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    — Lembre-se, não precisa se matar apenas por alguns galões de água. — Clara passou por ele. Ainda ficavam acima dos telhados, observando o reservatório bem distante. Ela cruzava os braços, fitando o aspecto crucial de toda a vida. — Desde de sempre eu tento ajudar como posso, Dante. Esse lugar já teve certa esperança, mas hoje vive querendo apenas sobreviver mais um dia. Já tivemos gente demais que tentou, e quando descobriram o tamanho da dificuldade, eles pararam.

    — E pra onde eles foram?

    Clara deu de ombros, suspirando um pouco.

    — Preferem viver sozinhos, apenas. Dividir comida, remédios ou água com tanta gente nunca foi a verdadeira intenção deles.

    — Queriam apenas ter uma boa vida.

    Ouviram uma pequena queda e viraram. O atirador Marcus vinha caminhando. A Carabina tinha sido modelada como uma criança de colo, ajustada na diagonal, e segurada apenas pelo guarda-mato.

    Tinha trocado o capuz do dia anterior. Dante achou pior ainda, a sensação era de que observava um fantasma. Em cima do rosto, uma manta verde-escuro, caindo até seu ombro. A roupa também mudou, o traje imundo que usava foi substituído por um casaco bem largo e pesado, dando a entender que seu corpo era bem mais robusto.

    E era, Dante sentiu o pisão dele no dia anterior.

    O que mais deixou Marcus diferente era a estrutura na lateral dos olhos. Não era noite, mas o estranho aparelho metálico se unia tampando o que restou da sua humanidade básica. Os olhos foram substituídos por um único círculo de vidro que se esticava e retraía de tempos em tempos.

    — Pronto pra missão, senhora. — Até sua voz parecia mais fechada, grave. — Missão de Reconhecimento e Estoque devem ser feitos antes do meio-dia, como instruído. Não quero me atrasar.

    — Ótimo. Parece que já estão prontos. — Clara encarou Dante por um segundo e esticou a mão. — Prefiro que use algo menos chamativo aqui em Kappz.

    Ela foi até um dos armários estacionados na lateral, e pegou um casaco vermelho. Grande, com um suspensório de couro. Dante o tomou e ao chegar perto do próprio peito, a farda branca puxou a roupa para si, mesclando internamente.

    Clara e Marcus ficaram um pouco curiosos. Até mesmo Dante tomou um susto quando a roupa se encaixou perfeitamente no seu corpo, lhe dando uma mobilidade melhor do que antes. Ele moveu o braço de um lado para o outro, mas tudo parecia encaixado simetricamente.

    Até a calça se ajustou ao seu tamanho.

    — Não faço ideia do que você é — disse Marcus —, mas você continua impressionando. Vamos indo. — Ele deu alguns passos seguindo na direção do final do telhado. — Senhora, os outros querem uma reunião. Pedem pela sua presença do que vão fazer sobre os remédios.

    Clara ficou cansada só de ouvir sobre.

    — Vou ver o que posso fazer.

    Marcus assentiu e subiu o beiral. A máscara de ferro em seus olhos se contorceu para frente e voltou. Dante subiu junto, ficando bem ao lado. A cidade inteira tinha sido destinada à destruição, mas quando o sol revelava a natureza florescendo, os pássaros e esquilos correndo entre as árvores que nasceram mesmo trinta ou quarenta metros acima do solo, a cena não parecia tão ruim.

    Era um lugar que não precisava de ninguém para se manter.

    — Me acompanhe — disse Marcus.

    Ele saltou e caiu no terraço abaixo. Dante se jogou, caindo rolando e o seguiu em uma disparada.

    I

    Marcus chegou à imensa parede do reservatório. A parede era alta, pelo menos duas a três vezes uma casa. A vegetação também corria pelo cimento como um tapete natural, subindo e tomando forma por cima do muro.

    Eles deram a volta até chegarem em uma lona cheia de caixas abertas. Haviam galões de água vazios jogados para todos os cantos. Dante pegou um deles no chão, mas Marcus ergueu o dedo, pedindo silêncio.

    O vento soprava mais calmo por ali por causa da barreira natural que os prédios forneciam. No entanto, era bem mais frio do que aparentava. Ao encarar a própria mão, Dante percebeu a própria pele com alguns filamentos esbranquiçados.

    — Tome cuidado —ouviu de Marcus alguns passos adiante. — Estamos em um ninho.

    — Ninho? — Dante viu as portas mais a fundo, escancaradas e quebradas, vidro jogado no chão ao mesmo tempo que as janelas foram arrebentadas. Também tinha sangue, bastante jalecos espalhados. — Ninho de Felroz?

    — E outras coisas.

    Marcus tornou a baixar sua arma e abrindo uma segunda porta para uma área mais interna. Com cuidado, os dois entraram. O sangue seco no chão fez Dante seguir o rastro com os olhos, na direção de um rombo do tamanho de uma porta na parede para o salão de entrada.

    Nada ali cheirava bem. Nem mesmo seu próprio odor.

    — Dona Clara pediu para te trazer aqui para pegar apenas um pouco de água —disse Marcus chegando mais perto de uma pequena bacia. Ele abaixou e esperou Dante fazer o mesmo. — A reserva fica bem mais pra frente, depois do salão e da zona de tratamento.

    — Por que a água fica verde aqui durante o dia?

    — Ninguém sabe ao certo. Clara tem quase certeza de que existe algum tipo de material que ainda está funcionando mesmo sem energia. Mas o porque faz durante a noite, ela não sabe.

    Dante tinha certeza de que não era um mistério complexo demais para resolver. Nas paredes, até nos buracos que se isolavam a escuridão a dentro, dezenas de fios desencapados se mostravam soltos, quebradiços e jogados.

    Pela falta de energia elétrica, eles não emitiram nenhum tipo de curto. A cidade inteira ficava um breu de madrugada, mas a água de um reservatório funcionava?

    — Já ouviu sobre placas solares?

    Marcus negou sem dizer nada.

    — De onde eu vim, o Alto Comando tinha energia sustentável. São placas grandes que possuem eletrodos, um tipo de circuito, que converte a energia solar em energia elétrica. — Dante via um fio se estendendo para cima, na direção da mais alta parte do reservatório. — Eles nunca precisaram de um moinho ou algo do tipo porque essa placa facilitava o trabalho deles.

    — E como funciona uma placa dessa? Dá pra gente levar?

    — Não sei. Nunca vi uma de perto. — Dante sorriu ao lembrar de Talia. — Minha irmã dizia que se fosse engenheira, iria construir um desse do zero. Sempre ficava me mostrando os esboços dela, mas se vamos levar uma dessas, precisamos de uma bateria também.

    A mão de Marcus desceu até a cintura e ele puxou uma pequena esfera. Ele jogou dentro da bacia que vasculharam, e ela se encheu completamente.

    — Ter energia ia facilitar muito — disse Marcus ao pegar a esfera. — Só que somos um cara com uma arma e um velho com a costela fodida, então pegamos a água e voltamos.

    Dante confirmou.

    Assim que eles deram o primeiro passo, saindo daquela parte interna, Vick soou em sua mente.

    Zona insegura confirmada. Fazendo escalada para redimensionar setores de Kappz. Ajustando coordenadas”.

    — Espere.

    Marcus parou.

    — O que foi?

    — Espere um segundo, por favor.

    Uma numeração ficou à vista de Dante. Mesmo que seus olhos pudessem enxergá-la carregando, Marcus não podia. Caso contrário, já teria comentado. A IA de seu pai não tinha muita funcionalidade sem ser sobre questões corporais, nunca tinha visto ela responder algo sem ser relacionado a isso.

    A voz da IA surgiu mais uma vez.

    Recriando e sondando materiais de Ciciliano e Capital, uma base de dados foi forjada com níveis de nutrientes necessários para a composição dos alimentos e remédios. Liberando acesso restrito de coleta”.

    Um ponto amarelado surgiu na visão de Dante. Um pouco mais a frente, vindo de caixas partidas ao meio, mas sem nenhum tipo de proteção. A porta quebrada era bem ao lado, com um sopro gelado vindo do seu interior.

    Dante começou a andar em sua direção. Marcus o seguiu em silêncio, ergueu a Carabina e apontando para a porta. Ele avistou o velho se abaixar diante de uma caixa, e abrir com delicadeza. Quando viu a cor amarelada dentro, o olho de vidro contraiu e retraiu rapidamente.

    — Tem um cheiro engraçado…

    — Se chama Pílulas Farmaco —explicou Dante pegando a pequena caixa de madeira para si. — Ela tem o pó amarelo dentro. É usado pra elixir.

    — Clara vai saber usar isso. Me dá.

    Dante passou a pequena caixa para ele e por debaixo, no meio de alguns papéis, uma saca de latas industrializadas.

    — Isso é comida? — a voz do atirador ondulou um pouco. — Faz meses que não vejo um desse. Como conseguiu encontrar isso do nada?

    — Sinto o cheiro das coisas — mentiu Dante sem hesitar e levantou com a saca, colocando amarrada nos suspensórios, nas costas. Marcus ajustou para ele a medida. — Meu nariz se acostumou com o odor da Capital, o cheiro de remédio dentro do lugar que eu ficava era forte. Isso aqui que encontramos é bem comum lá.

    Ouviu uma risada zombeteira.

    — Deve ser incrível ter tudo e não faltar nada.

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