Capítulo 311: Fantasmas (II)
Capítulo 311: Fantasmas (II)
Saul desceu correndo do navio comerciante, os olhos varrendo o convés do cargueiro que agora se tornava um cemitério. Seus homens estavam mortos ou rendidos, e a chuva só tornava o sangue mais escorregadio, mais visível. Ele apertou o cabo da espada com força. A lâmina era curva, ornamentada nas bordas com uma inscrição antiga — uma arma feita para matar com estilo.
Mas ao pisar de volta no seu próprio navio, ele viu Dante parado no centro do convés, ladeado por três figuras que pareciam feitos de tempestade.
Por um segundo, Saul hesitou. Havia algo errado naquele homem. No modo como ele ficava de pé. Na forma como não erguia a guarda, como se não precisasse.
— Você é Dante — disse Saul, a voz entre dentes. — O novo capitão do Nokia, não é? Eu ouvi um pouco da morte daquele cachorro do Bulianto, mas agora tenho certeza de que eles estão deixando qualquer merda assumir o comando.
— E você — respondeu Dante, girando o pulso com a espada — é o homem que mandou inocentes para morrer em alto-mar, só pra roubar umas caixas. Um comerciante vestido de lobo.
Saul cerrou os dentes.
— Eu sou um homem com um objetivo. E você acabou de entrar no caminho errado.
— Ótimo — Dante sorriu. — Eu adoro estradas tortas.
E então, deu um passo à frente.
Saul avançou primeiro, gritando, espumando de raiva. A espada cortou o ar numa diagonal, buscando o ombro de Dante — rápido, certeiro.
Mas Dante já havia se movido.
Um giro curto, um passo lateral, e o som de lâmina raspando o vazio.
Antes que Saul pudesse reagir, sentiu o punho de Dante atingir seu estômago. O golpe fez seu corpo curvar para frente, e logo depois, o cabo da espada de Dante acertou seu queixo, jogando sua cabeça para trás com um estalo.
Saul cambaleou.
— Primeira lição — disse Dante, com a voz calma. — Você não grita antes de atacar. Você grita depois que perdeu.
Saul rosnou, recuando e limpando a boca, onde um fio de sangue já escorria. Veio de novo, dessa vez mais baixo, buscando as pernas de Dante com uma sequência de cortes giratórios.
Mas Dante não recuou.
Ele bloqueou um golpe com a lateral da lâmina, o som ecoando como um sino em meio à tempestade, e depois desviou o segundo golpe com o antebraço, usando o próprio casaco reforçado como escudo. Num movimento fluido, Dante pisou no pé de Saul e cravou o joelho no peito dele, jogando-o de costas contra o convés molhado.
— Segunda lição: Estilo bonito só serve se você sobreviver tempo suficiente pra mostrar ele.
Saul tentou se levantar, tossindo, mas Dante já estava em cima. Não matou. Apenas desferiu um corte lateral que arrancou parte do ombro da armadura de Saul, o suficiente para fazê-lo gritar de dor e jogar a espada longe.
O som da lâmina caindo ecoou pelo convés inteiro.
Dante se abaixou ao lado dele. Olhos nos olhos.
— Última lição. Quando você ameaça um comerciante indefeso… tem certeza de que ninguém está assistindo?
Saul tentou responder, mas a dor o impedia. Dante apenas se levantou e se virou para os seus.
— Porto, Trahaus. Amarrem ele. E se resistir, arranquem os dentes.
Dante observava os comerciantes do outro lado do convés. Ainda estavam de joelhos, os rostos marcados por fuligem e perplexidade. A fumaça do mastro em chamas criava um fundo sombrio, enquanto a chuva insistente transformava tudo em um quadro quase irreal — uma cena de guerra pintada com sangue e silêncio.
Os olhos de um deles — um homem de porte altivo e roupas levemente mais refinadas que os demais — encontraram os de Dante. Havia dúvida naquele olhar, mas não medo. E aquilo chamou sua atenção.
Mas Dante não respondeu ao olhar. A lembrança do que Nekop dissera antes ecoava com nitidez: “Comerciantes não contratam escoltas.” Então o que faziam ali? O que exatamente estavam transportando? Ele não confiava em coincidências — e tampouco em rostos que buscavam justiça só quando o perigo já havia passado.
Saul foi arrastado e jogado ao chão, a cara contra a madeira molhada. As correntes apertavam suas articulações com crueldade, e ele arfava como um cão derrotado. Ao redor, mais de uma dúzia de seus homens gemiam em dor, alguns gritando, suas mãos pressionando pernas ou braços deslocados ou fraturados.
Dante não vira como Egiss fizera aquilo. Mas ouvira. Cada grito. Cada impacto seco de um corpo caindo. O silêncio que tomava o lugar de um combate. Ele estava se tornando perigoso.
E, mesmo assim, lá estava Egiss — sereno no meio da tempestade, como se nada tivesse acontecido.
— Senhor. — disse, se aproximando com um aceno contido de cabeça. — Reuni o que eles trouxeram. Parece que um dos comerciantes possui uma habilidade de compressão. Guardam os materiais em caixas reforçadas.
Dante se aproximou da mais próxima. A tranca havia sido estourada com precisão, e dentro dela… madeira, ferro, ligas raras. Havia mais recursos ali do que em todo o estoque atual do Nokia.
— Deve ter mais matéria-prima aqui do que no nosso navio inteiro — acrescentou Egiss, apontando para outra caixa. — Aquela ali veio de um dos soldados do Saul. Nenhum dos compartimentos inferiores guarda nada. Tudo o que valia estava visível.
— Ótimo. Assim é melhor. — Dante respondeu, com um leve aceno de aprovação.
Atrás deles, Porto e Trahaus caminhavam despreocupados, os pés ressoando em meio aos cadáveres.
— Singapura foi bem mais empolgante, — resmungou Porto. — Isso aqui foi uma decepção gigante.
— Não reclame de barriga cheia, — respondeu Trahaus, cruzando os braços. Depois, virou-se para Dante. — Capitão, o que fazemos agora?
Dante observava o cenário, mas seus olhos voltaram para Egiss, que já carregava duas caixas nos ombros com facilidade. O rapaz apenas afirmou com a cabeça e falou:
— Rudini.
Um feixe de luz cortou o ar. Em menos de um segundo, Egiss desapareceu — transportado diretamente para o Nokia.
Dante apontou para mais quatro caixas.
Então parou.
Diante dele, uma caixa ornamentada com moedas de ouro. Brilhavam mesmo sob a tempestade, como promessas falsas. A caixa estava aos pés de Saul, e aquilo dizia muito. Mas Dante não queria aquilo. Não era esse o tipo de conquista que procurava.
Ergueu os olhos para o comerciante de antes. O homem o encarava com expectativa contida.
— Isso deve ser de vocês. — disse Dante. — Venham pegar. Não me interessa.
Começava a virar-se quando a voz do homem irrompeu no ar:
— Eu quero Saul. Ele cometeu crimes. Deve pagar por eles.
Dante parou. Os olhos recaíram sobre o corpo amarrado de Saul, que ainda se contorcia em dor. Havia ali mais do que feridas — havia vergonha. Ele sabia quem Dante era. Sabia o nome do navio. Sabia o que significava ser derrotado por ele.
E ainda assim… não merecia julgamento. Não ali. Não agora.
Dante sacou a espada, firme e sereno.
Um movimento limpo. Rápido. Silencioso.
A lâmina cortou o ar — e a garganta de Saul. O sangue jorrou de lado, misturando-se à chuva. A morte veio rápido. Sem glória. Sem defesa. Dante limpou a espada e a embainhou.
— Você já tem sua carga. Não precisa de mais nada.
Virou-se, sem esperar resposta.
— Rudini.
E, como se o próprio mar tivesse tragado a noite, o Nokia desapareceu. Sem som. Sem luz. Apenas o silêncio que ficou após sua passagem.
Reinal Missuri ficou ali parado, os olhos fixos no navio em chamas e nos corpos ao redor. Um dos seus companheiros se aproximou, trêmulo, ainda com a arma nas mãos.
— Quem eram, senhor?
Reinal demorou a responder.
— Eu… não faço ideia.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.