Capítulo 294: Carpinteiro (II)
— Estou dizendo a verdade — disse Trahaus, com um tom quase ofendido, um meio sorriso nos lábios que escondia um fio de veneno. — Sou nova por aqui. Não faço ideia de como andar nesses malditos corredores. Me perco sempre. Quem sabe a gente pudesse… não sei, sair para caminhar?
A voz dela saiu baixa, rouca na medida certa, a língua passando breve pelos lábios ao final da frase. Um toque sutil que o soldado à sua frente, um homem robusto de pele curtida pelo sol e pela guerra, não ignorou.
Ele a observava com olhos semicerrados, como quem avalia um prêmio raro em um mercado decadente. O brilho ali era fácil de reconhecer. Um homem acostumado a tomar o que queria. Mas não agora. Agora ele esperava.
Engoliu em seco. Um músculo saltou em seu pescoço.
— Ficarei mais do que à vontade para lhe mostrar o lugar — respondeu, baixando o tom de voz até quase um sussurro conspiratório. O canto de sua boca se ergueu em um sorriso lascivo. — Que tal o Terceiro Anel? Tem um lugar ali… tranquilo. Escuro. Dá pra conversar bem perto.
Trahaus inclinou-se só um pouco à frente. A distância entre os dois se encurtou o suficiente para que o homem sentisse a respiração dela em sua pele. Seus olhos pousaram nos lábios dele, e ali ficaram.
— Vamos fazer o seguinte — disse ela, baixando ainda mais a voz, como se confessasse um segredo indecente — me leva até lá e eu te mostro algo que você nunca viu.
O soldado soltou uma risada abafada, quase um rosnado de satisfação, e deu um breve aceno de cabeça para a porta às suas costas, onde a luz se derramava num tom enferrujado, filtrada pela poeira que dançava no ar estagnado. Ele passou primeiro, segurando a maçaneta pesada com a mão coberta por luvas sem dedos. Seus ombros largos balançaram com um ar de confiança desleixada.
Antes de seguir, Trahaus girou o rosto lentamente. Os olhos dela encontraram os de Dante e Porto como se lançasse uma flecha sem ponta. Não havia expressão em seu semblante, mas bastava para os dois entenderem o recado. Era hora.
Dante se ergueu primeiro, ajustando a correia da espingarda nas costas, imitando a postura relaxada dos outros mercenários na sala. Porto o seguiu, sacudindo um pouco os ombros, como se espantasse a poeira — ou a tensão — do corpo.
Disfarçados pela multidão, começaram a trilhar o mesmo caminho. Esbarraram em dois soldados que discutiam sobre algum pagamento atrasado; Dante murmurou uma desculpa sem olhar para trás, e seguiu. Porto tropeçou de propósito em um banco baixo, xingando em voz baixa para parecer um qualquer. Os dois alcançaram a porta, onde a ferrugem comia o batente e a madeira rangia ao menor contato.
Quando passaram para o outro lado, viram Trahaus e o soldado dobrando uma esquina, entrando numa porta à esquerda que parecia se abrir para um túnel mais estreito. O cheiro mudou ali — umidade e óleo velho. O eco dos passos era abafado, como se as paredes fossem feitas para esconder o som de corpos caindo.
— Eles vão descer — disse Jack, a voz próxima demais do ouvido de Dante. Ele surgira do nada, como um espectro, as botas não fazendo qualquer ruído no chão. — Aquela porta leva para o desnível que desce até o Terceiro Anel. Parte industrial. Ferragens, armazenamento de armas, manutenção dos geradores. Se ele for esperto, vai tentar algo longe dos olhos do Comandante. Precisamos chegar lá antes que fechem a entrada.
Não havia tempo para hesitação. Seguiram em frente. O corredor estreito desaguava em uma pequena antecâmara onde um homem aguardava encostado na parede, o rosto pálido e coberto por cicatrizes de queimadura. Usava o uniforme dos intendentes, as insígnias presas de maneira descuidada no colete. Ele ergueu o olhar quando os três apareceram, suspirando fundo, como quem já sabia o que viria.
— Se vão no banheiro, façam em fila — rosnou. Sua voz parecia sair de um barril rachado, rouca e grossa. — Não demorem, ou mando caçar suas peles e esfregar nos mastros, seus idiotas.
— Sim, senhor — responderam quase em uníssono. Dante fez um gesto sutil com a mão, conduzindo Jack e Porto para que passassem adiante, cruzando o espaço estreito como sombras apressadas. O Intendente resmungou alguma coisa em uma língua que Dante não reconheceu, mas não os seguiu. Apenas ficou ali, coçando o antebraço coberto de tecido grosso.
Segundos depois, estavam em frente à porta metálica que descia para os níveis inferiores. Era pesada e empenada nas dobradiças. Dante a empurrou com o ombro, abrindo espaço para Jack e Porto passarem rápido, e estava prestes a seguir quando uma explosão de vozes surgiu atrás dele.
— Quanto tempo vocês acham que podem ficar fora de formação, seus vermes? — A voz trovejou pelo corredor, cada palavra pesada como o martelar de um ferreiro. Dante reconheceu de imediato o Comandante. Um homem conhecido tanto pelo rigor quanto pela violência.
Ele fechou a porta com um estalo rápido, antes que a figura enorme do oficial surgisse de vez. Virou-se para os outros, a voz baixa, um comando sem margem para discussão.
— Vão. Agora.
Porto e Jack sumiram no corredor adiante como flechas soltas. Dante girou nos calcanhares e se encostou contra a parede, fingindo prender o fôlego, como se acabasse de chegar. A porta ainda tremia quando o Comandante entrou.
— Quanto tempo demoram para entrar em formação, seus idiotas? — rugiu ele, caminhando pelo salão amplo, o passo firme fazendo as placas de ferro do piso ressoarem como tambores de guerra. — Não precisamos de parasitas. Foram contratados porque são bons. Então provem. Fiquem em fila e escutem o que tenho pra dizer.
Os mercenários e soldados começaram a se alinhar, como peças de um jogo que só o Comandante entendia. O Intendente reapareceu, empurrando alguns pelas costas, mandando outros calarem a boca com um simples olhar de desprezo. Não havia burburinho agora. Apenas o som de botas se ajustando e fivelas se apertando.
O Comandante parou no centro do pátio. Sua presença parecia dobrar o ar ao redor, como o calor que sobe de um ferro em brasa. Levantou um punho fechado, coberto por uma manopla de couro velho. Uma aura verde, espessa como névoa de pântano, escapava pelos dedos cerrados, e o cheiro que vinha dela era de ferro oxidado.
— O Glossário é um homem ocupado — começou, e sua voz agora era um tom abaixo do grito, firme como pedra polida. — Ele tem caçado nossos inimigos. Limpado a podridão que ficou depois do Rei Traidor e de seus cães. Vocês estão vivos porque ele viu algo em vocês. Talento. Força. Lealdade. Ou apenas o potencial de não serem completos idiotas. Não estraguem isso.
Ele deu um passo adiante. Cada movimento do gigante fazia a multidão enrijecer ainda mais, como cordas esticadas antes do arrebentar.
— Somos homens livres — continuou — tirados da tirania de Bulianto, o Rei que morreu como um cachorro desonrado. Nós não somos mais lacaios. Somos os donos de Singapura. E esta cidade será limpa. Traidor por traidor, cada um vai sangrar. Vamos arrancar os ratos que roem nossas paredes. E vamos pendurar seus ossos para que ninguém mais se esqueça de quem manda aqui.
O Intendente ergueu o queixo, o silêncio caindo de novo como um manto sufocante. Dante percebeu como aquilo mexia com os homens ao redor. A maioria estava arrebatada pela promessa de poder, ou talvez, pela simples chance de serem mais do que nada. “Ações não-verbais”, seu pai dissera uma vez. “Melhor que qualquer mentira dita em voz alta.”
— Não me façam passar vergonha hoje — disse o Intendente, e o tom calmo era mais assustador do que qualquer ameaça. — Muitos de vocês nunca tiveram a chance de ser alguém. Esta é a chance. Agarrem. Ou sumam.
Então ele se virou, os passos ecoando na pedra.
— Glossário vai chegar a qualquer momento.
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