Capítulo 284: Fuga
Deitado de costas, com a pistola do comandante do Glossário apontada para o meio de sua testa, Porto gargalhava como se estivesse bêbado. Mas o riso morreu em sua garganta quando sentiu a onda de choque da aterrissagem do Capitão. A vibração subiu pelo seu corpo, fez os ossos doerem. Ele virou a cabeça devagar, como quem se recusa a acreditar no que sabe que é verdade.
O impacto foi um trovão que sacudiu o chão, fazendo a terra abrir pequenas fissuras ao redor do ponto onde ele aterrissou. A poeira ergueu-se em um círculo espesso, e o baque seco dos joelhos encontrando o solo ecoou nos ouvidos dos homens do Glossário. Alguns cambalearam para trás. Outros ergueram as armas, hesitantes, como se não acreditassem que aquilo tinha sido um homem.
Mas era.
Ele surgiu do meio da fumaça, a figura inclinada, com um dos joelhos cravado na lama e uma das mãos apoiada no chão. A outra apertava o cabo de sua lança com força suficiente para embranquecer os nós dos dedos. Respirava com dificuldade, os pulmões rasgando o ar em puxões violentos. O capuz havia sido lançado para trás, revelando o cabelo branco empapado de suor e sangue. Os olhos ardiam com aquela luz estranha, um brilho prateado que parecia refletir a lua mesmo onde não havia mais noite.
— Olha só… — murmurou, cuspindo sangue de novo, só que desta vez sorrindo de outro jeito. — O velho veio mesmo.
O comandante hesitou. Foi apenas um segundo, mas na guerra um segundo era tudo. A mira da pistola tremulou, desviando um fio para o lado. E Porto não precisava de mais convite. Girou o corpo, ainda no chão, e lançou o pé contra o joelho do inimigo. Houve um estalo agudo — os ossos se partindo — e o comandante caiu de lado com um grito abafado.
Porto rolou, saindo da linha de tiro, e plantou o punho na terra para erguer-se como um homem voltando dos mortos.
— Porra, Capital! — ele rosnou, cuspindo mais um pouco de sangue, desta vez em cima de seu próprio peito. — Sempre aparece na hora que não dá pra morrer direito.
Dante não respondeu. Estava de pé agora. E andava.
O peso de cada passo era um trovão abafado pelo lodo. A lança girou uma vez em suas mãos e se firmou, a ponta de energia pulsando num brilho azul-acinzentado, tão frio quanto um céu de inverno. Os soldados à volta hesitaram. Eram homens treinados, endurecidos, criados para não temer. Mas aquilo não era medo. Era respeito por algo que sabiam ser inevitável.
Porto cuspiu no chão de novo e se ergueu por completo, ombro a ombro com Dante.
— Faz a dança, velho — disse ele, girando suas duas machadinhas. O ferro em sua pele recomeçava a cobrir seus braços, como uma segunda epiderme de aço bruto. — Eu seguro as pontas se precisar.
Dante estreitou os olhos.
— Certeza que consegue me acompanhar — respondeu. A voz era uma lâmina fina, fria. — Vamos ver, garoto.
Não houve grito de guerra. Nenhuma ordem. Nenhum som além do ranger dos músculos, do estalar dos dedos ajustando as armas.
E então eles avançaram.
Porto foi o primeiro a mover-se, um borrão de aço e risadas. Ele saltou para o comandante caído, que ainda tentava puxar a perna quebrada para longe, e desceu a machadinha com um golpe seco, partindo a viseira do elmo e o que havia atrás dela. O sangue espirrou numa nuvem quente, tingindo o rosto já imundo de Porto.
Dante seguiu a dianteira. Sua lança atravessou o ar, cortando-o em duas camadas. A primeira ponta perfurou o peito de um soldado que vinha à carga, e a força do impacto foi tanta que ergueu o homem do chão antes de jogá-lo dois metros para trás. Outro tentou fechar o flanco, mas Dante girou o cabo, usando o contrapeso para acertar a têmpora do inimigo, esmagando o visor e o crânio com um estalo surdo.
Os soldados começaram a recuar. Mas Porto não permitiu.
— Voltem aqui, seus cagões! — rugiu, agarrando um dos homens pelo pescoço e puxando-o de volta para o alcance de sua lâmina. Ele partiu o homem de cima a baixo, e o som que saiu disso foi como partir lenha molhada.
E então, Dante viu a oportunidade.
A carcaça ainda fumegante do Felroz jazia ali, um amontoado de carne disforme e tentáculos inertes. Mas os olhos dele ainda brilhavam, e a boca — aquela fenda circular cheia de dentes — ainda estava aberta, engolindo a lama aos poucos, numa espécie de espasmo pós-morte.
— Porto! — Dante gritou, girando a lança e apontando para a carcaça.
Porto entendeu antes mesmo de olhar. Sentiu o tremor no chão, um ruído grave que parecia vir de dentro do próprio estômago da terra. Correu sem pensar, movido por um instinto bruto que o fazia parecer menos um homem e mais um animal faminto. Em poucos passos, já escalava a criatura como quem sobe uma colina de carne viva. O cheiro era nauseante, um fedor de sangue coalhado e lodo apodrecido, e o calor que emanava do monstro fazia sua pele latejar. Subia depressa, cravando as machadinhas nas placas mais duras, onde o couro grosso parecia formar pequenas ilhas sólidas em meio à viscosidade pulsante. Cada golpe afundava com um estalo úmido, arrancando espirros de um líquido esverdeado que se misturava à lama que já cobria seu rosto.
Quando enfim alcançou o topo, Porto ergueu uma das mãos enluvadas, os dedos sujos de um lodo negro. Um sorriso ferino se abriu em seu rosto.
— Quem quer brincar? — rugiu, a voz ecoando como um trovão entre as árvores retorcidas e as brumas espessas.
A criatura sob seus pés estremeceu, e os tentáculos se ergueram em resposta ao seu comando, dançando no ar pesado como serpentes prestes a desferir o bote.
— Não, seu idiota! — veio o brado de Dante, o braço estendido em sua direção como se tentasse fisgá-lo de longe. — Use para lá! Trahaus, expanda o gelo pela lama! Forcem para frente. O quanto puderem!
Então era esse o plano, pensou Porto, com uma risada que mais parecia o rugido de uma fornalha. Sem perder tempo, girou o corpo do monstro, que respondeu de imediato ao seu domínio. Desceu escorregando pelo flanco da besta, como se surfe fosse e o mar, a pele úmida da criatura. Miatamo já avançava, forçando o corpo gigantesco para a frente, os músculos saltando sob a pele escurecida. Houve uma explosão ali perto, um clarão branco que queimou a visão de Porto por um instante. E então, ele a viu.
A criatura avançava, esgueirando-se pela borda do campo, e Porto soltou um urro que fez a garganta arder.
A cabeça suada de Porto surgiu acima de Miatamo, o cabelo colado à testa.
— O que foi, grandão? Cagou nas calças ao me ver?
— Vai se foder, moleque. — Miatamo rosnou, seus dentes rangendo. — E força isso de uma vez!
Trahaus e Guaca já se aproximavam da lateral do navio. A mulher saltou da borda e cravou ambos os pés na lama encharcada. A Energia Cósmica brilhou em torno dela como uma névoa azulada, que logo se condensou num jato denso, forçando o gelo a avançar sobre a lama. O som era como o de ossos sendo quebrados — um estalo constante e perturbador — enquanto a crosta cristalina se estendia, buscando o casco grosso e ferrugento do navio.
Ela respirou fundo, o peito arfando, e por um instante pareceu que suas pernas cederiam sob o peso do esforço. A energia que canalizava era grande demais. Quase demais para ela.
— Não precisa fazer isso sozinha! — gritou Guaca, o braço musculoso se esticando à frente.
Um trovão surdo preencheu o ar quando as ondas sonoras partiram de seus punhos fechados, reverberando pelo chão, pelo gelo e pelo casco do navio. Tudo vibrou ao mesmo tempo. Até as folhas das copas longínquas tremularam como se um vento invisível soprasse entre elas. Houve um som agudo, como vidro se partindo, e então um filete de água brotou sob o gelo. O casco rangeu alto, deslizando mais alguns metros. Miatamo e Porto deram um passo completo, os pés enterrando-se até os tornozelos na lama espessa, e com isso o navio avançou ainda mais.
— Conseguimos consertar o propulsor! — gritou Nekop de dentro do casco. — Merda… o navio tá se mexendo mesmo!
Miatamo girou o rosto, e por um momento, o tempo pareceu desacelerar. Lá atrás, Dante lutava como um demônio encarnado. Estava cercado, soterrado por soldados do Glossário. Mas mesmo assim, abaixava-se com precisão sobrenatural, erguia colunas de lama endurecida como lanças e cortava pernas, braços, pescoços. Desviava como um dançarino treinado por mil batalhas, saltava com uma agilidade que nem Porto ousava tentar imitar.
O velho… Miatamo cerrou os dentes. Ele sacrificara tudo para chegar até ali. E não só ele — todos eles. Trahaus, Guaca. Mesmo os tripulantes mais jovens, lá de cima, do convés superior, se amontoavam na borda, os olhos arregalados, gritando.
— Capital! — suas vozes se perdiam entre as rajadas de fogo, as lufadas de ar e os estalos da terra sendo dilacerada. — Capital!
Dante segurava a lâmina de Kaiser, e havia algo no sorriso dele que não era humano. Cravou a lança no solo para se apoiar, e usou os dois pés para impulsionar-se, voando como um projétil e arremessando três soldados longe. Quando um deles conjurou uma corrente elétrica, Dante virou o corpo com a destreza de um mestre e deixou que a corrente o atingisse. A descarga iluminou seu rosto sujo de sangue e lama por um instante. Ele puxou a corrente com a força de um gigante e arremessou o homem que a controlava no chão com um estalo seco.
— Capital!
Miatamo também gritava agora, os punhos ensanguentados, tentando alcançar Dante. Mas era tarde. As chamas e a água se chocaram em um turbilhão. Dante foi engolido, e então um bloco de pedra surgiu do nada, acertando-o de lado e lançando-o para a floresta.
Mas ele não caiu.
No ar, girou o corpo e usou a própria pulsão de ar dos pés para voar de volta, urrando como uma fera. A lança atravessou o pescoço do primeiro inimigo. O segundo sequer teve tempo de se defender antes que seu rosto fosse desfigurado por um soco que quebrou dentes e ossos.
Dante arfava como um touro ferido. A adrenalina, a raiva e a exaustão se misturavam num último sopro de vida. Ele precisava aguentar. Só mais um pouco.
Recuou, três saltos rápidos e secos, antes de abrir a mão.
— Expelir!
As chamas e a água que vinham para matá-lo foram rechaçadas de volta, como se um deus invisível tivesse soprado com força. O jato de ar durou cinco segundos — uma eternidade para quem lutava pela própria vida. Os soldados ergueram muralhas de pedra, tentando se proteger do impacto. Tentando, e falhando.
Dante fechou o punho. Puxou o braço de volta.
— Dante! — O grito rasgou o ar. E o mundo pareceu parar.
Enquanto todos gritavam pelo Capital, uma voz se ergueu, e foi como se todos os deuses antigos a escutassem. Pomodoro Alixas, o Curandeiro, gritou o nome.
Dante.
Miatamo e Guaca olharam. Viram Dante socar o ar com uma força sobrenatural, libertando uma explosão que levantou a lama, as pedras e as árvores. A muralha de cinco metros subiu, uma parede viva e furiosa.
Dante cambaleava agora, os pés arrastando na lama como um moribundo. Cada passo era um desafio aos ossos fraturados e à carne dilacerada.
— A onda vai pegá-lo! — Nekop gritou do convés.
Dante fechou os olhos. Fincou a lança no chão, a mão tremendo. A lama escorria por seus dedos.
— Ah, não vai mesmo… — murmurou Pomodoro.
O curandeiro tocou o casco do navio com ambas as mãos. Sua Energia Cósmica explodiu em um redemoinho de luz. De dentro dela, peixes etéreos nadaram pelo ar, e um golfinho translúcido saltou, mergulhando na lama para resgatar Dante.
Antes que o corpo do velho pudesse tombar, algo o pegou por baixo. Um puxão seco.
Miatamo gargalhou. Mas o riso morreu em sua garganta quando a onda desceu sobre eles como uma muralha.
— Merda, merda! Temos que subir!
Pomodoro esperou o golfinho saltar de volta, Dante sobre suas costas, e um dos Técnicos puxou-o para o convés com ambos os braços. Mais cinco vieram ajudar. Seguraram-no como se fosse uma relíquia sagrada. Seu corpo estava arrasado — feridas abertas, ossos fora do lugar, o rosto uma máscara de dor e exaustão. Mas ele estava ali. Estava vivo.
Trahaus e Guaca escalaram a bordo juntos. Miatamo segurou Porto por um braço e o atirou no convés, o fazendo rolar e ficar de peito pra cima.
A onda bateu contra o casco e o navio deslizou sobre o gelo, escorregando como um trenó até o oceano. Dez segundos. Apenas isso foi necessário para que o casco, que passara dias encalhado, voltasse à água.
Mas não houve comemoração. Todos estavam exaustos, feridos ou doentes. A tripulação inteira do Nokia observava em silêncio. Observavam Dante, deitado sobre um improvisado travesseiro de lona.
O oceano estava diante deles. Mas não havia festa naquele dia.
— Esse velho… — Porto riu, cuspindo sangue no convés. — Ele é insano demais.
Miatamo balançou a cabeça. Sentou-se, deixando que os músculos doloridos relaxassem.
— Nunca vi ninguém fazer isso.
Os Vanguardistas sentaram-se também. Um a um. Só o anão ficou de pé. Nekop, com seu caderno de anotações, desenhava alguma coisa, sem levantar a cabeça.
— Camuflagem funcionando. Propulsores ativos. Casco reparado — murmurou. Depois ergueu os olhos para Dante. — Só falta nomear um capitão para o Nokia.
Miatamo. Guaca. Thelia. Nekop. Trahaus. Pomodoro. E depois, mais de cem homens e mulheres. Todos ergueram as mãos.
— Eu nomeio — disseram juntos. — O Capitão do Nokia: a Capital!
Pomodoro riu, o som misturado a um engasgo.
— Acho que ele preferiria ser chamado de Comandante Dante.
Nekop assentiu, anotando no caderno.
— Que assim seja. Comandante Dante.
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