Capítulo 316: Noticiário (III)
O porto estava em ruínas, madeira quebrada, cordas soltas, uma vela rasgada flutuando em cima de uma poça de óleo. O Nokia repousava silencioso ao fundo, quase como se observasse. No topo das pedras que margeavam o cais, Dante folheava o jornal. O papel tremia levemente por causa do vento gélido que vinha do mar. Porto estava encostado em um mastro queimado, com a perna esticada e os braços cruzados. Miatamo permanecia sentado num barril rachado, afiado no silêncio.
Enquanto a embarcação passava pela manutenção pelas mãos de Flicks e os demais Técnicos, eles se aventuraram naquele pequeno lugar onde nem mesmo o Rastro poderia tecer suas redes. Sem população, sem Felroz, sem nada além deles.
— “Navio fantasma assombra as águas da Rota D’água” — leu Dante, sem levantar os olhos. — “Três embarcações afundadas, nenhum sobrevivente. A única descrição em comum: uma sombra que aparece do nada, destrói tudo em silêncio, e desaparece como se nunca tivesse existido.”
— É a gente. — Miatamo murmurou. — Nem precisa pensar muito pra saber isso.
Guaca assentiu com um estalar de língua.
— Invisibilidade, ataques em silêncio, corpos deixados pra trás sem explicação. — Deu um passo à frente. — Nós viramos fantasmas agora, capitão. Não gosto de pensar que somos covardes, como diz no texto, mas quem escreveu isso claramente está com medo.
Dante passou a página devagar. Havia um esboço em carvão de um navio escuro, com mastros distorcidos pela neblina. Os olhos dele pararam ali, pensativos.
— Eles não veem a gente chegando. Só os mortos depois. — Largou o jornal no colo. — A parte engraçada é que a gente nunca quis ser lenda. Temos que separar esse tipo de coisa para não passar a sensação de algo ruim para os outros
— Engraçado? — Miatamo arqueou a sobrancelha. — Eu não acho nada engraçado nisso, Dante. A gente virou o que todo mundo temia. Piratas que somem, que não deixam rastros. Só cadáveres e histórias.
— Isso muda alguma coisa? — retrucou Guaca. — A gente não fez nada que os outros não fariam se tivessem o recurso que a gente tem. Bulianto usava a Invisibilidade para chegarmos em algum lugar tranquilo sem fazer alarde, mas nunca fizemos nada disso. O que fizemos foi o certo, e nós precisamos sobreviver para conseguir lidar com o Bastardo e todos esses malditos.
— Mas a gente fez. — Miatamo levantou, encarando os dois. — Aquela mulher que decapitaram, os comerciantes implorando. A gente assistiu. A gente só… assistiu.
Silêncio.
O jornal caiu no chão, sendo levado pelo vento até bater numa pilha de redes rasgadas.
Dante passou a mão no rosto, sem tirar os olhos do mar. As ondas batiam contra o casco do Nokia, como se pedissem para que ele voltasse. Ou talvez como um aviso.
— Eu sabia que ia virar isso. Desde o primeiro ataque invisível. Desde que deixamos Saul naquele navio. Esperamos para pegar os restos. — Sua voz estava mais baixa, mais contida. — O problema é que agora… não dá pra sair dessa posição, Miatamo. Eles podem nos enxergar com olhares ruins ou bons, mas não é que eles pensam e sim o que nós questionamos de nós mesmos.
— Somos monstros — disse Guaca, dando um leve chute numa pedra. — Só que a gente ainda sangra. Ainda sonha. Só que agora… sonhamos com o que fizemos.
Miatamo olhou para o navio ao longe.
— Eles estão falando da gente como se fôssemos um fantasma. Um aviso. Como se o mar tivesse criado um juiz. Mas somos todos nós no Nokia. Dante, eu nunca fui contra sua voz, mas quero que saiba que quanto mais a gente tiver esse título, mais seremos temidos e não respeitados. Sei que não é nada parecido com o Rei, mas…
— Um navio invisível… — repetiu Dante com um meio sorriso cansado. — O bastante pra parecer um demônio do mar.
Guaca bufou.
— Se for pra ser fantasma… que seja o tipo que assombra os canalhas certos. A gente ainda escolhe quem afunda.
Miatamo virou-se e começou a descer as pedras.
— Só espero que a gente não afunde com eles.
Dante permaneceu ali por mais alguns segundos, olhando o rastro do vento sobre as águas, como se algo invisível tivesse acabado de passar por ali. Algo que talvez fosse ele mesmo.
Depois desceu, pisando no jornal esquecido sem nem olhar pra trás.
Quando Dante desceu para o convés inferior, o ambiente estava estranhamente silencioso. A brisa do mar entrava cortando entre as aberturas do casco, carregando o cheiro de sal e madeira molhada. Logo avistou Trahaus sentada em um dos barris, com as pernas cruzadas e os olhos fixos em Gregoriano e Porto — ambos imóveis, em pé um diante do outro, com as mãos repousando nas empunhaduras de suas espadas. As testas franzidas e os ombros rígidos deixavam claro que aquela troca de olhares era mais que brincadeira.
Trahaus apenas fez um gesto para que Guaca e Miatamo, que vinham logo atrás, seguissem caminho. Assim que os dois passaram, ela esticou o braço para Dante, num cumprimento despretensioso.
Ela não parecia irritada. Mas com Elise ali por perto, encostada numa das vigas e lendo o jornal em silêncio, havia algo no ar — um desconforto velado, como se o nome dela sozinho bastasse para reacender coisas que ninguém dizia em voz alta.
— O que eles estão fazendo? — perguntou Dante, franzindo o cenho ao ver Gregoriano e Porto darem passinhos de lado, em círculos curtos, como dois galos prontos para o combate. — Parecem prestes a se matar.
— E querem mesmo — respondeu Trahaus, com um meio sorriso. — Mas como o pátio de treino está fechado por causa da reforma do Flicks… — ela fez um gesto vago ao redor — …eles decidiram ficar aqui fora, se encarando como dois idiotas que acham que são gladiadores.
Ela virou levemente o rosto, apontando com o queixo para Elise, ainda absorta nas páginas do jornal.
— Vi que falaram da gente. Sobre os ataques. Os navios.
Dante cruzou os braços, os olhos vagando até Miatamo e Guaca, mais adiante, perto do limite do convés, conversando baixo com olhares sérios lançados de vez em quando para o mar.
— Algumas pessoas não gostaram — murmurou.
— Sério? — Ela arqueou uma sobrancelha. — Achei que ficariam satisfeitos por estarmos derrubando aquelas carniças que vivem saqueando comerciantes. Estamos fazendo o que ninguém mais tem coragem.
— Eu também pensei isso. Mas, pra alguns, parece que virou outra coisa. Um peso. Uma sombra. — Ele suspirou. — Mas eu já sei o que fazer.
Dante procurou um lugar e se sentou num dos barris ao lado de Trahaus com um pequeno salto, deixando o corpo relaxar. Eles observaram em silêncio enquanto Porto e Gregoriano continuavam sua dança lenta de ameaça — passos laterais, ombros tensos, às vezes uma leve flexão dos joelhos, como se um deles fosse sacar a espada a qualquer momento. Mas nada acontecia.
Por algum motivo, era engraçado. Ridículo, até. E funcionava como um pequeno alívio.
— Consegui madeira e ferro — disse Trahaus, ainda com os olhos nos dois patetas em duelo mudo. — Flicks falou que vai levar mais dois dias pra concluir o que falta. Acho que você já tem ideia pra onde vamos, não é, capitão?
Dante soltou um leve riso, sacudindo a cabeça.
— Sendo sincero? Tenho dúvidas. Nekop disse que recebeu uma mensagem de um homem chamado Otomandi Missuri. Nunca ouvi falar. Parece que ele precisa de um navio para escolta aqui na Rota d’Água.
— Isso soa como encrenca. — Trahaus virou-se para ele, o sorriso já apagado.
— Sempre é. — Dante deu de ombros. — Nekop mencionou que devemos ter uma reunião essa semana. Ele disse que vai ser em alto-mar. E que… o Convidado também estará presente.
Trahaus deixou escapar um resmungo e revirou os olhos.
— Vai ser divertido ver eles de novo, não acha? — provocou Dante, já sabendo a resposta.
Ela estreitou os olhos para ele.
— Seu senso de humor é bem estranho, velhote.
Dante apenas sorriu, vendo Porto fingir uma investida e Gregoriano recuar meio milímetro — só pra retornar em posição logo depois.
A bordo do Nokia, mesmo entre ruínas, fantasmas e lendas, ainda havia espaço para duelos imaginários, ironias e uma tripulação que, de alguma forma, continuava inteira. Dante precisava mantê-los unidos, mesmo que fosse de maneira mais organizada.
Uma decisão tomada e poderia perdê-los pra sempre.
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