Capítulo 288: Precipício
O horizonte amanheceu envolto numa bruma espessa, um véu prateado que engolia o mar e diluía o céu num cinza uniforme e indiferente.
O Nokia seguia adiante como um animal ferido, seus motores sibilando baixo, cansados, enquanto as velas de pano áspero tremulavam sem entusiasmo. O frio parecia um preâmbulo para algo que ainda viria, e Dante sentia isso nos ossos, uma premonição sem nome.
À frente, surgiam os primeiros sinais da costa — rochedos irregulares, como dentes de uma fera antiga, e, além deles, uma sombra que se erguia em espirais de ferro e fumaça.
Singapura.
Mas não a Singapura das histórias de mercado e das bandeiras coloridas dos negociantes. Não a que Nekop ou os demais ouviram falar quando criança, antes das Pedras e das promessas. Aquela cidade agora parecia um navio de ferro encalhado sobre a terra, respirando vapor pelas garras de guindastes e muralhas armadas. Torres-faróis apontavam para o céu como lanças quebradas, e luzes oscilavam em padrões que Dante reconheceu de imediato: sentinelas.
Só não sabiam se eram aliados ou inimigos.
— Estamos a uma légua da costa — disse Guaca, a voz vibrando no comunicador improvisado, enquanto os olhos marcados pelo sal fixavam-se a frente. — Se continuarmos, vão nos ver. Se já não viram.
— Duvido que já não nos viram — murmurou Nekop, as mãos rudes segurando firme a borda do timão. — Comandante, precisamos de um plano de contingência agora. Se chegarmos mais perto, eles vão nos detectar.
Dante não respondeu de imediato. O vento frio que vinha do norte trouxe consigo um som abafado: sinos distantes, metálicos. Talvez de algum templo, ou talvez um alerta. Ele não arriscaria descobrir.
Apoiou-se no parapeito do convés superior, olhando para a superfície turva do mar. Estavam sobre as águas profundas, onde a luz não tocava o fundo e, se caísse ali, ninguém o encontraria jamais. O precipício na linha costeira, ao leste, surgia como um colosso esculpido pela erosão, uma queda abrupta de pedra onde as ondas quebravam em espuma grossa.
— Vamos tomar outra rota — decidiu, encarando todos os homens que o seguiam, não os deixando responder de imediato. — Quem gosta de escalar?
Nekop virou-se de leve, um olho cerrado como se não gostasse do que já imaginava.
— Quer atracar onde nem os corvos voam?
— Quero que ninguém nos veja — respondeu Dante. — Se Bulianto usava o oceano para mascarar o rastro, ele tinha completa noção do que tinha aqui. Antes de sairmos nos expondo, precisamos ter cuidado. Então, vamos honrar isso.
Freya, uma das Técnicas, que tinha sido escolhida por Nekop, caminhou para perto do Anão, mostrando um pequeno conteúdo descrito.
— O que houve? — questionou Miatamo, mais atrás. — Por que parece que as notícias nunca são boas?
Dante deu uma risada, a primeira em dias. Não podia deixar de ficar excitado com mais uma pequena aventura em um lugar onde nunca tinha pisado.
— Porque nunca são, de verdade.
O Anão agradeceu a mulher e a deixou partir.
Houve um silêncio pesado, seguido do som de cordas esticando quando os homens começaram a agir sem que fosse necessário ordenar. Era esse tipo de decisão que separava os que voltavam dos que afundavam. E naquele momento, Dante sabia que não havia margem para erro.
— Tudo certo, Comandante. O mecanismo da camuflagem foi consertado temporariamente. Temos praticamente dois dias.
Dante bateu o pé algumas vezes no chão, estalando o casco, chegando até a sala de maquinários. Ele nunca entrado lá até no dia anterior, e vendo o quanto os Técnicos trabalhavam, ficou impressionado com o tanto de mentes brilhantes.
Seu pisão chegou até eles, os obrigando a olharem para cima, esperando.
— Ativar o Véu — ordenou.
Guto, um dos Técnicos mais novos, que estava encurvado sobre a consola de energia auxiliar, deslizou as mãos nos conectores de prata e couro. As linhas traçadas no casco — velhas inscrições de proteção e engano, um trabalho de décadas passadas — começaram a brilhar como se almas antigas acendessem luzes sob a pele do navio.
Com um estalo agudo, seguido por um baque surdo que reverberou nos ossos de todos a bordo, o Nokia desapareceu.
Não de fato. O casco ainda estava ali, o convés sob seus pés ainda rangia, e o cheiro de óleo e maresia persistia. Mas à vista de qualquer olho humano ou aparelho que caçasse reflexos, o navio agora era um fantasma. Um ponto cego na superfície do mundo.
— Direção ao leste. Devagar. Sem rastro — disse Dante. A mão no timão era firme, mas os dedos estavam brancos.
Porto assentiu sem dizer palavra, e Nekop mordeu o lábio inferior, olhos presos no perfil das falésias que se aproximavam. A maré batia contra elas com violência, como se o próprio mar quisesse empurrá-los de volta para longe dali. Mas a tripulação mantinha o rumo, com a precisão e o silêncio de quem carregava carga maldita.
Conforme se aproximaram, o precipício se ergueu como uma parede infinita. Rochas negras, polidas pelo vento e pela água, mas ainda afiadas como facas. Havia pequenas reentrâncias, cavernas parcialmente submersas, onde ondas entravam e saíam em espumas violentas. Um lugar onde um homem poderia se esconder… ou morrer esquecido.
— Vai ter que ser aqui — disse Nekop, sem esconder o desagrado.
Dante assentiu, já enrolando a corda em torno da cintura. A primeira equipe desceria com ganchos e grampos, seguindo pelas trilhas que um dia talvez serviram para mineradores de sal ou contrabandistas. Agora, seriam os únicos caminhos seguros.
— Ninguém acende luz alguma — avisou Dante. — Nem sinal. Nem fala alta.
Os homens concordaram com um aceno. Sabiam do que falava. Qualquer barulho errado, qualquer faísca de energia, e não seria apenas o Bastardo ou o Glossário que viria atrás deles. Seriam os caçadores de rastro, as máquinas de interceptação, ou algo pior.
— Vai na frente? — perguntou Nekop, ajustando o arnês nos ombros.
— Sempre fui teimoso — Dante respondeu. E sorriu, mas foi um sorriso sem dentes. — E como Porto gosta tanto de cordas, ele vai comigo. Miatamo e Guaca vão ficar com vocês. Trahaus, comigo.
Ainda afastado, Porto deixou cair uma pequena canequinha de bebida quente.
— Merda, por que sempre sou escolhido quando o assunto é altura?
Trahaus passou por ele, pegando a corda dada por Nekop, e amarrou na cintura. O jovem de Singapura, que Nekop tinha anunciado ser Jack.
Sem os ferimentos dos dias anteriores e bem alimentado, também amarrou a corda com facilidade. E ajudou Trahaus com um nós diferente do que Dante tinha feito no seu.
Nekop se aproximou, entregando um rolo.
— É a lista de coisas que vamos precisar. Se achar o carpinteiro antes do tempo, tenta trazer alguma coisa. Precisamos de muitos utensílios e peças para os Técnicos.
— Certo, vou dar um jeito nisso.
A primeira corda foi lançada. O gancho cravou-se numa saliência a dez metros acima da linha da água, e Dante testou a firmeza antes de começar a subida. Os dedos se cravaram na pedra fria, o corpo curvado como um animal que escala em silêncio, cada movimento pensado para não atrair a atenção do abismo.
Lá em cima, além do precipício, a cidade de Singapura respirava. Mas não para recebê-los.
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