Capítulo 286: Casa
O céu tinha a cor de ferro velho quando Dante subiu ao convés.
Nuvens baixas deslizavam sobre o mar como uma mortalha de fumaça, espessas e pesadas, ocultando o horizonte. O vento vinha do sul, cortante como lâminas cegas, trazendo o cheiro amargo de sal e ferrugem que se entranhava na madeira do Nokia, um cheiro que já fazia parte deles. As placas de pedra no mar estalavam e gemiam ao se chocarem umas contra as outras, como ossos velhos rangendo sob um fardo pesado.
O casco do navio tremia sob o esforço de avançar, cada trave estalando como se gritasse, mas permanecia firme. Assim como eles.
A tripulação aguardava em silêncio, espalhada pelo convés como sombras sobreviventes de um massacre antigo. Os Vanguardeiros estavam à frente, no alto da rampa de popa, onde o vento batia mais forte.
Os Curandeiros vieram logo atrás, alinhados de forma menos rígida, alguns se apoiando uns nos outros, cobertos por mantos puídos e cheios de manchas secas de sangue e fuligem. E mais atrás, em seu silêncio costumeiro, estavam os Técnicos, mãos sujas de graxa, rostos encovados, o cheiro de óleo queimado impregnando suas roupas grossas.
Cansados. Feridos. Alguns se sustentavam por pura teimosia. Mas todos estavam lá. Ombro a ombro, como haviam aprendido a ser. Como precisavam ser.
Nekop apoiava-se no leme com a descontração forçada de quem espera há muito mais tempo do que devia. O caderno estava fechado sob o braço, a outra mão traçava linhas invisíveis no ar, como se escrevesse algo que ainda não podia ser lido.
Guaca estava a estibordo, perto da amurada de carvalho que sangrava seiva escura pelas rachaduras. Braços cruzados sobre o peito, as mãos ainda manchadas de vermelho e enfaixadas de modo grosseiro. As palmas estavam em carne viva, mas ela sequer piscava.
Miatamo estava imóvel ao lado de um dos mastros menores, o rosto endurecido, como esculpido em gelo cinzento.
Pomodoro sentava em uma das poucas caixas, sua respiração vinha baixa e lenta, como um fole que perde ar a cada ciclo. Ainda assim, os olhos faiscavam por baixo das sobrancelhas grossas, atentos a tudo e todos.
Até Porto, um homem que tratava a vida com mais intensidade, estava lá. Dante recebeu a saudação de cabeça, enquanto seu machadinho agarrou na madeira ao lado, rangendo vagamente ao balançar do navio.
Dante parou diante deles.
O vento soprou uma lufada amarga por entre suas vestes grossas, e ele não sentiu frio ou calor. O sol tinha feito até mesmo as maiores poças de água se extinguírem do navio.
Passou os olhos por cada rosto. Olhos fundos, sombras profundas sob as pálpebras, cicatrizes mal curadas. Alguns ferimentos eram recentes, ainda vermelhos e inchados. Outros, velhos demais para serem lembrados. E havia um medo ali, silencioso, como um cão sarnento esperando a hora de morder. Mas era um medo domado, um que havia aprendido seu lugar.
E por trás dele… havia fogo.
Dante inspirou devagar. Sentiu a dor estalar nas costelas, um lembrete da última batalha que haviam travado para chegar até ali.
Deu um passo à frente. Os joelhos protestaram, as botas pesadas afundaram na pequena
— Vocês sabem quem eu sou — disse, a voz firme, mesmo que rouca de tanto respirar ar gelado e sangue seco. — Sabem o que fiz, mas não me conhecem bem o suficiente. Não sou daqui, nunca quis estar aqui. E acima de tudo, sabem que eu jamais pensei em assumir esse posto.
Deixou a frase pairar no ar, como se o vento pudesse levá-la para onde quisesse.
Fez uma pausa. Respirou novamente. O ar parecia cortar a garganta, mas ele estava acostumado a sangrar por dentro.
— Quando Bulianto caiu, eu não tinha ideia do que fazer. Nekop e Miatamo foram quem escolheram o destino. Nós precisávamos de reparos, e não conseguimos em Truman. O que encontramos lá foi apenas segredos que o antigo Rei, capitão desse navio, tinha consigo. Eu nunca fiz promessas, nunca escondi nada daqueles que um dia confiaram em mim, então, não quero que achem que serei um Capitão que seguia os mesmos passos que ele. Não esperem de mim ações discretas ou grandes ações gloriosas. Não prometo nada além do que foi proposto, mas tenho certeza de que vocês precisam entender o que sou eu.
Seus olhos varreram o convés, passando por cada um deles. Não buscava aprovação. Não esperava lealdade cega. Já tinha visto muitos homens morrerem por promessas vazias e discursos decorados.
O que dizia agora era simples. E verdadeiro.
— O que estão vendo é um homem quebrado. Eu vim de longe, de um continente que fica dezenas de anos de distância daqui. Eu me fundei em Kappz, mas no final das contas, a rota para lá está fechada. O que eu posso fazer é entregar a vocês o que precisam de mim. Eu procuro por um homem, conhecido como Merlin, mas não faço ideia de onde encontrá-lo. E nem sei se conseguirei.
Fechou a mão em punho. Não ergueu o braço; não precisou.
— Antes de morrer, antes de voltar para onde minha família me espera, vou desfazer a minha maldição. Irei destruir esses inimigos. Vamos viajar até o Bastardo e faremos com que ele entenda o porquê Bulianto confiava tanto em nós. Prometo, por mais profano que seja pedir a morte de um homem, farei com que ele entenda que nem mesmo o oceano vai separar ele de nós.
Silêncio.
Daquele tipo que não é confortável, mas necessário. Um silêncio denso, que pesava mais do que qualquer palavra poderia pesar.
O tipo de silêncio que vinha antes de se atravessar uma porta sem saber o que havia do outro lado.
— Faremos de tudo para que ele possa sentir o sangue que derramou naquele dia. Lutaremos onde as ilhas que Bulianto protegeu, e iremos deixar entendido para esse oceano inteiro quem somos. — continuou. O olhar caiu sobre Nekop primeiro, depois Guaca, Miatamo, Porto. Um a um. Nomes que já haviam sido lidos em orações de mortos, mas que ainda estavam ali. — Não vai existir lugar no mundo onde nossos inimigos se escondam. Essa é a promessa que faço.
Aqueles rostos o fitaram com fome, mas não de batalha ou sangue, mas sim de serem novamente reconstruídos. Por sorte, Dante tinha uma imensa tripulação bem na sua frente. Mas, nunca imaginou que tantas, de diversas maneiras, o seguiriam no meio do Oceano.
Ele não fazia ideia de como fazer aquilo funcionar, mas vendo Nekop segurar seu caderno, anotando algo, entendeu que não precisava fazer tudo sozinho.
— As palavras do Comandante foram claras — o Anão disse com um olhar erguido. — Nosso primeiro objetivo vai ser reconstruir o navio. Nokia já foi uma montanha cascuda, mas agora está andando aos pedaços. Precisamos de um rumo, e eu já entrei em contato com um dos antigos carpinteiros.
Ainda em silêncio, os homens levantaram os braços, juntos. O mesmo sinal que Dante havia feito antes, mas sem nenhum tipo de simbologismo. Imitaram o movimento na direção dele.
— Singapura será nosso destino — anunciou Nekop. E os olhos foram para um dos Técnicos, que tinham um rosto cruzados com uma marca azulada. — E temos um tripulante que pode nos guiar.
Numa marcha lenta, com os braços cheios de feridas, o homem abriu caminho até Dante. Ele balançou a perna, e caiu de joelhos. Parecia que iria cair, mas manteve-se firme.
— O senhor me tirou da morte certa — suas palavras foram baixas, mas ouviam pelo silêncio do oceano. — Aqueles homens iriam acabar com todos nós. Por isso, se permitir, guiarei o caminho para Singapura.
Dante concordou.
— Antes de irmos, preciso dizer algo que todos precisam saber. — Ele esperou os olhos estarem nele novamente. — Bulianto fez com que esse navio recebesse uma carga mais preciosa do que ouro ou prata que já viram. Aqui dentro, usado por esse navio, está algo chamado de Pedra Lunar.
As sobrancelhas de Nekop se cruzaram, juntas.
— Ele mencionou que usava isso, mas não que estava aqui. Onde?
— Também não faço ideia.
Dante esticou a mão para uma das cadeiras, e Porto pegou, empurrando para ele pelo convés. Suas pernas se libertaram da dor e cansaço acumulados ao se esticar.
— Lá em Truman, conhecia uma mulher chamada Lira que disse que tinha um acordo com Bulianto. As Pedras Lunares deixam um rastro para trás, um que os homens de Glossário e o Bastardo conseguem sentir. Por isso, ele nunca ficava muito tempo atracado. O oceano mascara esse rastro, por isso, eles também precisavam de você, Nekop.
— Por que eu? Não sei onde ficam essas malditas pedras.
— Não só pelo conhecimento dos mapas. Mas porque você tem uma habilidade rara. Consegue escrever para qualquer um, onde quer que estejam, desde que tenham papel em mãos. E eles pegaram Sinora. A garota ainda está adormecida, mas foi escolhida porque cria papéis indestrutíveis.
Pomodoro, que escutava com os braços cruzados e o semblante fechado, entendeu de imediato.
— Eles queriam comunicação imediata — murmurou. — Um sistema que ligasse qualquer um a qualquer outro, em tempo real.
— Como o Cubo de Comunicação — Dante completou mais baixo, sussurrando, erguendo o olhar para o céu opaco —, mas de outra forma. Minha irmã me contou uma vez. Lá onde cresci, ouvi falar disso. Fax, acho que chamavam assim. Escrita à distância. Não lembro dos detalhes.
O vento trouxe o cheiro salgado e rançoso da água, e todos ficaram em silêncio por um instante. O mar se estendia ao redor deles como um campo de batalha sem fim, esperando o próximo movimento.
— E pra que isso funcione, Bulianto precisaria morrer — Dante disse por fim. — Essas Pedras… já as vi antes, em minha terra natal. Se o Nokia usa uma delas para flutuar e pra manter tudo dentro dele dessa forma, então é nossa responsabilidade manter isso fora das mãos de quem não deve.
Nekop assentiu, e outros o seguiram. Um a um, os homens e mulheres ali presentes respiraram fundo, sentindo o gosto metálico do juramento sem palavras.
— Para Singapura — Dante declarou, sua voz agora mais forte, como se o sal do ar o tivesse acordado de um torpor. — Lá, veremos o que podemos fazer para consertar tudo isso. E que alguém prepare um banquete. Temos que chegar descansados.
— E de barriga cheia — gritou Porto, com a mão erguida.
O único com uma risada na cara.
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