Índice de Capítulo

    Quando Pomodoro abriu a porta de um dos quartos silenciosos, Dante já esperava encontrar alguém lá dentro — mas não exatamente ela. Nunca haviam trocado uma única palavra pessoalmente, embora seus nomes já tivessem cruzado os ventos do Nokia algumas vezes. Assim que entrou, parou por um segundo.

    A mulher estava sentada na beira de uma cama estreita, envolta por lençóis amarelados do tempo. Um curandeiro ao lado segurava um livro aberto diante dela, lendo em voz baixa, quase como uma canção distante. Mas seus olhos… seus olhos não acompanhavam a leitura. Estavam fixos em um ponto vago, como se o mundo real ainda estivesse um passo além de onde sua mente conseguia alcançar.

    Sinora.

    Era esse o nome que Pomodoro havia sussurrado no caminho, mas Dante só reconheceu verdadeiramente ao ver o rosto dela. Se algum dia houve força em seu olhar, ela agora jazia drenada, como se arrancada com brutalidade pelos dias em que esteve inconsciente. Foram mais de algumas semanas em coma. Não havia ferimentos aparentes, mas o corpo mostrava sinais de fraqueza: a pele, ressecada; os cabelos, despencando para o lado do rosto em mechas opacas; os olhos, estreitos como frestas de janela em noite de tempestade.

    Não havia nobreza em sua postura, nem raiva, nem orgulho. Apenas cansaço. Um espírito quebrado, tentando respirar no meio de escombros internos.

    — Sinora. — A palavra cortou o ar com cuidado, mas ela reagiu. Lentamente, girou a cabeça em direção a Dante, como quem desperta de um sonho que já durava demais.

    Ele se aproximou com passos contidos e puxou uma cadeira. Pomodoro, mais próximo, fez a apresentação com a calma de quem entende o peso do momento.

    — Este é o Comandante Dante — disse, apontando sutilmente. — Foi ele quem tirou a senhora e toda a tripulação do Nokia do Bastardo naquele dia.

    Por um instante, houve algo no rosto dela que quase se assemelhava a um sorriso. Mas não se completou. Em vez disso, ela esticou uma mão frágil sobre os lençóis, os dedos tremendo ao tentar alcançar os de Dante.

    — Eu… preciso agradecer, senhor. — A voz era fraca, como se soprada por dentro de um túnel vazio. — Ouvi dizer que venceu aquele demônio. Meus homens… também?

    — Estão aqui. Todos eles. — Dante segurou a mão dela com firmeza, mas sem apertar, respeitando a fragilidade que sentia em sua pele fria. — Não consegui trazer todos os que caíram… Mas Bulianto fez com que a maioria retornasse antes de cair. Eu tirei o restante a tempo. Não podia deixar que aquilo acontecesse de novo.

    Ela assentiu, devagar. Um movimento quase imperceptível.

    — Espero que saiba… — começou, com um pouco mais de ar — que salvou mais do que nossas vidas, Dante. Salvou muito mais gente do que imagina.

    Dante franziu levemente o cenho e se inclinou um pouco mais na cadeira.

    — O que quer dizer com isso?

    Sinora respirou fundo — mais fundo do que antes — e voltou o rosto para o teto, como se buscasse forças em algum canto da memória.

    — O Bastardo não é só um tirano… é um devorador de legado. Ambicioso até os ossos. Caçou todos os capitães de frota de Bulianto, um por um. Mas a mim… ele me escolheu primeiro. Porque queria minha habilidade.

    Dante franziu as sobrancelhas, mas não interrompeu.

    — A capacidade de criar os papéis que Nekop usa. Aquelas folhas especiais, capazes de cruzar continentes com mensagens que ninguém mais consegue decifrar… — Ela respirou fundo. — Só eu sabia fazer. E deixei muitos desses papéis espalhados em ilhas e cidades por onde passamos. Se ele tivesse capturado o Nekop também… poderia fingir ser Bulianto. Enviar mensagens falsas. Manipular alianças. Fazer exércitos marcharem contra seus próprios aliados.

    — Não seria só um ataque. — Dante compreendeu. — Seria um massacre.

    — Exatamente. — Os olhos de Sinora se moveram levemente em sua direção. — Ele não me matou porque eu era útil. E também nunca tocaria em Nekop. Não ainda.

    — Ele queria tomar o lugar de Bulianto… e destruir tudo o que ele construiu.

    — Pior, Dante. — A voz dela desceu para um tom quase sussurrado. — Ele quer o Rastro.

    Dante ficou imóvel por alguns segundos, a palavra martelando em sua cabeça.

    — O Rastro? — repetiu. — Uma história bem contada, mas tão real quanto.

    Sinora não respondeu imediatamente. Pomodoro, ao lado, mantinha os olhos sobre Dante como se soubesse exatamente o que aquilo significava. Um silêncio pesado se instalou.

    — Talvez pra você seja só uma história — ela disse, por fim — mas o Bastardo acredita nela. Acha que existe algo no centro disso tudo… algo que pode reescrever o mundo como conhecemos. Algo que chamam de… Desejo.

    Dante fechou os olhos por um instante. A palavra Desejo trazia ecos distantes. Imagens da Capital, de Kappz, e das vozes que ouviu quando ainda tentava entender quem era. O Rastro era o Desejo? Então, Veronica, a IA de Juno, sabia disso todo o tempo?

    O que aconteceu no mundo para ele ser arrastado para esse problema tão complexo? E o que significava de verdade o Desejo?

    Pomodoro o observava com atenção, como se esperasse por uma reação mais concreta. Mas Dante não disse nada. Não ainda. O peso daquela informação ainda girava dentro dele, sem forma. Só a certeza: aquilo era maior do que qualquer coisa que enfrentaram até agora.

    Haviam pessoas mais estudiosas do que ele, pessoas com mais tempo buscando por algo que apenas agora era do seu conhecimento. Bastardo e o Glossário, o Rei do Oeste e as Rainhas. Os problemas se amontoavam um em cima do outro, como uma pilha prestes a ser derrubada, e ele se movia diretamente para a queda de tudo.

    — Uma luta que nunca foi sua de verdade — disse Sinora, a voz carregando uma dor discreta, quase íntima. Seus olhos, mesmo estreitos, pareciam guardar mais lembranças do que palavras. — Minhas folhas ainda funcionam. Nekop tem como se comunicar com alguns… mas não espere uma resposta convidativa.

    Dante assentiu, com a seriedade de quem já contava com isso.

    — Não vou.

    Sinora desviou o olhar, encarando o nada por alguns segundos, como se procurasse algo entre as rachaduras da parede.

    — O Bastardo já estava se movendo antes de me acertar. — Sua voz soou um pouco mais firme, como se aquela verdade já tivesse se repetido dentro dela centenas de vezes. — Ele fez alianças com os piores do Oceânico Polar II. Se tivermos sorte, talvez não o vejamos tão cedo.

    Ela se virou devagar para Dante, o olhar curioso, mas sem perder o cansaço que carregava no rosto.

    — Quais são os planos, Capitão?

    Dante respirou fundo, apoiando os antebraços nos joelhos. Seus olhos estavam fixos no chão por um instante, mas logo se voltaram para ela com firmeza.

    — Reformar o navio é o primeiro passo. Se não conseguirmos consertá-lo em seis dias, vamos enfrentar problemas maiores do que o Bastardo. — Sua voz era direta, seca. — Depois disso, vamos atrás da carga de alguns cargueiros. Temos Duncan Reborn na nossa lista de prioridades.

    Sinora soltou um suspiro longo, que se espalhou pelo quarto como fumaça. O som parecia arrastar consigo memórias pesadas.

    — Esse é um homem podre. Vive de acordos desonestos com metade do Continente Fluvial. Apoia a causa dos tiranos, das famílias que governam o Oceânico Polar I e III… Mas a marinha tem sido forte no Polar I. Eles ainda resistem.

    Pomodoro, que até então observava em silêncio, se aproximou com um leve ranger do assoalho sob os pés.

    — Conhece o motivo de Bulianto ter se aliado com a marinha de lá?

    — Pelo mesmo motivo dos outros — respondeu Sinora, sem hesitar. — A guerra é inevitável. O Continente Fluvial é um território cortado por mares e rios que se entrelaçam, e os navios são o único modo de resistir ao avanço. Alguns até falam sobre uma possível intervenção do Continente Whalien… mas não existe chance. Nem tempo. Bulianto queria paz, Dante. Queria mesmo. Mas sempre dizia que havia um grupo… um grupo fazendo do inferno um projeto de terra firme e mar aberto.

    Ela respirou fundo.

    — O Rei do Oeste. O Bastardo. Glossário. Os Cultistas. Feiticeiros… e os Prisioneiros Acorrentados. Todos eles querem a mesma coisa.

    — Guerra — concluiu Dante.

    — Poder. Terra. — Ela apertou a mão dele, mais forte dessa vez, apesar da fragilidade do toque. — Duncan Reborn é um deles. Um dos que têm as mãos sujas, mas que nunca saem do conforto de terra firme. Se for atrás das embarcações dele… vai precisar se conectar com os Comerciantes.

    Dante fez uma expressão amarga.

    — Não é o que eu gostaria no momento. Já ouvi falar deles. Fortes, influentes, mas perigosos. E agora… não temos como nos filiar a ninguém. Estamos reconstruindo. Há problemas demais antes de pensarmos em alianças.

    Pela primeira vez, um sorriso genuíno, ainda que frágil, escapou dos lábios de Sinora. Mas junto dele, vieram algumas tosses que a fizeram fechar os olhos por um instante. Quando voltou a encarar Dante, havia algo quase maternal em seu olhar.

    — Você é diferente de Bulianto, Dante. Alguns dos tripulantes podem odiar isso… mas você pensa neles antes de pensar em si. Isso muda as coisas. Não sei se terei forças para me recuperar a tempo de ajudar… mas ainda tenho algo pra te entregar.

    O curandeiro, que havia permanecido atento no canto do quarto, rapidamente se abaixou e retirou algo de uma sacola próxima à cama. Um rolo — um pergaminho selado por uma tira de couro vermelho. Esticou os braços e, com respeito, entregou a Dante. O comandante o segurou com ambas as mãos, voltando a se sentar, mais próximo da cama.

    — É uma das suas páginas?

    — A última que consegui fazer. Nekop vai precisar dela. É a escritura que consegui concluir antes de Bastardo nos atingir. Toda a conversa… tudo o que ele disse… foi convertido em palavras. — Ela fez uma pausa breve. — Se algum dia chegar o momento de expor aquele desgraçado, você terá a arma perfeita.

    E então sorriu outra vez, embora fraca.

    — Mas também tem o necessário pra aquele anãozinho escrever outro livro. Um novo livro… pra um novo capitão.

    Dante apertou de leve suas mãos, silencioso, com respeito. Havia algo pesado, mas bonito naquele gesto. O silêncio que se seguiu foi preenchido apenas pelo som da respiração de Sinora, cada vez mais tranquila. Seus olhos, pouco a pouco, foram se fechando, como se finalmente pudesse descansar sem medo.

    Ela adormeceu com os dedos entrelaçados aos dele.

    E pela primeira vez em muitos dias, o quarto ficou em paz.

    Dormia, para um outro dia, poder acordar novamente. Dante a esperaria.

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