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    Já fazia quase uma hora que Flicks, o Carpinteiro, examinava minuciosamente o casco interno do Nokia. O navio havia deixado Singapura no dia anterior, mas só agora o velho artesão tivera tempo e disposição para descer ao convés dos Técnicos e encarar a realidade: o casco estava um desastre.

    Com a expressão cansada e os ombros caídos, ele limpava o suor da testa com um pano encardido, o olhar sempre voltando às rachaduras e buracos. Suspirou alto antes de murmurar algo para si mesmo, em um tom misto de exaustão e orgulho.

    — Faz tempo que não vejo um navio tão destruído se manter erguido no mar. Preciso admitir… — Ele tocou uma das placas com carinho. — Fiz um ótimo trabalho da última vez que mexi nisso aqui.

    Dante e Nekop observavam de longe, sentados sobre uma estrutura metálica deformada que outrora fora um suporte de armamento. O convés dos Técnicos ainda carregava os destroços da última batalha — o ataque brutal de Bulianto, quando seus canhões quase partiram o navio ao meio.

    Boa parte da madeira estava enegrecida por queimaduras, e as estruturas metálicas, entortadas como se fossem feitas de argila. Flicks andava devagar, testando cada tábua com dedos experientes. Parava, batia com os nós dos dedos, escutava o som e anotava algo em um caderno de couro já gasto.

    O processo se repetiu centenas de vezes, num ritual quase hipnótico: toque, batida, anotação. Ao lado, Nekop também fazia suas próprias anotações, embora com um propósito completamente distinto. De tempos em tempos, o anão levantava o caderno e mostrava para Dante mensagens escritas à mão.

    — Vazamento do outro lado — ele resmungou, o cenho franzido. — Se não consertarmos logo, perdemos a camuflagem.

    — Não se preocupem com isso — interrompeu Flicks, sem desviar os olhos da madeira corroída. — Esse navio não vai precisar de camuflagem se não estiver flutuando. Temos, no máximo, seis dias pra improvisar madeira e ferro.

    Dessa vez, a preocupação se fez real.

    — Seis dias? — Dante cruzou os braços, o tom mais sério. — Esse é o tempo que temos?

    — No máximo — confirmou Flicks, agora encarando o teto danificado acima deles. — Se afundarmos antes disso, não vai importar o quão invisíveis somos. — Procurou um canto para sentar, uma cadeira torta que rangeu sob seu peso. — Bulianto tinha um sistema de suprimentos… Aposto que Nekop lembra como funcionava.

    O anão soltou um suspiro e mergulhou o rosto no caderno, claramente contrariado.

    — Não gosto disso.

    — Não pode ser tão ruim assim — ponderou Dante, curioso. — O que ele fazia?

    — A lógica é a mesma de sempre, mas Bulianto… — Nekop virou algumas páginas do caderno, revelando mapas, nomes e coordenadas. — Ele fazia acordos com gente que ninguém queria lidar. Se achou que ele era um homem honrado, foi ingênuo.

    Dante soltou uma risada seca.

    — Perdi essa ingenuidade há muito tempo. Pode falar.

    Nekop apontou para um nome no topo da página.

    — Duncan Reborn. Chamam ele de “Divino”, mas é um desgraçado. Rouba navios de mercadores jovens, comanda um dos maiores mercados de ferro e madeira da região. Dizem que ele toma um cargueiro por mês durante as rotas comerciais.

    — Ótima ideia — ironizou Flicks, visivelmente tenso. — Duncan é um dos poucos que até Bulianto evitava. O homem tinha fama de executar qualquer um.

    — Executar ladrão não é novidade — rebateu Nekop. — Não estou dizendo pra enfrentarmos ele de frente, mas sim o contrário. Usar a estratégia dele contra ele mesmo.

    — Como? — questionou Dante, analisando os dados. — Ele está em terra firme.

    — Isso torna tudo mais complicado — disse Flicks, levantando o braço. — Nosso navio está um caco. Fingir que somos comerciantes com esse casco rachado seria suicídio. Outra ideia, por favor.

    Nesse momento, a porta rangeu. Pomodoro entrou, ainda usando seu manto de curandeiro, sujo e manchado, mas sua expressão mantinha-se impassível. Flicks o cumprimentou com um aceno. O curandeiro respondeu com o mesmo gesto antes de falar:

    — Estava ouvindo. Concordo que a ideia não é das melhores. Duncan caça qualquer um que ameaça seu controle. Mas como ele opera em terra, são seus capitães que atacam os cargueiros maiores nas rotas marítimas. Eles conhecem as rotas… mas não as exceções.

    Nekop folheava o caderno, pensativo.

    — O que nos falta é gente. E força. Não temos como enfrentar uma frota ou sequer alcançar essas rotas.

    — Não precisam de força, precisam de artimanha — disse Pomodoro, sentando-se com calma. — Duncan valoriza muito suas mercadorias. Se atacarmos diretamente, ele reage. Mas se usarmos os próprios comerciantes como isca…

    — Eles não pagam por proteção — retrucou Nekop. — Não aceitam ajuda.

    Dante deu uma gargalhada, apontando para Pomodoro.

    — Isso foi cruel. E bem pensado.

    Pomodoro esboçou um sorriso sutil. Flicks e Nekop se entreolharam, confusos.

    — A ideia dele — explicou Dante — é simples. Esperamos Duncan roubar a carga… e então, nós roubamos dele. Um ataque secundário, rápido e limpo. É como roubar o próprio ladrão.

    — E você acha que eles vão cair nessa duas vezes? — Nekop parecia cético. — Depois do primeiro ataque, eles vão estar preparados.

    Dante olhou para Flicks.

    — Do que precisa pra manter o navio flutuando?

    — De muita coisa. E de um porto. Preciso atracar pra realizar qualquer reparo sério. Mas… — Ele ergueu o olhar. — Se tiver seis dias, consigo improvisar. Não vai ser bonito, mas talvez funcione. Se tiver mão de obra e materiais, posso até reforçar.

    Dante assentiu, firme.

    — Faça o que for preciso. Improvise. Só preciso que mantenha esse navio vivo até conseguirmos o resto. Nekop, preciso de um lugar isolado. Nada de cidade grande ou zona movimentada. Um lugar onde ninguém vá nos procurar por encrenca.

    Sem dizer nada, Nekop saltou da cadeira. Seus pés bateram no chão com força, e ele puxou uma pena de escrita, jogando as folhas antigas de lado e começando a anotar freneticamente em uma nova página.

    Enquanto isso, Flicks girava em direção ao casco novamente, seus dedos buscando a caixa de ferramentas, que repousou com um baque leve sobre a mesa. Já revirava parafusos e chaves antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa.

    Pomodoro virou-se para Dante.

    — Preciso que venha comigo — disse, levantando-se. — Existe alguém que quer conversar com o novo Capitão.

    Dante ergueu uma sobrancelha. Então se levantou.

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