.

    — Bulianto queria manter Truman segura — a mulher prosseguiu. — Era o último acordo dele com a cidade. As Pedras ficavam longe. O Nokia vagava. Truman prosperava.

    Dante passou uma mão pela barba curta.

    — Mas agora o Nokia voltou. E o Rastro com ele.

    — E Truman vai cair de novo — completou ela, sem hesitar. — Ou o navio parte outra vez… ou as Pedras são enterradas em outro lugar.

    Ele suspirou devagar, os olhos fixos no fogo. A tripulação inteira no mar novamente.

    — O Nokia sumiu — disse por fim. — E Nekop foi junto.

    Ela ergueu o queixo.

    — Então vá atrás.

    — Acha que é fácil assim?

    — Não importa se é fácil — respondeu, fria como pedra de rio. — Só importa que, se não for agora, será nunca mais.

    Ficou em silêncio por um tempo, os músculos tensos. Depois, ergueu o olhar.

    — Parece que sabe para onde ele foi. Me fale, garota.

    Ela não respondeu rápido. Pegou uma pequena bolsa de couro presa à cintura, ergueu e jogou para ele. Dante a pegou no ar. Dentro, pequenas pedras negras tilintavam baixinho, e ele sentiu um leve calor no toque, como se tivessem vida própria.

    — Quando o vento mudar, siga o cheiro da seiva — disse ela. — Eles sempre voltam para a Raiz das Águas

    Dantefechou a mão sobre a bolsa, respirando fundo.

    Ela olhou para a porta da cabana, depois de volta para ele.

    — Amanhã, os caminhos fecham. Se for, vá agora.

    Ele se ergueu com um rangido discreto das juntas. Antes de sair, Dante virou-se, com uma pergunta ainda em sua mente.

    — Ainda não me disse qual seu nome.

    Ela hesitou um instante.

    — Lira.

    — Se eu morrer tentando achar o Nokia, Lira… reze por mim.

    — Não rezamos aqui.

    Dante sorriu de lado.

    — Então lembre-se de mim… quando Truman afundar de vez.

    Ela não respondeu. Mas seus olhos o seguiram até ele atravessar a porta e desaparecer nas sombras úmidas da floresta.

    Sozinha, com a fogueira e as sombras ao redor, uma das figuras se moveu das sombras. Lira estremeceu ao sentir o toque em seu ombro do jovem Palho.

    — Acha que fez certo em dizer tudo isso para um estrangeiro?

    — O Rei proferiu a ordem. — As chamas da fogueira clarearam seus olhos. — Assim que sua morte fosse anunciada, um homem aparecia para se juntar a morte. O Rei… morreu.

    As palavras começaram a falhar em sua garganta, e sem perceber, seu olho esquerdo deixou cair uma lágrima.

    — E o homem apareceu.

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