Índice de Capítulo

    O cheiro de óleo de peixe era a primeira coisa que Dante sentiu ao voltar à consciência.

    Uma essência espessa, rústica, carregada de sal e gordura velha, misturada ao odor mais sutil de madeira encharcada e fumo barato. Ele conhecia aquele cheiro. Já o sentira antes, em outros quartos, outras camas improvisadas, depois de outras batalhas que haviam deixado o corpo tão destroçado quanto a alma.

    Tentou abrir os olhos, mas a luz branda de um lampião os forçou a semicerrar. As pálpebras pareciam feitas de couro pesado. Cada piscada exigia esforço. Ainda assim, a claridade suave era um alívio em comparação às trevas que pensara ser seu último abrigo.

    Moveu os dedos, depois a mão, e sentiu o toque áspero de um cobertor de lã fina, não muito diferente dos que usavam nas docas, costurado com pressa, manchado de óleo e remendado. O colchão sob ele era duro, feito de palha embolorada. E, por um instante, Dante pensou estar de volta em Kappz, nos dias em que acordava esperando sobreviver mais um dia.

    Antes da escuridão ser tomada pelas luzes.

    Que saudade da eletricidade.

    Mas não. Aquilo era diferente. O balanço suave do navio o denunciava. Ele estava a bordo do Nokia. E ainda estava vivo.

    — Acordou — disse uma voz calma, prática, sem emoção desnecessária.

    Era o tipo de voz que Dante sempre respeitara, porque era honesta. Não havia piedade nela, nem pena. Só o reconhecimento daquilo que era. Vida e morte. Sangue e aço.

    Virou o rosto devagar, o pescoço latejando como se uma lâmina invisível o atravessasse. Os olhos demoraram um instante para focar. A dor ainda o perseguia, mesmo deitado, parado.

    Nekop estava sentado em um banquinho de madeira baixa, o caderno no colo, o rosto meio coberto por uma penumbra morna, lançada pela chama trêmula do lampião.

    Os óculos dele estavam tortos. Dante não lembrava que ele usava isso. Um lado colado com uma tira de couro amarrada no aro quebrado. Havia sangue seco nos cabelos brancos e um corte feio atravessando a têmpora. Ainda assim, escrevia. O estilete de metal riscando o papel com paciência.

    — Não achei que voltaria — disse Nekop, sem levantar os olhos. — Mas eles acharam. E estavam certos.

    Dante inspirou fundo. O peito doía como se tivesse sido esmagado por um canhão. Cada costela parecia prestes a se partir novamente.

    — Quanto tempo estou assim? — perguntou, a voz áspera, rouca.

    — Três dias — respondeu Nekop, virando a página sem pressa. — O navio aguentou, por hora. Ainda estamos em viagem, mas estamos aguentando. Tivemos sorte. Muita sorte.

    Ai estava uma palavra que Dante não gostava de usar.

    — Duvido que sorte teve alguma coisa a ver com isso.

    Dante tentou se erguer, mas uma mão firme o impediu.

    — Não. Ainda não. — Era a mesma calma, sem autoridade forçada, apenas uma constatação. — Ainda precisa descansar. Pomodoro fez o que conseguiu para estancar tudo que tinha se soltado, mas tem algumas coisas ainda que ficaram fora do lugar.

    Ele obedeceu, sem protestar. Confiava no julgamento do anão, mais do que confiava no próprio corpo. Depois das batalhas que passou, sempre estava confiante de que suportaria qualquer desafio.

    O treino que passou foi pra isso, mas acabou descobrindo que algumas verdades ainda se descontentavam no meio do caminho.

    — O que aconteceu com aqueles em Truman? — murmurou, olhando ao redor.

    O quarto era apertado, com paredes baixas reforçadas com ripas de madeira escura. Havia mapas presos às tábuas, marcados com estacas de ferro, e prateleiras improvisadas seguravam vidros com especiarias, pomadas e cera de foca. Era ali onde Bulianto dormira por meses, onde guardava suas tralhas e fazia suas poções baratas. Agora, era uma enfermaria de guerra.

    — Mortos — respondeu Nekop, sem cerimônia. — Mas eles deixaram um aviso bem-dado sobre o que aconteceu. Pelo que parece, muita coisa mudou desde a morte do Bulianto. Ainda não sabemos como, mas… ele deixou um legado bem sangrento para trás.

    O silêncio seguinte foi mais respeitoso que qualquer prece.

    Dante fechou os olhos por um instante. Algumas das suas memórias de casa se perdiam ou misturavam com as de Kappz. Era como estar em tantos lugares e nenhum ao mesmo tempo. E agora, a mercê de um navio, lembrava dos que o ajudaram.

    — Estão todos aqui? — perguntou depois.

    — Estão — Nekop respondeu. Fechou o caderno, pousando-o no colo. Os dedos tamborilaram de leve na capa de couro. — Eles estão esperando. Ansiosos para saber do Comandante que fez algo mais do que necessário para salvá-los.

    Antes que Dante pudesse dizer mais alguma coisa, ouviu passos pesados ecoando pela escada estreita que levava ao quarto. Um a um, eles apareceram.

    Miatamo foi o primeiro. Curvado, ainda com a armadura incompleta, as placas presas com tiras improvisadas de couro e corda. O rosto dele parecia um mapa de hematomas, um olho inchado e roxo. Mas havia um brilho estranho ali, um calor que Dante não reconhecia de imediato.

    Logo atrás veio Guaca, o rosto limpo, mas o cabelo ensopado, com uma pequena toalha na nuca. As mãos dela estavam vermelhas, feridas de tanto curar e forçar Energia além do limite. Mas ele sorriu ao vê-lo acordado, um sorriso de canto de boca, discreto e real.

    Trahaus veio a seguir, os braços cruzados, sem dizer palavra. Mas suas narinas inflaram, como se respirasse fundo pela primeira vez em dias. Diferente dos outros, ela segurava sua adaga na mão esquerda, girando entre os dedos. E acenou quando passou para o outro lado do quarto.

    Até Porto apareceu. Cheirava a álcool barato, provavelmente de algum barril saqueado no refeitório. Se encostou no batente da porta, a machadinha caiu, largada aos pés, o olhar meio zombeteiro, meio cansado demais para zombar de verdade.

    Pomodoro fechava o grupo, um pouco mais atrás, apoiado somente no peso de uma perna quando parou. Ele limpou os olhos com as pontas do dedo, sem pressa, como se o tempo que Dante permaneceu dormindo não tivesse o afetado em nada.

    Mas, afetava. Seu sorriso de canto era satisfatório.

    Dante respirou fundo. Tentou falar, mas o peito doía demais.

    — Não precisa dizer nada — Miatamo falou, a voz rouca, grave. — Sem agradecer ou desculpas. Você fez o que nenhum homem faria lá fora pela gente.

    Guaca avançou, puxando uma cadeira e sentando ao lado de Nekop.

    — Você é o comandante agora — disse ele, com um sorriso cansado. — Mesmo que não queira.

    Dante olhou para Nekop, que já anotava tudo no caderno outra vez. O anão ergueu o olhar e assentiu.

    — Nomeado por todos, inclusive os mortos.

    O silêncio caiu de novo, mas dessa vez não era pesado. Era um silêncio firme. Como uma âncora lançada em mar aberto.

    Porto foi o primeiro a quebrar.

    — Eu sabia que você não ia morrer, velho maldito. Ainda tem um monte de merda pra limpar. E só você sabe fazer isso direito.

    Todos riram, de um jeito estranho. Riso e choro misturados, como acontece quando se sobrevive ao impossível.

    Dante fechou a mão ao redor da de Guaca e tentou se erguer de novo.

    — Como isso aconteceu? — Ainda estava meio perdido nos acontecimentos. — Eu acabo dormindo, acordo e sou Capitão?

    — Capitão, não — corrigiu Trahaus. — Comandante. Esse termo combina melhor com você. Não queremos que fique se achando muito. Temos muito o que fazer, e espero que você possa mostrar o caminho.

    Caminho, Dante não fazia ideia de onde ir ou o quem ver. Não fazia ideia do que realmente representava estar no oceano, nem mesmo o que precisava para consertar as suas próprias dores. Sua vestimenta ainda o ajudava, mesmo que fracamente. Sentia as fibras do tecido se unindo a sua pele, adentrando os ferimentos menores.

    — Pode se sentir perdido — disse Nekop. — O que precisamos é de alguém que se jogue na batalha com a gente. Mas, o que você fez por todos nós. Não temos como medir.

    Dante abaixou a cabeça, respirando fundo. Cada inspiração era uma dor em um lugar diferente.

    — Não precisa falar isso. Eu faria tudo de novo se precisasse. Não sou nem digno de ser um Comandante. Perdi todas as batalhas que eram importantes.

    — E continua vivo. — Pomodoro o obrigou a levantar a cabeça. — Você chegou caindo de um Abismo. Sobreviveu a ferimentos que homem nenhum gostaria de passar. Se levantou para enfrentar o Bastardo, salvou todos da tripulação e fez de tudo para que nós saíssemos daquele inferno.

    O Curandeiro caiu de joelhos na mesma hora. Miatamo se juntou. Depois Trahaus. Porto caiu com ambas as pernas, soltando um arroto e abaixando a cabeça.

    Nekop levantou da cadeira com Guaca, e os dois imitaram o gesto.

    — Pode não se achar suficiente por muitas escolhas que fez, mas elas te trouxeram até aqui. — O Anão parecia do mesmo tamanho ajoelhado. — Por isso, nós fizemos o voto. Você irá nos comandar, mesmo que não saiba pra onde ou porquê, até o dia em que não houver mais força ou energia em nossos corpos.

    — Seguiremos o Comandante Dante para onde irá.

    Eles abaixaram a cabeça. Dante se sentiu pequeno, mais uma vez.

    Novamente, as pessoas confiavam sua lealdade a ele.

    O que fiz pra merecer essas coisas, Deus?

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