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    A corda rangia a cada puxada, o som abafado pelo rugido das ondas abaixo, mas Dante sentia o eco em cada junta dos dedos. O frio da pedra arrancava o calor das mãos nuas, e o sal marinho deixava a superfície escorregadia como carne viva.

    Ao olhar para trás, viu que a distância era longa demais. O navio não era mais visto, como deveria ser, mas as águas batiam contra as pedras com violência o suficiente para entender que se a queda não os matasse, as ondas fariam.

    Atrás dele, Trahaus e Porto vinham lentos, seguindo seus movimentos. O peso dos equipamentos nos cintos, ganchos de ferro e estojos de couro, fazia-os parecer bestas de carga num paredão onde qualquer erro seria fatal.

    A cinquenta metros acima do mar, Dante fincou o pé numa fissura da pedra e se deteve. O vento ali era mais forte, trazendo um zumbido distante, e tornando seu largo casaco a balançar junto dos cabelos.

    — Jack, situação? — chamou, pressionando os dedos na pedra, encaixando melhor.

    O homem mais acima, olhava na direção do desnível do terreno, pra uma área aberta e remota. Não sabia da história daquele homem, mas vendo como ele se movimentava rápido subindo as pedras, Dante teve quase certeza de que ele já tinha feito algo parecido,

    — Três torres a noroeste, todas operacionais. Os holofotes varrem o setor leste em ciclos de dezesseis segundos. Mas tem mais.

    Dante fechou os olhos por um momento.

    — Eles estão caçando gente, Comandante — completou Jack. — Estão trazendo botes na enseada norte, redes puxando corpos. Dois enforcados nas gruas de descarga. Não é aviso… é triagem.

    Dante abriu os olhos devagar. O mundo parecia mais estreito ali, como se o penhasco apertasse suas costelas.

    — Marinheiros? — perguntou, embora soubesse a resposta.

    — Quando eu vivia aqui, eles faziam isso com quem tinha tatuagens de âncoras ou algum tipo de passdo no Oceano. São gente do mar. Podem ser mortos que não juraram lealdade ao novo Rei do Leste ou apenas moradores.

    O silêncio se arrastou por alguns segundos. Dante se moveu de novo, subindo mais dois metros antes de responder.

    — E os atiradores?

    — Nas torres, quatro no mínimo. Parecem usar aquelas armas antigas, rifles. Sabe como é? — Mas não o deixou responder. — Ainda se movimentam da mesma forma quando eu morava aqui, senhor. Mas não usam o brasão dele. Estão limpos, sem insígnias. Acredito que sejam Caçadores livres.

    Dante entendeu o recado. Mercenários. Gente paga pra matar sem perguntas e sem cobranças. Não era a guarda regular, não eram os lacaios visíveis do Bastardo. Era algo mais sujo, mais desesperado.

    O vento trouxe outro som: o estalo de uma corda se rompendo em algum lugar à esquerda. Por um instante o coração de Dante parou, mas era apenas a lona de um antigo toldo arrebentando na ventania. Ainda assim, o pânico latejou quente atrás dos olhos.

    — Mais quinze metros — avisou Jack. — Depois tem um platô estreito. Se der certo, conseguimos respirar lá.

    Trahaus grunhiu atrás dele, a voz abafada pelo esforço.

    — Platô ou cova rasa, tanto faz. Só quero sair dessa parede.

    Dante não respondeu. Os dedos doíam como se estivessem quebrados, e o sangue pulsava nas têmporas. Mas subiu. Mão após mão, pé após pé. Até que finalmente viu a linha escura do platô recortando a muralha cinza da falésia.

    Ele lançou o braço por cima primeiro, como um pescador puxando a rede cheia. Depois, rolou o corpo por cima da borda e ficou deitado ali por um instante, o peito subindo e descendo, enquanto o sabor do sangue se misturava ao sal nos lábios.

    Porto veio logo atrás, resfolegando como um touro cansado, que caiu de lado, cuspindo no chão de pedra.

    — Odeio lugares altos — murmurou ele, limpando o suor da testa.

    De pé, Jack observava novamente do beiral. Havia duas torres interligadas, e dali, podiam ver o portão que as interligava bem no meio.

    — Movimentação no Portão Dourado. Tem soldados montados lá, e começaram a se alinhar. Parece que vai ter patrulha rodando a parte baixa da cidade.

    Dante rastejou até a borda do platô. Dali, conseguia ver a borda externa de Singapura: uma muralha grossa como um osso exposto, cravejada de placas de aço e canhões automáticos. As torres de vigia pareciam dentes de um animal afundado na loucura. O brilho das lanternas de busca passava como olhos famintos sobre a água, e as ruas internas fervilhavam de figuras. Algumas marchavam em colunas, fardadas e disciplinadas. Outras, vestiam farrapos e carregavam caixotes ou puxavam carroças. Escravos. Ou pior.

    — O que achou? — perguntou Porto, sentando-se ao lado, puxando a respiração como quem se lembrava que ainda estava vivo.

    Dante apertou a mandíbula, olhando as ruas que serpenteavam como veias podres. O cheiro de ferrugem e carne queimada parecia atravessar a distância, enfiando-se no nariz como se ele estivesse ali, no centro daquilo tudo.

    — Essa cidade caçava marinheiros antes de se ajoelhar pro Bastardo. Agora ela se diverte com isso.

    — Vão caçar a gente também — disse Trahaus, conferindo as cordas e os grampos no cinto.

    Dante passou a mão pelo cabo da espada na cintura. O metal frio trouxe uma memória distante, de Render afiando a lâmina de sua espada, no vilarejo, em uma seção de treinamentos noturnos.. “Corta primeiro, pergunta depois”, ele dizia.

    Talvez fosse a melhor filosofia para Singapura.

    — Não estou a fim de ser peixe ou tubarão. Não viemos resgatar ninguém. — respondeu ele. — Quando estivermos lá em cima, não precisam esperar por uma ordem minha. Podem agir com mais liberdade.

    Porto ergueu uma sobrancelha, mas não sorriu. Jack apenas assentiu. Eles sabiam. Aquela missão não era só consertar um navio ou buscar uma rota. Era sobreviver em território onde tudo era armadilha.

    Dante não queria perder ninguém em um lugar desse. Entrar, achar o homem, comprar algumas coisas, e sair.

    É pra ser uma missão bem simples, pensou antes de levantar.

    — Quando for a hora de sair daqui, Comandante — disse Jack menos tranquilo do que antes, ainda atento a movimentação —, espero que tenha um milagre guardado no bolso. Eu sai daqui porque a cidade era autoritária, e agora estou voltando.

    Dante olhou para o céu cinzento. Não acreditava em milagres fazia muito tempo.

    — A gente vai fazer acontecer um — murmurou para si mesmo, antes de começar a se aproximar da beirada e verificar que estavam próximos do topo. — Vamos continuar.

    — Não vai ser mais necessário subir, Comandante. — Jack virou-se, saindo da borda e caminhando até abaixar na parte de dentro do platô. — Aqui tem uma passagem um pouco mais amena. Só vamos precisar rastejar.

    A cara de Porto e Trahaus se afundaram um descontentamento coletivo.

    — Só pode estar de brincadeira — comentou Porto se jogando no chão, de novo. A bolsa na sua cintura tintilando. — Comandante, mais uns minutos para descansar. Estamos subindo faz muito tempo. Precisamos disso.

    Dante olhou para Jack e assentiu.

    — Descansamos primeiro. Partimos depois.

    O rapaz concordou, revelando que precisava disso também. Ele se jogou no chão, respirando fundo e limpando o rosto. Jack era um Técnico, mas Dante não o conhecia direito. Por alguma razão, quando os olhos dele tiveram um vislumbre daquelas torres, sentiu que o rapaz ficou mais acuado.

    Precisava ficar mais afastado das torres ou do Portão Dourado.

    — Ei, você está bem? — a perguntou veio de Porto para Jack. — Sei que odeia esse lugar. Voltar aqui não era seu sonho, né?

    — Não gosto daqui da mesma forma que não gosta de estar em terra firme. — A resposta de Jack pegou todos desprevenidos. — Meu lugar é no mar. Voltar aqui só me faz lembrar do porque fui embora.

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