Capítulo 312: Percurso Alagado
O céu ainda estava cinzento quando o navio comercial de Reinal Missuri surgiu entre as brumas densas do canal que levava a Percurso Alagado. As águas barrentas refletiam a carcaça queimada da embarcação como um presságio sombrio. Placas de madeira rachadas, cordas encharcadas de sangue seco, e manchas de fuligem nas velas — tudo nele gritava sobrevivência por milagre.
Percurso Alagado era uma cidade erguida sobre pernas fincadas na lama. Suas construções se erguiam em palafitas velhas, conectadas por passarelas de corda e madeira, sempre rangendo, sempre úmidas. Pequenos barcos de fundo chato passavam vagarosamente por entre os pilares cobertos de musgo, enquanto redes de pesca secavam penduradas como bandeiras derrotadas. O cheiro de sal, peixe podre, algas e madeira molhada dominava o ar, mas naquele dia, o fedor de cinzas queimadas e sangue fresco tomava a dianteira.
À medida que o navio se aproximava, olhares curiosos se reuniam ao longo das plataformas. Mulheres interromperam suas lavagens, pescadores largaram seus remos, e até mesmo os sentinelas de olhos fundos na torre de vigia se inclinaram com atenção. Aquele navio voltava em frangalhos — e mesmo assim, voltava.
Quando as amarras foram jogadas e os primeiros homens desceram, ainda mancando e envoltos em mantas, um vulto familiar já se aproximava com passos largos e braços erguidos.
— Reinal! — gritou Alu Bini, envolto em um casaco surrado e botas encharcadas. — Que milagre é esse? Eu achei que você tinha virado história no fundo do mar!
Reinal desceu com calma, os olhos cansados, a barba por fazer. Seu corpo doía como se ainda estivesse preso às correntes da chuva. Os olhos vermelhos e fundos denunciavam que ele não dormia havia dias.
— Quase virei mesmo. Duncan Reborn me encontrou no meio da tempestade. Ou pelo menos um dos navios dele.
Alu arregalou os olhos e soltou um assobio surpreso.
— E você voltou pra contar isso? Cara, três navios foram dados como desaparecidos essa semana. O mar está um inferno. Um dos tripulantes disse que viu um vulto negro no nevoeiro, grande demais pra ser um navio comum… — ele coçou a cabeça, agora mais sério. — Você teve sorte. Ou teve ajuda?
Reinal não respondeu de imediato. Observou os outros tripulantes descarregando as caixas, cada uma marcada com o símbolo comprimido de sua habilidade. Uma delas tremia levemente, ainda instável, como se tivesse absorvido mais do que devia.
— Algo assim.
Alu se aproximou, abaixando o tom da voz.
— Você vai querer falar com Gaster. Ele está ouvindo tudo o que acontece no oceano. E quando souber que você voltou… vai querer cada detalhe.
— Sei que vai. — Reinal ficou cansado só de imaginar tendo que ficar de frente para mais de dez homens apenas para listar cada coisa. — Mas, primeiro, eu quero pelo menos entregar a carga. Consegue alguém pra levar pra mim para a Casa do Comércio?
— Claro que consigo. — Alu girou o rosto rapidamente para o lado, erguendo o braço. — Finicio, aqui. Venha. Você está ficando maior, garoto. Precisa fazer mais exercícios ou quer ficar com a barriga desse grande homem?
O jeito desengonçado de Alu era sempre divertido, entretinha quem fosse com o seu estilo de falar e agir, mas Reinal não queria esse tempo. Ele apenas entregou a caixa pesada para o rapaz, que deu uma leve bambeada, e a segurou com firmeza.
Alu o acertou nas costas, gargalhando, e o deixou partir.
— Não se preocupe. Ele é um pouco lento, mas faz tudo direitinho.
— Ótimo. Quando eu terminar com Gaster, preciso que me ajude a coletar algumas informações da Rota D’água.
— Ah, certo. — Seu tom mudou na mesma hora. — Está com medo de voltar para o mar de novo? Tem uma rota mais acessível, alguns coletores de impostos vão estar no caminho, mas…
— Nunca tive medo do mar, Alu.
Suas palavras poderiam ser sérias demais acompanhada dos passos pela rua completamente destroçada a sua frente, o que impedia seu verdadeiro temor foram aqueles homens. Simplesmente, apareceram e sumiram, sem deixar rastro algum.
Alu e Reinal chegaram até onde a casa de Gaster situava. Longe o suficiente das docas para o cheiro de peixe e sal não incomodar tanto, mas sendo grande e feita apenas de madeira bruta, não tinha sequer um pedaço de pedra em suas paredes ou tetos.
Ali, no meio da cidade, era onde os maiores contratos comerciais do Oceânico Polar II aconteciam. E mesmo que fosse humilde, Gaster era o homem que mais procuravam quando o assunto era acordos e tratados.
— Eu vou entrar sozinho — disse Reinal. — Preciso de algumas respostas. Te encontro no restaurante do Polvo daqui umas horas.
Alu assentiu com um aceno de mão.
— Não se atrase, como das últimas… bom, todas as vezes você se atrasou. — E soltou uma risada. — Estarei lá, amigo.
Alu partiu, como sempre fazia, sorrindo e com um humor alegre e gentil. Era um homem que perdeu tanto, e mesmo assim, se mantinha erguido. Uma alma quebrada que tinha sido lapidada pelos cacos, reconstruído para ser impenetrável.
Nunca viu tanta gentileza na perda…
Reinal subiu o lance de degraus e empurrou a porta. O hall da casa era um escritório. Um balcão se situava em um quadrado quase perfeito, com grades separando os dois lados. Dentro, sentado na cadeira, uma jovem coçava a bochecha, lendo algum documento.
Se aproximou e bateu duas vezes na madeira, soando a entrada.
— Vim para ver Gaster.
Desinteressada, a jovem ergueu a cabeça. Lentamente, se ajustou a postura.
— O senhor Gaster está em uma reunião. Ele não gosta de ser interrompido. Posso pedir que espere por algum tempo?
— Se puder diga que Missuri vem com notícias da Rota D’água.
Ela se arrastou para trás, levantando ainda entediada e foi até um corredor. Dali, ela claramente iria sair numa das salas de reunião. Seria dito o nome Missuri, e um certo clamor jogaria Gaster para encerrar a reunião e…
Gaster saiu pela porta arrumando seu terno escuro. Os botões vinham abertos, mas ele tentava se ajeitar ao se aproximar da porta com mais dois atrás de si. Os cabelos pretos de Gaster eram alinhados para trás, caindo um pouco por cima da orelha, e a marca do pescoço, bem abaixo, ficava visível para quem quisesse ver.
Os outros dois, Reinal conhecia por serem Comerciantes importantes na Rota da Seda, mas nunca tinham tomado a Rota D’água antes. Eram os chamados Alopocos, um termo bem fútil, como se fossem mestres de caravana.
Na verdade, eram responsáveis por algumas das mais preciosas e perigosas cargas. Por isso, a Rota da Seda era usada.
— Eu fico extremamente grato por terem vindo até mim. — Gaster apertou a mão dos dois, revelando um sorriso honesto. — Sei que tivemos que interromper, mas é um assunto que é extremamente importante para a Rota D’água. Se puderem retornar daqui algumas horas, irei fazer com que o tempo dos senhores valha a pena.
— Sem problemas, senhor Gaster.
Os dois saíram pela porta encarando Reinal, e ele entrou em seguida, apenas apertando a mão de Gaster e o conduzindo adiante.
— É bom ter umas notícias bem interessantes pra me fazer terminar um acordo com eles — balbuciou pelas suas costas.
— Nunca sei se a notícia é boa ou não pra você.
Gaster parou na porta do corredor e olhou para sua assistente, apontando para a porta.
— Ninguém entra por uma hora.
A porta se fechou atrás de Reinal Missuri, abafando os sons do lado de fora — os estalos das cordas nos mastros, o tilintar de correntes, o burburinho das passarelas de madeira que se cruzavam acima do lodo do pântano. Dentro, o silêncio era quase reverente. Gaster seguiu à frente, seu andar sempre apressado, com o leve ranger do piso sob seus sapatos bem engraxados preenchendo o ambiente.
A sala de reunião ficava nos fundos da casa, mais afastada da umidade da cidade. Era maior do que parecia por fora, com paredes de madeira envernizada e prateleiras repletas de papéis, contratos, mapas e algumas garrafas de vidro com líquidos coloridos — a maioria com fins diplomáticos, outras para celebrar bons lucros.
Gaster indicou a cadeira à frente da sua, já puxando uma caneta de metal do bolso e a fazendo girar entre os dedos.
— Sente-se. Diga-me … é verdade o que ouvi? Saul está morto?
Reinal se sentou devagar, como se ainda sentisse o balanço do navio no corpo.
— Está. Vi com meus próprios olhos.
— Quem matou?
Reinal respirou fundo antes de responder.
— Um homem. E mais três. Apareceram como fantasmas no meio do bombardeio. Explodiram o casco do navio pirata debaixo pra cima. Depois desceram como demônios e fizeram tudo em pedaços em menos de cinco minutos.
Gaster franziu as sobrancelhas, as mãos entrelaçadas sobre a mesa.
— E você não sabe quem são?
— Não sei. Só ouvi um nome sendo chamado. “Dante”.
O nome reverberou na madeira da mesa como um trovão abafado. Gaster se recostou na cadeira e ficou em silêncio por longos segundos.
— Dante… já ouvi esse nome antes.
— Ele cortou a garganta de Saul como se estivesse podando uma planta. Não negociou. Não pediu. Apenas fez.
— E você está aqui. Com sua carga intacta.
— Com mais do que fui buscar, na verdade. Eles deixaram pra trás o que tomaram. Não quiseram nada.
Gaster se levantou e andou até uma das prateleiras, pegando um mapa velho e desdobrando-o sobre a mesa. Apontou para uma rota em azul-claro que cruzava ilhas de nomes apagados pelo tempo.
—Se esse homem está limpando o mar ou tomando-o para si… precisamos saber de que lado ele está. E, mais ainda, se ele tem um preço.
Reinal se inclinou.
— Ele não parece alguém que aceite um contrato. Nem que queira ouro.
— Todos querem algo, Reinal. Até os fantasmas. Novos capitães não tem apoio, não possuem sequer aliados. Se esse tal Dante for realmente o homem que ouvi falar, ele tem mais inimigos do que você poderia ter em uma vida.
Reinal não conseguiu esconder o estranhamento. Um homem desconhecido, rodeado por espadas e com tantas atenções voltadas para si… Não era algo comum. Alguém assim, se fosse apenas um novato qualquer, seria ignorado pelos Reis e Rainhas, quanto mais pelos Comerciantes ou até mesmo pelos Cultistas. Era o tipo de figura que passaria despercebida no grande tabuleiro — um estorvo passageiro, no máximo.
— Quem é esse cara? — perguntou, com a desconfiança marcada no tom.
Gaster apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos antes de responder.
— A história é um pouco longa, mas vou tentar resumir. Algumas semanas atrás, surgiram rumores de uma emboscada contra o Rei do Leste… Bulianto. Os navios dele foram atacados e ele morreu no confronto. Mas, estranhamente, parte da tripulação sobreviveu. Dizem que foi por causa de um velho que se virou contra o Bastardo e os homens dele. Não sei o quanto disso é verdade — fez um gesto vago com a mão —, mas depois da fuga, esse tal de Dante apareceu em Truman. Não só apareceu: bateu nos homens do Glossário. E agora, há relatos de que Singapura foi invadida até o Terceiro Anel por ele e seu grupo.
Reinal franziu o cenho, os pensamentos se atropelando com o nome daquela cidade.
— Você acha mesmo que isso é verdade?
Gaster bufou, girando a caneta devagar entre os dedos.
— Sinceramente? Não. Truman já estava sob a guarda do Glossário por pelo menos um mês antes da morte de Bulianto. E Singapura… sempre foi uma encenação. Aquele lugar vive em torno da aparência. A tirania lá não deixaria um grupo desconhecido invadir os anéis internos sem serem vistos — fez uma pausa breve, os olhos acendendo com uma faísca de dedução. — Bom… pelo menos não do jeito convencional.
Reinal cruzou os braços, o nome “Dante” martelando em silêncio na cabeça. A pergunta veio carregada de receio.
— Você acha que esse homem é um risco pra Rota D’água?
— Reinal, pelo amor dos ventos — Gaster respondeu, com um meio sorriso. — Se ele fosse uma ameaça pra nós… você já estaria morto. Não acha?
Reinal não respondeu. A frase parecia óbvia, mas não dava conta do que havia testemunhado. O que viu naquele convés destruído não se encaixava em lógicas comerciais ou acordos entre homens. Aquele velho — Dante — tinha olhos frios demais. Cortou a garganta de Saul sem hesitar, como quem fecha um livro velho. Não que Saul não merecesse, mas havia algo desconfortável naquela justiça feita ali, em pleno mar, sem julgamento, sem bandeira, sem palavras.
Em terra, havia leis. Havia rituais, regras, uma certa ordem. Mas no oceano… só a força tinha voz.
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