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    O cheiro vinha com o vento.

    Dante parou no alto da escarpa e inspirou devagar, olhos semicerrados. Havia algo ali. Não era o cheiro de lenha queimada nem de terra molhada, nem o mofo das cavernas subterrâneas de Truman. Era algo mais doce, denso. Como resina quente misturada com sangue novo. Ele sentiu o gosto amargo na boca. O gosto da seiva.

    Desceu pela encosta, um pé depois do outro, sem pressa. A vegetação se fechava ao redor, galhos retorcidos como costelas, folhas quebradiças rangendo sob as botas. Ele se movia baixo, o corpo inclinado para frente, atento ao som dos próprios passos e ao silêncio à volta. O céu estava escuro, e as nuvens, grossas, apagavam o brilho das estrelas. Era como caminhar dentro de um túnel de sombras.

    O cheiro ficava mais forte. O vento trazia rajadas esporádicas, e com elas, Dante sentia um frio subindo pela espinha, como se algo invisível roçasse os ombros.

    Ele passou por uma clareira onde o solo afundava em um círculo de lama escura, marcada por pegadas antigas. Parou, analisou os sinais. Homens. Pelo menos seis. Botas pesadas, padrão militar. Ele se agachou e tocou a terra. Ainda úmida do peso deles. Recentes.

    Dante prendeu a respiração e ergueu a cabeça. O cheiro estava ali. Mas havia mais alguma coisa misturada: o cheiro de óleo de arma, de couro encharcado de suor. De metal frio.

    Esses eram os homens que Lira havia mencionado antes? Não tinha muita certeza.

    Ele deslizou entre as árvores, mantendo-se fora de vista, os sentidos aguçados. Mais adiante, a luz trêmula de tochas perfurava a escuridão. O som de vozes abafadas chegou até ele, uma conversa curta e ríspida, cheia de ordens secas.

    Dante se aproximou com cuidado. As silhuetas começaram a surgir. Sete homens em armaduras escuras, símbolos do Glossário pintados sobre o peito — aquele olho torto atravessado pela linha branca, como uma cicatriz. Um deles estava abaixado, estudando o chão. Outro segurava uma espécie de aparato mecânico, um arco de metal com hastes vibrando em tons baixos, como um instrumento desafinado.

    — O cheiro é forte aqui. — O que estava de joelhos falou baixo, mas Dante ouviu. Sua voz parecia um grão de areia raspando em pedra. — O Rastro não mente.

    — O Bastardo vai querer confirmação antes de mover a frota — respondeu outro, alto, de ombros largos. Devia ser o comandante. — Não vamos chamar reforços até ter certeza.

    Dante conteve a vontade de recuar. Eles estavam rastreando as Pedras. E estavam chegando perto.

    — O que acha? — perguntou o homem de ombros largos ao que manipulava o aparelho metálico.

    — O sensor está instável — respondeu o técnico, ajustando pequenos discos na base. — Mas os impulsos são claros. Algo pesado passou por aqui… algo que não pisa em terra firme há muito tempo.

    — O Nokia. — O comandante não perguntou. Afirmou.

    Dante sentiu o estômago revirar. Ele olhou para onde os homens estavam concentrando a atenção: um pequeno declive que descia em direção ao rio. Havia marcas profundas na lama. Trilhas largas demais para botas. Pareciam… escamas. Ou placas metálicas.

    — Preparar equipes de descida — ordenou o comandante. — Se o casco do navio encalhou, quero os engenheiros lá antes do amanhecer.

    Os homens se moveram com precisão automática, como engrenagens bem cuidadas. Dois começaram a montar um guincho portátil; outros três verificaram as armas, rifles curtos de cano largo, munidos com cápsulas que Dante sabia que não eram convencionais. Eram feitas para lidar com coisas maiores que homens.

    Ele observou mais um pouco, avaliando as opções. O cheiro de seiva estava impregnado no lugar. Fortíssimo. A ponto de embrulhar o estômago. Se ele sentia aquilo, outras coisas também sentiriam.

    Dante se moveu devagar para a lateral do terreno, tentando encontrar um ponto mais alto para observar melhor. Subiu em uma árvore de galhos retorcidos, cada movimento feito em silêncio absoluto. Quando se agachou sobre um tronco grosso, viu além da equipe: lá embaixo, no fundo do vale, algo cintilava sob a névoa baixa.

    O casco negro do Nokia. Meio enterrado no lodo. Metade do navio parecia uma criatura morta. Mas o brilho azul-escuro que escapava de algumas fissuras mostrava que estavam em funcionamento.

    Agora, Dante entendia como o navio tinha salas mais espaçosas do que quando ele deveria. Como os refeitórios mantinham a qualidade. A Pedra Lunar, a mesma pedra que ele conhecia de Kappz, não era somente de lá.

    E o Glossário já sabia disso também.

    Dante fechou os olhos por um segundo, respirou fundo, e sentiu o ar vibrar.

    Não estava sozinho.

    Algo se mexeu no limite da clareira, entre ele e os homens do Glossário. Uma sombra diferente das outras. Não humano. Dante reconheceu antes de ver: Felroz.

    O caçador de Pedras.

    Os homens do Glossário não tinham visto ainda. O Felroz avançava em silêncio absoluto, cada passo como névoa se derramando sobre o chão. A criatura se ergueu parcialmente quando chegou à beira da luz das tochas, uma forma alta, esguia demais para ser natural, com membros alongados e uma pele sem cor, translúcida, como se fosse feita de uma cera suja.

    Dante sentiu o instinto gritar. Mas não era o momento de agir. Se se movesse, seria visto. Se ficasse, seria caçado.

    Ele observou o Felroz se aproximar de um dos soldados, que ainda ajustava o guincho. O homem não viu nada. Não até o último segundo, quando a mão pálida atravessou a luz da tocha e agarrou sua garganta. Um estalo seco. O som de osso quebrando, limpo.

    O corpo caiu sem barulho.

    O Felroz largou o cadáver e avançou para o próximo.

    Dante sabia o que vinha. Caos.

    O comandante berrou uma ordem quando viu a criatura, mas já era tarde demais. O Felroz estava no meio deles, e a clareira virou um matadouro. Gritos abafados, disparos surdos, o cheiro de sangue e pólvora se misturando ao da seiva.

    Dante desceu da árvore em um salto controlado e se moveu em direção ao declive. Não podia perder o Nokia de vista. O caos do ataque do Felroz era sua única chance.

    Mas ele sabia… haveria mais deles.

    O Rastro estava forte demais.

    Ele correu, deslizando pela lama, e não olhou para trás. Usou as duas mãos para trás, expulsando o ar e criando mais velocidade. Passou por todos eles, recebendo olhares advertidos, e também da criatura que tinha somente mais um alvo em mente.

    Dante não queria ficar pra descobrir do que ela era capaz. Estava esgotado desde cedo, desde a última semana. Não poderia simplesmente se dar o luxo de morrer. E Lira, mesmo falando com tanta pompa, não seria a pessoa a contar uma profecia sobre morte para ela seguir.

    Quando se aproximou do casco do Nokia, jogou os pés para frente, caindo de costas na lama, ainda de braços esticados para trás. O jato aumentou, expulsando mais ainda, forçando seu corpo até o limite.

    Aqueles 1% sendo gastos a todo segundo. Sua carne e carne pulsando em dor.

    Ele chocou os dois pés contra o casco, criando um imenso choque. A pressão mexeu com o terreno inteiro.

    O Felroz e os soldados lá de cima pararam ao sentir o tremor, virando para baixo. Suas cabeças seguiram na direção do humano que usava sua perna e braços para forçar um navio inteiro na direção da corrente do mar.

    — Parem aquele desgraçado — a ordem do Comandante mudou da água pro vinho. — Alguém, agora, pare aquele maldito.

    A criatura brandiu um dos braços, batendo contra um dos soldados, o enviando floresta a dentro. E se jogou no meio do declive de lama. O Comandante rapidamente a seguiu, pulando junto, se misturando na descida.

    Dante olhou para trás, vendo os inimigos de antes se tornarem aliados apenas porque ele queria fugir.

    — Ah, merda. Por que essas porras só acontecem comigo?

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