Capítulo 295: Carpinteiro (III)
O corredor estreito se desenrolava à frente deles como as entranhas metálicas de um monstro adormecido. As paredes de aço frio e úmido rangiam a cada brisa vinda das aberturas superiores, onde dutos de ventilação cuspiam um ar carregado de ferrugem e óleo. O cheiro espesso de graxa impregnava o chão, misturando-se ao rastro de suor e sangue que os soldados deixavam pelo caminho.
— E agora? — murmurou Porto, ainda lançando um último olhar para a porta que se fechava atrás deles. Sua voz era um fiapo de inquietação. — O Comandante ficou lá.
Jack, no entanto, já descia a rampa sem hesitar. Seus passos eram firmes, mas silenciosos, e ele nem sequer olhou para trás ao responder.
— Se tivermos o Carpinteiro, nossa missão termina. Vamos continuar em frente.
Trahaus hesitou. Seus olhos pousaram rapidamente em Porto, depois na porta fechada. Algo nela se retesou, como um animal farejando uma ameaça invisível. Desde que conhecera aquele velho, aprendera algo peculiar sobre ele: Dante era teimoso como a própria morte, e, de alguma forma, sempre encontrava um meio de sobreviver.
Ela endireitou o corpo, afastando as dúvidas de sua mente.
— O Capital vai ficar bem.
Fez um movimento seco com a mão, apontando para o corpo inerte do soldado que caíra minutos antes. Seu peito subia e descia de forma errática, mas o golpe que levara na nuca ainda o mantinha desacordado.
— Leve ele pra baixo e esconda. Não podemos ser vistos.
Porto resmungou algo ininteligível, mas se abaixou para puxar o soldado pelo braço. O peso do homem sequer fez cócegas, e ele o arrastou, sentindo o atrito do tecido da farda contra o chão metálico. O corredor inclinava-se levemente para baixo, e a penumbra adensava-se à medida que avançavam.
Jack chegou à porta seguinte primeiro. Ele se abaixou, encostando a orelha contra o metal frio antes de abrir uma fresta minúscula e espiar. A lâmina fina de luz que entrou iluminou seu rosto de maneira fantasmagórica.
— Setor Industrial — sussurrou. — Não se percam.
Sem esperar resposta, puxou a porta e deslizou para o outro lado. Trahaus o seguiu, seus olhos varrendo o ambiente, e Porto foi o último a entrar.
Antes de seguir adiante, Trahaus virou-se rapidamente e fechou a porta atrás deles, abafando os ruídos que vinham do corredor. Do lado de fora, os passos ritmados dos soldados ressoavam como batidas de tambor. Porto olhou para o corpo do homem desacordado, depois pegou uma lona grossa e jogou-a por cima do sujeito, ocultando-o na escuridão da lateral.
— É pra esquentar ele — murmurou com um sorriso enviesado, limpando as mãos.
Nenhum dos outros dois riu.
Jack e Trahaus apenas o encararam, impassíveis, como se ele tivesse dito algo completamente sem graça.
— O quê? — Porto ergueu as mãos, fingindo indignação. — Foi uma piada. Só uma piada.
Os dois balançaram a cabeça e voltaram a caminhar.
Porto suspirou, resmungando consigo mesmo, e os seguiu.
Do lado de fora da porta, no Setor Industrial, o cheiro de metal quente e carvão queimado tomou o ar. O chão era de um concreto trincado e manchado de óleo, e as grandes tubulações que percorriam as laterais expeliam vapor esporadicamente, como bestas mecânicas prestes a despertar.
Abaixo deles, máquinas gigantescas gemiam em um ritmo constante, alimentadas pelo trabalho incessante de operários que mal erguiam o olhar. Os três se misturaram à multidão, atravessando a névoa espessa que flutuava sobre as caldeiras.
Jack não precisou repetir: Eles seguiram em frente.
I
Entre os soldados reunidos, apenas murmúrios insatisfeitos e o estalar ocasional de botas batendo contra o chão.
Dante estava no meio de um círculo novo, cercado por mais de dez deles. Homens e mulheres de expressões duras, rostos marcados por anos de serviço. Todos esperavam a chegada do Glossário.
— Todo dia é a mesma coisa — resmungou um dos soldados, a voz áspera pelo cansaço. — Sempre nos tratam como se fôssemos idiotas e inúteis.
Dante não disse nada. Apenas concordou com um breve aceno, deixando que a conversa fluísse por si só.
— O Comandante não sabe que somos nós quem fazemos toda a limpeza, a organização… — outro acrescentou, com um suspiro arrastado. — Até mesmo temos que ficar xingando os moradores, como se isso fosse parte da nossa função.
— Minha família também é xingada pelos outros soldados — murmurou um terceiro.
— E a gente nunca pode fazer nada.
— Claro que podem.
As palavras de Dante cortaram o lamento como uma lâmina afiada. Os soldados o encararam. O brilho pálido das tochas dançava em seus olhos cansados.
Dante recostou-se contra a mureta baixa, cruzando os braços, e continuou:
— Não é difícil imaginar que todos aqui enfrentam problemas todos os dias. Singapura já foi uma cidade melhor? Sim. Mas hoje… está inviável continuar assim. O Comandante e o Intendente precisam nos ouvir, porque somos nós que mantemos essa cidade funcionando. Eles podem pagar pelo nosso serviço, mas, sem nós, eles não têm serviço algum.
O conselho encontrou alguma resistência. Alguns franziram a testa, outros desviaram o olhar, inseguros. Mas Dante percebeu que alguns começaram a concordar, ainda que de maneira tímida. Ele queria inflamar um pouco do orgulho deles.
— Quanto tempo vocês estão aqui? Anos, não é?
— Tem uns que passam de décadas — um soldado respondeu.
Dante abriu um meio sorriso, deixando a provocação pender no ar.
— Estão vendo? Boa parte das pessoas aqui vivem disso. Quantas vezes ouvimos o Comandante nos insultar? Ele nem parece que pertence a este lugar.
— Se não me engano, ele é de Shipas — murmurou um dos soldados.
Dante ergueu o braço, apontando para ele.
— Exatamente. Não conhece nossa história, não sabe de onde viemos, nem pelo que passamos para chegar até aqui. Ele sequer entende a quem protegemos e por quê.
O silêncio que se seguiu foi pesado.
Dante respirou fundo, sentindo a tensão crescendo ao seu redor. Precisava escolher as palavras certas.
— Quem aqui gosta de ser humilhado? Quem gostaria de ser tratado como um cão de rua depois de anos de serviço? Vocês acham que ele suportaria isso? Somos feitos de carne, meus amigos. Não de pedra. Precisamos mostrar que também somos humanos.
Alguns soldados se mexeram, inquietos.
— E sim, recebemos pagamento. Mas será que somos pagos pelo que nos fazem passar? Olhem ao redor. Olhem uns para os outros. Estão exaustos, desgastados. E ainda precisam fingir que são fortes quando voltam para casa.
Dante viu cabeças balançando em concordância. Pequenos murmúrios de aprovação.
Um sussurro de insatisfação havia sido plantado ali. E, se bem nutrido, poderia crescer em algo muito maior.
Ele apenas precisaria esperar.
A porta se abriu novamente. E eles começaram a se alinhar.
O Comandante entrou e atrás dele, o próprio…
Glossário.
Ele caminhava com passos precisos, firmes, como se o tempo e o espaço ao redor dele se moldassem à sua vontade. Vestia um terno escuro impecável, ajustado ao seu porte alto e esguio, e um sobretudo longo que se agitava levemente atrás de si. A gola do casaco erguia-se até quase tocar sua mandíbula, ocultando parte do rosto sob as sombras. Seu cabelo, perfeitamente penteado para trás, era de um preto lustroso, sem qualquer fio fora do lugar.
Diferente de todos os outros, ele tinha uma aura mais compacta do que opressora. Dante lembrava de homens como ele: Kalish ou Comandantes da Capital.
Não era o medo que os retratavam, era ao respeito pela sua conduta.
Cada soldado se enrijeceu à sua passagem. Dante sentiu a mudança no ar, era como se o próprio ambiente se encolhesse na presença daquele homem.
Quando ele parou no centro da sala, o som de suas botas contra a pedra pareceu ecoar por mais tempo do que o natural. Seus olhos frios e calculistas varreram o grupo de soldados, pousando por um instante sobre Dante antes de seguir adiante.
Então, ele falou.
— Singapura está podre.
Firme e sem pressa, como se cada palavra tivesse sido esculpida antes de ser proferida.
— Durante anos, toleramos a decadência. As ruas afundaram na lama. Os mercenários de Bulianto avançaram para dentro de nossas muralhas como ratos em busca de restos. O Comandante e o Intendente têm feito um trabalho… adequado, mas adequação não é o suficiente.
Seu olhar era afiado como uma lâmina enquanto avançava mais alguns passos, o casaco se movendo como um manto de escuridão ao redor dele.
— Chegamos a um ponto de ruptura. As velhas estruturas não suportam mais. E então, o destino, sempre caprichoso, nos oferece uma oportunidade.
Ele fez uma pausa, deixando a expectativa se infiltrar nos soldados, sugando cada respiração para dentro de um vácuo de tensão.
Não importa o que eu disse antes, ele tem lábia para fazer acreditarem nessa farsa.
— Vocês ouviram os boatos. Todos ouviram.
Dante sentiu os olhares se cruzando ao seu redor. Um rumor pode ser ignorado. Dois podem ser ridicularizados. Mas quando um sussurro cresce até mesmo entre os homens mais racionais, ele deixa de ser um mero sussurro.
Glossário deu um meio sorriso. Um sorriso sem calor, sem alegria. Apenas estratégia.
— Minérios foram encontrados. Riquezas escondidas sob o próprio solo de Singapura. Se é verdade ou não, pouco importa. Porque a cidade não será mais a mesma.
Outro passo.
— A partir de agora, Singapura passará por uma reestruturação completa. Suas leis, suas forças militares, seus habitantes. Os que são úteis se manterão de pé. Os que não são… terão o mesmo destino das velhas casas podres que já foram derrubadas.
Ele estendeu uma mão enluvada, apontando vagamente para as muralhas, como se já pudesse enxergar a cidade futura erguendo-se das ruínas.
— Eu preciso de homens que enxerguem essa oportunidade pelo que ela é. A pergunta é: quais de vocês têm a ambição necessária para estar do lado certo da história?
O silêncio pesou sobre o grupo.
Dante viu alguns soldados endurecendo a postura. Outros desviaram o olhar, inquietos. Não era apenas uma proposta. Era uma escolha.
E, como todas as escolhas feitas em Singapura, vinha acompanhada de uma promessa velada:
Ou você se alinha à visão do Glossário…
Ou você é esmagado por ela.
— Por isso, preciso que me tragam aqueles que chamam de Carpinteiro. — Foram as palavras finais de Glossário. — Aquele que me trouxer o homem será meu mais novo Comandante em Singapura. Estão prontos?
Merda, tenho que agir rápido agora.
— E para onde vamos levá-lo, senhor? — A pergunta partiu de um soldado atrás de Dante. — E onde ele está?
— Levem isso como uma caça a recompensa. — O sorriso dele era audacioso, curvando aqueles homens em seu próprio armamento. — Aquele que levar o Carpinteiro para meu navio estará mais perto de tudo que sempre sonhou.
Dante praguejou mentalmente. Quem era esse cara?
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