Capítulo 291: Enfileirados
O cheiro de ferrugem e carne podre fazia parte de Singapura como as torres de aço que riscavam o céu. Dante puxou a gola alta do casaco puído para cobrir parte do rosto, mesmo sabendo que o odor parecia impregnar o couro por dentro.
Quanto mais perto da cidade, mais sentiam o odor estranho. Era uma mistura de óleo, sangue e vinagre, talvez. Mesmo que a cidade ficassem bem perto da costa, o sal parecia inexistente no ar.
— Não fiquem separados.
Eles escolheram um caminho menos tortuoso. Haviam escalados, enfrentado aqueles soldados e caminhavam por mais de três horas. Uma distância segura se fosse levar em consideração. Dante lembrava de quando partia de uma parte de Kappz a outra com extrema velocidade e sem problemas nenhum.
Agora, um movimento muito complicado ou com muito esforço tratava ele como um verdadeiro idoso. Era difícil imaginar como algumas pessoas precisavam ter tanta dedicação.
Se não fosse pelos anos de treino, poderia não estar nem mais vivo.
Trahaus caminhava ao lado de Dante, o queixo para cima, como se desafiando quem olhasse demais. Porto, com sua altura descomunal por conta da nova roupa, vinha logo atrás, as mãos sobre o cabo das machadinhas que parecia ter sido forjado de pura ferrugem. Jack fechava a formação, o olhar agudo varrendo cada esquina.
Singapura era um lugar onde as muralhas internas separavam não só setores, mas castas. O setor pra onde caminhavam, conhecido como Quinto Anel, abrigava armazéns e depósitos de minério, além de alojamentos para trabalhadores descartáveis e piratas em descanso.
Jack tinha dito que era um dos melhores lugares para se entrar por conta da falta de mercenários e também porque eles eram muito mais preguiçosos ali.
Quanto mais se aproximavam do muro, mais as palavras dele se tornavam verdade. Um lugar amplo demais, sem vida alguma, apenas terra e pedras, com uma torre de cada lado, separadas por um muro e um portão vermelho.
— Portão Rubro — a voz de Jack chegou a eles. — Se entrarmos por aqui, vamos dar de cara com a primeira parte do Setor Industrial. Singapura é uma cidade dividida em níveis, então, o Setor Comercial é o primeiro. Temos que descer mais dois níveis para chegarmos lá embaixo.
— Tem isso aqui? — Porto não parecia impressionado, mas cansado. — Merda, vai ser pior do que pensei. Bom que dá pra gente pegar um ou dois pra bater antes de ir embora. O que acha, Comandante?
— Se levarmos problemas de volta pro Nokia, vamos afundar ele.
Essas palavras não caíram muito bem no ouvido deles.
Ao longe, o muro de contenção se erguia como a espinha de um monstro, separando a cidade do mar negro que se estendia para além do horizonte.
Eles não tinham caminhado cinquenta metros desde o último grupo de homens, afastados por quase cem metros, quando ouviram o chamado.
— Ei, vocês quatro!
Jack sentiu o sangue gelar antes de girar devagar, como faria qualquer outro mercenário sem pressa. Um homem de armadura pesada e elmo aberto se aproximava com três soldados atrás dele. As placas de ferro negro de seu peitoral traziam o brasão do Conselho de Ferro: duas serpentes em torno de um martelo quebrado. Ele era um Intendente, ou uma patente acima.
— Vocês estão designados pro muro leste? — O homem olhou para cada um deles como se calculasse a quantidade de carne nos ossos. Sua mão estava pousada no cabo de uma maça curta, o tipo de arma que deixava marcas que ninguém mais via.
Dante assentiu, ajustando o peso do rifle no ombro.
— Sim, senhor. Acabamos de sair da ronda na parte externa. Sem nenhum retorno. Parece que tiveram um problema, mas pediram para voltarmos.
— Ótimo. Tem gente que gosta de ficar vadiando do lado de fora. Precisamos de reforço no leste. O comandante quer mais olhos lá. Uns ratos andaram mexendo onde não deviam. — O Intendente estalou os dedos, indicando que os seguissem. — Agora.
Porto murmurou algo, mas Dante o silenciou com um olhar curto. Começaram a seguir o Intendente, seus passos ecoando no terreno pedregoso, entrando n passarela de ferro enferrujado enquanto subiam uma escada estreita em direção ao nível superior.
A cidade parecia pior ali de cima. As casas amontoadas, feitas de chapas e barris, tremiam ao vento como esqueletos prestes a desabar. O céu acinzentado parecia pesar sobre suas cabeças. Torres de vigia surgiam por todo lado, guarnecidas por atiradores que fumavam em silêncio, seus rifles sempre apoiados nos parapeitos. O muro de contenção se aproximava a cada passo, alto como um precipício, coberto por fileiras de holofotes e cabos que zumbiam como enxames de insetos.
E em partes mais afastadas, onde somente guardas e alguns cidadãos prestavam estadia, o lugar que Jack tinha mencionado. Era uma cidade com nivelamento. Dali, poderiam descer mais. Um túnel, como existia em Kappz, com escadas para debaixo da terra.
— Não tem muita gente ultimamente por aqui, senhor. Quantos estão no muro? — perguntou Jack, sem levantar a voz.
O Intendente não olhou para ele.
— O bastante para manter os ratos fora. Poucos o suficiente pra que precisemos de idiotas como vocês.
Dante ouviu Porto ranger os dentes. Trahaus segurava firme a adaga, apenas esperando uma ordem.
Não era medo que os fazia tensos. Era o conhecimento de que uma palavra errada terminaria com eles empalados no Portão Central, servindo de aviso para os outros. Dante precisava deixá-los quietos, mas era difícil com tanta
Chegaram a uma guarita, onde dois homens jogavam dados sobre um tonel. Um deles ergueu os olhos, observando-os como se fosse a primeira e última vez.
— Quatro? — disse ele, desconfiado.
— Reforços — respondeu o Intendente. — Vieram do sul. Não tinha mais nada pra fazer, trouxe eles pra deixar vocês descansar. Quando descerem, quero que conversem com o Capitão e mandem alguém limpar a bagunça que teve no Comércio. Quero os dois presos.
O guarda assentiu sem mais perguntas e destrancou a grade pesada. Dante passou primeiro, sentindo o cheiro azedo de suor e metal ainda mais forte. O corredor estreito levava para a base do muro, onde plataformas de ferro subiam em zigue-zague até o topo. Cada nível tinha soldados, equipamentos de vigilância e morteiros velhos demais para serem confiáveis.
— Vocês vão para o Terceiro Anel — disse o Intendente, apontando. — Fiquem atentos. Qualquer movimento estranho, atirem. Se for um pescador bêbado, atirem. Se for um rato, atirem. Entenderam?
— Entendido — respondeu Dante.
Subiram em silêncio. Os degraus de ferro faziam barulho sob o peso de Porto, cada passo como um trovão abafado. No terceiro nível, um cabo os recebeu com um aceno impaciente.
— Fiquem ali. — Ele apontou para uma varanda que dava para o mar. — E vigiem.
Dante caminhou até o ponto indicado e olhou ao redor. Estavam próximos do limite externo da cidade. Dali, dava para ver o oceano, vasto e escuro, pontilhado de pequenas embarcações que pareciam se mover sem rumo. Mais perto, a linha das plataformas e das armas montadas.
Demorou um tempo para entender que Singapura não era como Kappz ou a Capital. Era uma cidade armada, de cima a baixo, com estruturas que disparavam contra invasores no mar.
Não era difícil imaginar porque Bulianto não gostava de atracar. Nokia poderia ser afundado com a quantidade de canhões e armas com bocas largas miradas para o mar.
E, além disso, no horizonte, algo que se mexia. Mas podia ser só uma ilusão.
Nas vielas acima deles, mais pessoas passavam. Um nível a mais, e com gente armada. Eles passaram por alguns, saudando com a cabeça. Os olhares eram desconfiados, e Dante não sabia o porquê disso.
Porto encostou-se à mureta baixa.
— Tem gente demais aqui. Era para ser isso mesmo?
— Eles estão com medo — respondeu Jack. — O Conselho nunca manda esse número de soldados pra cá.
Trahaus bufou.
— Isso pra mim não parece medo. Pela quantidade de gente, devem estar esperando algo ou alguém. Mercenários vem pelo dinheiro, e olha quantos.
Abaixaram a cabeça ao ver um homem com uma medalha dourada no peito verde.
O homem parou, avaliando-os de cima a baixo, e bufou.
— Nem pra isso servem.
Se foram da mesma forma que chegaram, fazendo alarde. O homem usava uma boina em cima da cabeça, mostrando que era alguém com mais decoro e posição, mas sua atitude era sempre a mesma.
Vendo o rosto dos três, esperando, Dante sabia o que eles pensavam. Eles precisavam sair dali o mais rápido possível. Mesmo com o navio tendo o cheiro da Pedra Lunar mascarado pelo mar, o Rastro poderia ter sido percebido de alguma forma.
Detestava lendas, ainda mais quando eram sobre assuntos infundados, mas diziam que caçadores como o Glossário sentiam o cheiro das Pedras como tubarões farejando sangue. Dante viu os aparelhos que eles usavam para conseguir chegar até eles.
Não podia demorar muito em terra.
— A gente aguenta aqui por uma hora — disse Dante, sem tirar os olhos do mar. — Depois descemos. Qual rota vamos tomar, Jack?
— Temos que ir pelo Segundo Anel. Se me lembro bem, estamos em cima dos Corredores dos Ratos. Podemos usar isso para ir mais longe.
Dante assentiu com um murmuro.
Porto começou a desmontar o rifle, sem nem mesmo saber o que estava fazendo, limpando-o para manter as mãos ocupadas. E Trahaus apoiou-se na parede, fechando os olhos e respirando fundo.
— Eu realmente espero que esse velho valha a pena — ela disse para Dante ainda de pé.
— Eu também.
O vento trouxe um grito distante, algo entre um chamado e um aviso. Não se moveram, ainda cansados da viagem, e mesmo que se movessem, seria tarde demais para fugir dali.
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