Capítulo 283: Propulsor?
Ele ouviu os estalos antes de ver.
O navio rangeu outra vez, e o Felroz atirou-se à frente com uma explosão de músculos disformes. Dante girou o corpo instintivamente, usando o jato de ar para erguer-se do casco e saltar, evitando por um fio o tentáculo que estraçalhou a amurada onde ele estivera um segundo antes.
Caiu ajoelhado, uma onda de dor subindo pela coluna. E antes que pudesse reagir, o Felroz veio outra vez.
Foi então que ouviu o grito.
— Capital!
O rugido era de Miatamo, e veio acompanhado de um baque forte no convés às suas costas. O brutamontes se lançou para frente, uma maça de guerra presa ao braço direito. Ele bateu com tudo no tentáculo que tentava envolver Dante, fazendo a carne da besta explodir em lascas púrpura.
— Levanta, velho desgraçado! — Miatamo rosnou, estendendo uma mão para puxá-lo de volta à posição. — Se vai morrer aqui, pelo menos faz com pose!
Dante deu uma risada gostosa ao ver o seu colega.
— Eu tentei, mas ele não queria deixar.
Dante aceitou a ajuda sem responder, levantando-se como uma dobradiça enferrujada. Mais sons vieram atrás deles. Correria. Madeira sob botas.
— Cuida do flanco — berrou Porto, surgindo com um par de machados girando nas mãos, o metal reluzindo de um brilho azulado. Ele se lançou ao ar, atingindo o Felroz por cima, cortando um dos olhos laterais da criatura em uma explosão de fluido ácido.
A criatura pareceu prestes a cair, mas um dos seus tentáculos segurou nas árvores, a se lançando no meio da floresta.
— Ele tá sugando tudo! — Miatamo murmurou, o cenho fechado. E Dante viu.
O corpo da criatura começou a inchar, a carapaça ondulando como se sob a pele houvesse rios de sangue fervente. As árvores próximas desapareceram, engolidas num redemoinho de raízes partidas e galhos triturados. Até as pedras sumiam sob a fome do Felroz. Cada pedaço de flora, cada fragmento de vida, absorvido como uma maré negra. E com isso, ele crescia. A espessura dos tentáculos dobrava, a carne ganhava textura de couro e ferro misturados.
E quando saltou de novo, desta vez em direção ao declive, o chão tremeu.
Foi aí que o gelo subiu.
Uma placa branca e azulada irrompeu atrás deles, como um muro conjurado por deuses antigos. O gelo estalava ao nascer, cantando uma música fria e cortante.
— VÃO!EMPURREM! — a voz veio de Guaca, que corria atrás de Trahaus, ambos deslizando sobre a superfície escorregadia como espectros. Guaca ergueu os braços outra vez, e os dedos brilharam com uma energia disforme.
Miatamo olhou para Dante e viu o velho arquejando, os ombros pesados, as mãos trêmulas. Por um segundo, pensou em mandar o Capitão entrar de volta no Nokia. Mas Dante já se movia. Ele se atirou contra o casco com a teimosia de quem não aceitaria um fim qualquer. O peito bateu no madeirame, e os braços se abriram. Um novo jato de ar explodiu das mãos calejadas, espalhando lama e seiva como um trovão afasta as nuvens.
O navio gemeu. Mas moveu-se. Só um pouco, mas moveu-se.
Miatamo praguejou baixinho e correu para o lado do velho, cravando os pés no convés e empurrando junto. O corpo dele se tencionou como um arco prestes a disparar.
— Quero que saiba, não importa quem escolham… você é… — começou Miatamo.
— Cale a boca! — rosnou Dante, com os dentes cerrados, as veias saltadas no pescoço. Ele deu um passo à frente, cada músculo suplicando por trégua. — Temos que sair daqui.
Atrás deles, Porto era um borrão de aço e carne. Ele saltava de um lado para o outro, as machadinhas abrindo novos cortes onde os tentáculos tentavam envolvê-lo. Cada salto vinha acompanhado de uma gargalhada, como se a morte fosse uma velha amiga que ele queria abraçar.
Guaca ergueu as mãos de novo. Um som grave nasceu de seus dedos, como o rugido distante de um trovão. Mas não era um trovão. Era uma onda sonora tão densa que o ar tremeu. O Felroz recuou pela primeira vez, libertando um urro rouco que encharcou o chão com pus e raiva.
Trahaus bateu a mão enluvada no gelo, e a muralha cresceu mais, atingindo três metros de altura. O frio mordeu a pele dos homens no convés, mas ninguém reclamou. Eles sabiam o que estava por vir.
Guaca girou ao redor, manipulando a onda sonora para empurrar a criatura de volta, como um pastor conduzindo um cão raivoso.
Porto viu a brecha e não pensou. Correu. Cada passada era como um martelo batendo em metal vivo. Sua pele mudou, o bronzeado habitual tornando-se um cinza denso e opaco. Ferro. Carne e ferro, fundidos. Ele puxou as machadinhas e acelerou.
Chegou perto o suficiente. Saltou.
A primeira lâmina entrou direto no crânio da criatura, com um estalo que Dante ouviu mesmo à distância. O sangue explodiu em jatos, respingando em Porto, que riu, os dentes brancos como marfim em meio à máscara escura de sangue.
Ele girou o corpo para o outro lado, ainda agarrado ao cabo da primeira arma, e puxou a segunda. Quando desceu a lâmina, foi com violência suficiente para entortar o eixo do pescoço do Felroz. Os tendões cederam, e a cabeça imensa tombou um pouco.
Mas Porto não terminou ali. A risada dele ecoou pelo vale como uma música esquecida de homens que já sabiam que iam morrer. E não se importavam.
O som dos gritos do Feloz começaram a se tornar mais altos, mas, no meio daquele caos inteiro, um disparo feito foi suficiente para quase acertar Porto. Guaca e Trahaus viraram para o declive. Mais pessoas surgiram.
— São aqueles babacas que nos atacaram ontem — gritou Guaca para Porto. — Eles estão em peso.
Eram mais de cinquenta, quase cem deles descendo pela lama. Era praticamente um batalhão inteiro. Era um mar de rifles, lanças e espadas, atrás de escudeiros, usando aquelas estranhas armaduras de bronze.
Atrás dessa primeira remessa, mais outras.
— Não temos gente pra isso tudo — avisou Trahaus para todos eles. — Precisamos ir… agora.
— Calma, bonitinha. — Porto fez sua machadinha girar e o Felroz foi junto dele. O corpo inteiro movendo-se na direção das tropas. — Deixa que eu cuido disso eu mesmo. Esses filhos da puta me encheram o saco por muito tempo.
Ele puxou as lâminas de uma vez. O Felroz estremeceu violentamente, o corpo inteiro enrijecendo em puro ódio, e os tentáculos dispararam.
O primeiro golpe atingiu a linha frontal dos soldados do Glossário antes que eles sequer entendessem o que estava vindo. Um tentáculo grosso como o tronco de um carvalho varreu de lado, atingindo escudos e corpos com força suficiente para arremessar homens como bonecos de pano. O som dos corpos quebrando no impacto foi abafado pelos gritos, ossos esmagados, metal retorcido.
O segundo tentáculo desceu como um chicote, atingindo uma das plataformas laterais. A madeira estourou sob o impacto, homens e armas caindo em um emaranhado de gritos e poeira. A besta avançou mais, impulsionada pelo peso de Porto ainda guiando as rédeas, os calcanhares fincados na base da nuca esfolada da criatura.
E então Porto gritou, a voz ecoando como um trovão pela encosta.
— MATA, PORRA! MATA!
O Felroz não pensava. Ele obedecia à violência. Avançou colérico, abrindo caminho com a boca dentada, devorando o primeiro pelotão que tentou reagir. As mandíbulas serrilhadas se fecharam ao redor de três soldados que não conseguiram recuar a tempo. Eles sumiram no buraco negro daquela garganta monstruosa com um estalo úmido, deixando para trás apenas as armas e as pernas sem dono.
Uma saraivada de tiros explodiu contra a carapaça da criatura logo em seguida. As balas ricochetearam, algumas atravessando as camadas de pele morta, cuspindo fumaça púrpura, mas não o suficiente para deter o avanço do monstro.
Porto puxou a cabeça da criatura para a esquerda, guiando o próximo ataque. Um tentáculo chicoteou novamente, dessa vez acertando uma das torres de vigia que o Glossário havia erguido. A estrutura tombou em meio a estalos de cordas e vigas, levando consigo dois artilheiros e o atirador que controlava o lança-chamas.
O fogo escapou do cano, incendiando os homens ao redor em um espetáculo de chamas e pânico. Os gritos deles ecoaram como música para Porto, que ainda gargalhava enquanto segurava firme, os olhos brilhando de excitação feroz.
— ISSO! ISSO, SEU DESGRAÇADO! — rugiu ele.
Mas o Glossário não recuava sem resposta.
Um dos comandantes apontou para Porto, e três lança-cabos foram girados e disparados em sequência. As lanças presas a correntes se fixaram nas laterais do Felroz, tentando amarrá-lo, puxá-lo de volta.
Porto sentiu o tranco. O Felroz hesitou, mas ele não largou. Soltou uma mão, pegou uma das machadinhas, e lançou-a com força descomunal. O machado girou no ar e atingiu um dos soldados puxando a corrente, bem no ombro. O homem caiu como um saco de areia, a clavícula aberta em dois. A corrente cedeu de um lado, e o Felroz puxou com força renovada, arrastando os dois cabos restantes junto com soldados que não soltaram a tempo.
Os corpos foram esmagados no caminho. Dois deles bateram no chão com tal violência que as pernas se dobraram ao contrário.
Porto enfiou a mão livre novamente na carne mole do pescoço da criatura, reabrindo um dos cortes para servir de alça. Segurou firme. Sentia o pulso da besta sob os dedos, forte, instável, mas ainda vivo.
— Ainda tem mais gente pra matar, meu amigo — sussurrou com um sorriso torcido.
E guiou o Felroz direto para a segunda linha de tropas do Glossário.
Os soldados já recuavam. Alguns atiravam, outros gritavam comandos em códigos que Porto não entendia e nem se importava. Mas poucos conseguiram escapar quando o Felroz saltou sobre eles. O impacto partiu o chão de pedra e lama, espalhando uma nuvem de destroços.
A criatura aterrissou, e a primeira coisa que fez foi erguer dois soldados pelas pernas com um só tentáculo e bater um contra o outro, como crianças brincando de marretas humanas.
Porto se divertia.
Não havia outro nome para aquilo. Era prazer. Prazer no caos, no som dos ossos quebrando, na carne rasgando, no cheiro de sangue quente misturado à ferrugem das armas. Os homens do Glossário gritavam, corriam, tentavam manter a formação, mas ele os via apenas como uma pluma viva, um tapete de gente em pânico que cedia sob seus pés e suas lâminas. E ele forçava-se através deles como um machado rompe a madeira verde: sem esforço, sem piedade.
Cada golpe que desferia abria um novo caminho, mas também chamava mais inimigos. Vieram pelos flancos, surgindo das laterais como ratos em uma colheita tardia, rápidos, famintos, armados de ferro e luz.
Porto viu um deles tarde demais.
O soldado do Glossário se aproximou, agachado entre os corpos e a lama, a armadura negra reluzindo como óleo ao sol. Os dedos esticaram-se para o centro do peito, tocando o disco de Energia gravado na couraça. Ali, uma luz brilhou — pequena no começo, um ponto incandescente, depois crescendo até se tornar um sol de bolso.
Dante viu primeiro.
Ele e Miatamo haviam parado por um segundo, lutando para manter o casco do Nokia na posição. Mas a luz desviou-lhes a atenção. Viraram-se para o clarão no campo de batalha, e sabiam, antes mesmo de a explosão vir, o que estava prestes a acontecer.
O clarão explodiu.
Foi como se o mundo engolisse o próprio ar, sugasse tudo para dentro de um pulmão invisível, e então cuspisse de volta em uma tempestade de fogo e vento. A onda de choque estalou no convés, e o Nokia gemeu em protesto, rangendo suas juntas como um velho ferido. O casco tremeu sob os pés deles e desceu mais um metro, atolando ainda mais na lama do declive.
A fumaça ergueu-se logo depois. Uma coluna densa e espiralada, subindo em um formato de cogumelo que devorava tudo ao redor, arrastando folhas, brasas e cacos de ossos partidos para o céu sem luz. A poeira espalhou-se na mesma hora, cegando homens, enchendo a boca de um pó grosso que tinha gosto de metal e morte.
E no meio daquela nuvem, algo voou.
O corpo de Porto.
Ele foi arremessado para trás como um boneco feito de arame e trapos, os braços abertos, a cabeça pendendo num ângulo que prometia um pescoço quebrado. Mas não estava morto. Ainda não.
Ele caiu com um impacto surdo, bem diante de uma das linhas de soldados do Glossário. O chão estremeceu sob o peso do corpo dele — um homem forjado em ferro e músculo, feito mais para resistir do que para ceder. A terra rachou sob suas costas e, por um instante, ninguém se moveu.
Os soldados olharam para ele. Todos os elmos voltados naquela direção. Visores sem rosto, respiradores bufando, armas baixas por um segundo de surpresa que custaria caro.
E Porto sorriu.
O sorriso dele era o de um homem que sabia que estava prestes a morrer, mas não se importava. Um sorriso quebrado, com dentes sujos de sangue e olhos faiscando. Como um lobo encurralado que ainda consegue arrancar a garganta do caçador antes de cair.
— O que foi, porra? — rosnou ele, cuspindo um fio de sangue na própria barba. — Querem um pedaço de mim também?
Dante sentiu um peso gelado no estômago. Os olhos varreram a distância entre o convés e a clareira onde Porto jazia. Ele sabia o que viria a seguir. O Glossário não hesitaria. Porto não voltaria.
A menos que…
— Me arremessa. — A voz saiu antes que o pensamento terminasse.
Miatamo virou a cabeça devagar, como se não tivesse ouvido direito. As veias em seu pescoço saltavam, o suor escorria em trilhas grossas, e os olhos estavam vermelhos de esforço.
— O quê? — rugiu.
— Me arremessa, agora! — Dante avançou um passo, batendo no peito do gigante com o punho fechado. — Eu consigo voltar! Ele não!
Não houve tempo para discutir. Miatamo olhou para o campo, depois para o Capitão. A decisão foi uma lâmina afiada. Cortou o momento em dois. Num lado, dúvida. No outro, ação.
O grandalhão esticou o braço, e Dante agarrou-o. Miatamo segurou o antebraço do Capitão com força brutal, e então… liberou.
Sua Energia Cósmica fluiu dos poros como vapor saindo de um caldeirão em ebulição. A pressão formou um círculo ao redor dele, um halo invisível que tornou o ar denso como se fosse um líquido pesado. A gravidade ao redor cedeu ao comando do titã, esmagando inimigos e aliados próximos. Os homens do Glossário tropeçaram, alguns ajoelhando, as armaduras estalando sob o peso repentino. Os próprios companheiros de Miatamo recuaram, olhos arregalados.
Nem mesmo Guaca ou Trahaus ousavam usar aquela técnica num combate coletivo. Ela fazia o espaço ranger. Ela fazia ossos trincarem só de estarem perto.
E mesmo assim, Miatamo usou.
Ele girou Dante pelo braço como quem gira um martelo de guerra, o corpo do Capitão esticado no ar, transformado num projétil. A Energia Cósmica turbilhonou, criando um zumbido grave que fazia o peito vibrar. Miatamo rugiu ao libertar a força — um rugido de fera ferida, carregado de fúria e de promessa.
E Dante voou.
Ele virou uma bala de carne e osso, rompendo o ar com um estrondo seco. Passou pelo terreno em um borrão, mergulhou pelo campo em linha reta, atravessando a fumaça e o pó como se não houvesse resistência. O impacto no chão viria depois. Agora, ele era velocidade pura.
Os soldados do Glossário já se moviam. O comandante à frente de Porto ergueu a pistola para baixo, apontando direto para o rosto ensanguentado do homem de ferro. Os dedos dele cerraram-se no gatilho.
Porto gargalhava.
Os olhos dele ardiam com a certeza de que iria morrer. Mas ele ria mesmo assim. Não havia medo naquele riso, apenas escárnio.
E então Dante chegou.
Como um raio.
Como uma sentença.
Como um punho que atravessa o crânio do destino.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.