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    O pátio parecia mais apertado a cada minuto que passava.

    Dante permanecia de pé, as pernas enrijecidas pela tensão, enquanto outros soldados e mercenários se acumulavam em torno deles como moscas sobre carne recém-aberta. Homens de todo tipo enchiam o espaço: veteranos com cicatrizes que cortavam os rostos como rios secos, jovens de olhos duros e bocas caladas, outros sujos de poeira e fumaça, mas todos vestidos com fardas que misturavam os tons esverdeados dos Clãs aos amarelados das tropas do Bastardo.

    Alguns conversavam baixo, outros gargalhavam, cuspindo no chão encardido como se para marcar território. Um cheiro acre de suor, óleo e sangue seco impregnava o ar. Era o cheiro de Singapura. Era o cheiro da guerra iminente.

    Eles haviam se colocado próximos a uma das paredes de pedra, um canto onde a sombra parecia um pouco mais densa, protegidos da vista dos superiores mais atentos, mas não tanto dos olhares curiosos dos recrutas que se espremiam ali como se esperassem algum tipo de bênção. Porto roía o canto de um dedo, olhos semicerrados.

    E Jack, como um rato de armazém, parecia se encolher e observar tudo ao mesmo tempo.

    Foi ele quem deu o passo à frente, aproximando-se de Dante com um jeito que ninguém notaria à primeira vista — a não ser que estivesse procurando. Os olhos azuis do rapaz não paravam de se mover, como se tentassem mapear cada ponto cego daquele antro fétido.

    — Não podemos ficar muito tempo aqui — murmurou, a voz abafada pela mão suja que levou aos lábios. As palavras saíram como um sopro quente e urgente. — Senhor, se o Glossário está mesmo vindo até nós, isso significa que Singapura também tem uma Pedra Lunar. E não vai demorar até eles darem por falta de nós no outro lado da muralha.

    Dante não respondeu de imediato. Seus olhos varreram a multidão com lentidão, como se cada rosto fosse um enigma a ser decifrado. Ele reconhecia aquele tipo de concentração: soldados endurecidos pela fome e pela promessa de uma vida gentil, homens com pouco a perder, que fariam qualquer coisa por um punhado de crédito ou uma farda nova.

    E o pior: ali estavam reunidos não apenas mercenários, mas cães adestrados pelo próprio Bastardo, homens que serviam ao Glossário.

    — Eu sei disso — respondeu, enfim, com a voz baixa, porém firme. — Mas ainda não sabemos onde o Carpinteiro está.

    Jack soltou um leve estalo com a língua, os olhos se estreitando. Sua mão tremia um pouco quando puxou o pano do pescoço para cobrir parte do rosto, como um ladrão prestes a pular um portão de ferro. Dante percebeu o gesto — não era medo; era lembrança. Algo naquele lugar fazia Jack transpirar uma ansiedade difícil de esconder.

    — Precisamos sair daqui. E rápido — insistiu Jack, já se afastando da parede para disfarçar a tensão que o fazia parecer um cão acuado.

    Dante não precisou perguntar o que ele havia visto ali. O bastante. O suficiente para entender que Singapura tinha engolido muitos como ele antes. E cuspido ossos.

    Do outro lado do pátio, os mercenários continuavam se reunir. Homens armados com rifles antigos e espadas de aço mal polido se acomodavam como uma multidão faminta à espera de um espetáculo.

    Estavam ali para serem vistos. E para ver. Sabiam que alguém importante estava vindo. Sabiam, provavelmente, quem. Dante sentia aquilo na pele — a mesma sensação de quando uma tempestade se formava sobre o Oceânico Polar I e o vento cortava o convés antes de qualquer raio cair.

    Sair à força? Impossível. Eles seriam mortos antes de cruzar o primeiro arco. E mesmo que escapassem, o Glossário saberia quem eles eram antes que descessem pela trilha de ratos de volta ao navio. E sem o Carpinteiro, o Nokia não passava de um monte de madeira condenada.

    Então a porta pesada no lado norte da praça rangeu, abrindo-se com um gemido prolongado, e por ela passou Trahaus.

    Ela vinha sorrindo. Um sorriso amplo, sem pressa, que parecia pertencer a uma mulher diferente daquela que Dante conhecia. Seus gestos eram suaves, o balanço dos quadris natural demais. Conversava com um soldado de armadura cinzenta, que ria de alguma piada barata, enquanto seus olhos corriam para o decote da armadura aberta no pescoço dela. Ela tocou o braço do homem de leve ao se despedir, erguendo a mão com um movimento gracioso. O soldado não tirava os olhos dela enquanto ela se afastava.

    Porto piscou duas vezes e inclinou a cabeça, sem disfarçar a surpresa.

    — Tá vendo isso, chefe? — murmurou, coçando o queixo. — Me diz que tô vendo certo.

    Dante quase riu, embora a tensão permanecesse.

    — Meus olhos não costumam mentir — respondeu em tom neutro.

    Trahaus caminhou em direção a eles. O sorriso foi sumindo a cada passo, como se uma máscara fosse lentamente removida. Quando chegou perto o suficiente para que eles a ouvissem sem chamar atenção, sua expressão já era de pedra. Um olhar glacial que fez Dante sentir um arrepio subir-lhe pela coluna.

    Ela se abaixou ao lado deles, as costas contra a parede. O ar frio de sua presença parecia empurrar a atmosfera do pátio para longe.

    — Flertando com soldados? — alfinetou Porto, arqueando uma sobrancelha com um meio sorriso. — Nunca achei que veria o dia. Vai trocar a gente por um oficial com cama macia?

    — Diferente de você, seu imbecil, eu consigo mais com um sorriso do que você faria com dez braços inúteis. — respondeu ela, sem sequer olhá-lo. A voz dela era fria como o aço das baionetas ao redor.

    Porto riu por dentro.

    — Disso eu não duvido.

    Dante ergueu a mão, pedindo silêncio.

    — O que você descobriu?

    Trahaus lançou um olhar breve para os soldados mais próximos, avaliando a distância antes de responder.

    — O Glossário deve chegar em algumas horas. Está vindo por uma das correntes marinhas que Bulianto usava no tempo dele. Agora, só o Bastardo e o Glossário controlam essas rotas.

    Ela fez uma pausa. Dois soldados passaram por eles, as botas estalando alto no chão de pedra. Ela só voltou a falar quando os passos diminuíram.

    — Estão atrás dos homens de confiança de Bulianto. Os que sabiam demais. E dos que ainda podem mexer no que ele deixou pra trás.

    — Querem acabar com o legado do Rei — disse Porto, sem esconder a amargura.

    — Não. Não é só isso — murmurou Trahaus, o olhar escurecendo ainda mais. — É o Nokia. Eles precisam dele. E só o Carpinteiro sabe fazer aquela coisa flutuar sem as Pedras.

    Dante assentiu, a mente trabalhando rápido. O navio, o Anão Nekop, as Pedras Lunares… Eram peças de algo maior. E por mais que entendessem algumas partes, ainda faltava a chave.

    — O que mais? — perguntou Jack, a voz rouca, um passo atrás.

    Trahaus não precisou pensar.

    — O idiota que me deu essa informação sabe onde colocaram seu amigo. Vamos ter que nos movimentar, mas deixe comigo, Comandante. Já sei como chegar lá.

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