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    A noite havia descido sobre o mar como um manto grosso, pesado e frio. O céu estava limpo, sem nuvens, revelando um campo de estrelas tão vasto que Dante teve a sensação de estar diante de um abismo invertido, como se pudesse cair para cima, puxado pelo silêncio sombrio do firmamento. O Nokia avançava devagar, rangendo nas articulações enferrujadas, cada estalo do casco como o som de ossos se movendo após muito tempo de inércia.

    Dante estava encostado na amurada de estibordo, os cotovelos apoiados na madeira ressecada, quando ouviu o ranger das botas pesadas de Nekop se aproximando. O anão carregava uma pequena garrafa de bronze fosco, que sacudiu de leve antes de estender para ele.

    — Fermentado de alga — disse, com um meio sorriso que parecia mais um vinco de guerra no rosto rude. — Não vai te matar. Só vai te fazer desejar que morresse amanhã.

    Dante aceitou a garrafa, girando-a na mão por um momento antes de tomar um gole curto. O líquido era amargo, espesso como óleo de motor, mas desceu quente, estalando no estômago e subindo à cabeça logo depois. Ele limpou a boca com as costas da mão, expirando devagar.

    — Faz sentido — murmurou. — Nada que valha a pena é fácil de engolir.

    Nekop soltou um riso baixo, quase sem som. Ficou ao lado dele por um momento, ambos encarando a imensidão escura e fria que os rodeava. Só então o anão falou de novo, a voz grave carregada de preocupação, pelo que Dante conhecia dele.

    — Vim falar sobre o Glossário. Mesmo que aqueles soldados dele lá em Truman não parecessem grandes coisas, eles são muitos. Numerosos aos montes. Tenho um pouco de receio quando chegarmos em Singapura.

    Dante não desviou os olhos do horizonte. O nome pesou no ar como uma bigorna caindo de um convés alto.

    — Parece que ele sempre foi um problema para vocês, até mesmo quando era Bulianto o próprio Rei do Leste — respondeu. — O que mudou?

    Nekop girou o pulso, fazendo o líquido na garrafa remexer-se, como se ali dentro houvesse um pequeno redemoinho prestes a engolir tudo.

    — Antes, ele caçava o Bastardo. Agora, jurou lealdade a ele. Ou assim dizem. — O anão deu de ombros, mas não com desprezo. Era mais um gesto de quem não confiava em nada que lhe contassem, nem mesmo no que vira com os próprios olhos. — Mas eu conheço o Glossário. Ele não serve ninguém, nem mesmo aos deuses que um dia tentou invocar.

    Dante finalmente se virou para encará-lo. Os olhos cinzentos, endurecidos pelas semanas de mar e perda, fixaram-se no semblante marcado do anão.

    — Então ele quer o trono do Oceânico Polar I.

    Nekop assentiu lentamente.

    — Quer governar onde o gelo nunca se parte e o sol nunca nasce. Está recrutando as Casas Frias, oferecendo metal, carne e asco. Prometeu às viúvas que trará seus mortos de volta. Cada vez que vejo alguma mensagem enviada para uma das frotas, tenho mais certeza de que ele está querendo mexer com mais do que apenas governança.

    Dante respirou fundo, e o ar gelado pareceu rasgar suas narinas. Ele sabia o que aquilo significava. Não promessas. Mentiras envernizadas em esperança. E, no entanto, os homens seguiriam.

    — Ele diz que pode fazer as correntes devolverem aqueles que o mar levou.

    — Necromancia? — perguntou, embora não precisasse da resposta.

    — Não a que você conhece. — A voz de Nekop ficou mais baixa, como se as palavras fossem veneno que podia atrair predadores. — Ele tem os Manuscritos de Venn. Dizem que ali há instruções para moldar o frio e a morte em armas. Para fazer do oceano uma cidade viva… e morta ao mesmo tempo.

    — Nunca gostei muito de acreditar nisso. Seja ele um homem ou um morto, e espero que não seja o último — tentou dar um sorriso para quebrar o gelo —, algumas coisas não devem ser trazidas de volta a vida.

    — Acredito que deve ser por isso que ele quer as Pedras Lunares que o Bulianto tanto escondeu.

    O frio poderia ser bem irritante se não trouxesse a sobriedade aos homens em dias de insanidade.

    Dante fechou a mão em punho, sentindo a aspereza da amurada sob os nós dos dedos. O Oceânico Polar I não era um território comum. Era um cemitério de gigantes, uma região de mares envenenados por séculos de guerra e promessas quebradas, pelo que tinha ouvido por tanto tempo dos tripulantes.

    Se o Glossário se apossasse daquelas terras, não seria apenas um tirano em busca de poder. Seria um flagelo com pretensões de eternidade.

    — E o Bastardo? — Dante perguntou, depois de algum tempo. — O que ele ganha com isso?

    Nekop cuspiu por entre os dentes.

    — O Bastardo sempre quis uma parte do trono, onde possa afiar as correntes antes de descansar. Mas ele não entende que o Glossário vai abrir as portas e deixar uma surpresa pra ele. — Ele tomou um gole da garrafa e depois a estendeu de novo para Dante. — Quando o Bastardo se der conta, o Glossário vai estar sentado no trono de gelo, e a única coisa viva que restará lá ser fome e miséria.

    O silêncio se alongou entre eles, e só o som das velas remendadas e do mar quebrando no casco os acompanhava.

    — Eu nunca estive no mar antes — Dante disse, a voz distante, como se falasse consigo mesmo. — Mas, meu pai sempre contava uma história de que o oceano poderia ser cruel com aqueles que fossem muito gananciosos. E tenho certeza de que se aqueles dois têm ambições tão grandes quanto dizem, vamos nos esbarrar mais vezes do que pensamos.

    — Não se preocupe — Nekop respondeu, batendo a mão pesada no ombro de Dante. — O Polar I é grande demais. Se o nosso sistema de camuflagem continuar funcionando, não vamos ter problema nenhum. Precisamos apenas manter nossos homens, e contratar alguns carpinteiros. Singapura vai ser moleza comparado com Truman.

    Dante soltou um suspiro lento e amargo, aceitando outro gole da bebida fétida. O frio parecia maior agora. O futuro, menor. Mas o caminho estava traçado. Eles iriam para Singapura, e depois… depois, talvez precisassem cruzar os campos gelados do Polar I, antes que o Glossário fincasse ali o seu estandarte.

    — Se tivesse que escolher entre morrer no frio e servir esses homens, o que escolheria? — perguntou Dante, ainda olhando para o nada.

    Nekop pensou por um momento, depois bufou.

    — Frio. Sempre o frio. A morte é só a morte. Mas servir… isso nunca acaba.

    Dante sorriu de lado, embora não houvesse humor naquilo. Apenas compreensão.

    Alguns homens serviam a vida inteira sem saber pelo ou porque faziam. Alguns, quando descobriam, acabavam mortos antes de poderem se libertar. E alguns, que nunca se submeterem a ninguém, continuavam a conquista por cima desses últimos dois homens.

    O mar seguiu em frente, como fazia desde sempre. Mas naquela noite, sob o manto negro e as estrelas impassíveis, parecia que eles se aproximavam de um limite. Onde os mapas acabavam, e os monstros começavam.

    Os mesmos monstros que Dante conhecia, mas dessa vez, se questionava.

    Felroz ou humanos?

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