Índice de Capítulo

    O Nokia estava ancorado em um porto discreto, cercado por águas cinzentas e um céu nublado, com uma leve neblina que se esgueirava por entre os mastros. O casco do navio ainda exibia marcas do último confronto, mas seus tripulantes estavam todos ali, firmes, como se cada cicatriz da madeira fosse também uma marca em suas peles. Mais de cem homens e mulheres se reuniram no convés principal, atentos à figura que caminhava lentamente até o centro.

    Dante parou diante deles com a capa negra esvoaçando ao vento e os olhos fixos em cada um. Atrás dele, Trahaus, Miatamo, Porto, Guaca, Elise e Nekop observavam em silêncio. O barulho do mar era o único som antes que ele abrisse a boca.

    — Eu li os jornais. Todos vocês leram. — A voz firme cortou o ar como uma lâmina. — Dizem que somos covardes. Que atacamos pelas costas. Que não temos honra.

    Alguns dos tripulantes trocaram olhares desconfortáveis. Outros cerraram os punhos, lembrando do que ouviram nas docas ou em tavernas.

    — Mas antes que alguém aqui comece a acreditar nesse lixo — Dante ergueu a mão, apontando para o próprio peito — eu quero que se lembrem de quem somos. Antes de tudo isso… nós sobrevivemos. Perdemos irmãos, perdemos lares, enfrentamos monstros, fome, frio, mares violentos… e ainda estamos de pé.

    A multidão se manteve silenciosa, mas os olhos começaram a se acender.

    — O que eles chamam de covardia, eu chamo de estratégia. O que eles chamam de emboscada, eu chamo de proteção. Nós não atacamos comerciantes. Nós não atacamos inocentes. Nós protegemos os nossos. E se ser invisível é o que mantém vocês vivos… então que continuemos invisíveis!

    Um leve burburinho se espalhou, e Dante continuou:

    — Não esqueçam de Bulianto. — A menção do nome trouxe um peso imediato ao ar. — Ele não era como eu. Ele comandava com gritos, com medo, com açoite… mas ainda assim, vocês estavam aqui. E agora, eu estou aqui. E se estou aqui, é por vocês. Pelos que ficaram. Pelos que acreditam que podemos fazer algo maior que apenas sobreviver.

    Dante respirou fundo, encarando cada um.

    — Eu juro, diante do mar e do vento, que farei tudo que puder por vocês. Lutarei, sangrarei, morrerei se for necessário. Mas eu não posso fazer isso se duvidarem de mim. — Ele abriu os braços. — Então me digam, Nokia… vocês ainda estão comigo?

    Um rugido de vozes respondeu ao mesmo tempo, uníssono, como trovão:

    — Estamos!

    E naquele instante, mesmo em meio à névoa, o navio parecia mais inteiro. Mais forte. Um lar com velas ao vento e espadas prontas.

    — Então, quando ouvirem o som da minha ordem, não vai ser para mandá-los para a morte. – Dante ergueu a mão, suavizando o aperto em si. – O que quero é a lealdade para navegar sem precisar saber que seus pensamentos são contra a vontade do capitão. E se houver essa vontade, que falem comigo. Que falem para que sejam ouvidos. Mas, lutem como se suas vidas dependessem disso, porque dependem.

    Mais gritos ecoaram, unindo com Guaca e Porto. Miatamo caminhou sem gritar, sem falar, e parou diante de Dante. A cena causou certa estranheza, com as vozes diminuindo aos poucos. O homem se ajoelhou rapidamente, abaixando a cabeça.

    — Eu… peço perdão pelo que disse antes.

    — Você disse o que achava ser correto. E realmente estava. – Dante encarou os demais com ferocidade. – Nós não somos covardes, fazemos o que temos que fazer para dedicar nossas vidas uns aos outros. Por isso, não vamos mais permitir nenhum tipo de ação se vermos que podemos ajudar. Esses foram ataques atípicos, mas faremos o certo.

    Eles vibraram juntos.

    — Bulianto faleceu por conta do Rei do Oeste e do Bastardo. Agora, temos o Glossário, e possivelmente o Duncan vai estar atrás da gente. E sabe a melhor parte? – Dante fez uma pausa repentina, trazendo-os de volta ao presente. – Faremos com que eles entendam o verdadeiro nome do Nokia. Faremos com que eles sintam a capacidade de um navio e dos seus tripulantes que nunca tiveram medo de morrer pelo que acreditam. Mas antes de morrer, o que nós vamos fazer?

    — Viver!

    Dante ergueu a mão gritando com eles. Viver, era o que faria para realmente voltar para sua casa, para concretizar seu objetivo. Mas, viver para ver o que aquele mundo desgovernado ainda poderia oferecer para ele.


    A manhã se espalhava preguiçosa sobre os campos que antecediam Cuba. O céu, em um azul pálido, refletia nas poças formadas pela chuva da noite anterior.

    As muralhas da cidade, firmes e gastas pelo tempo, se erguiam como sentinelas silenciosas, enquanto a praça aberta diante dos portões era preenchida com o som de rodas, passos e vozes abafadas pela poeira.

    Kalish vinha à frente, montado em um velho cavalo castanho, os cabelos grisalhos presos num lenço vermelho e um grande sorriso no rosto. Atrás dele, quatro carroças abarrotadas de mantimentos: sacos de grãos, caixas com ferramentas, tecidos e barris de água potável.

    Os cavalos bufavam cansados, mas a caravana seguia firme, como uma linha de vida chegando para alimentar a cidade cansada.

    Clara estava parada à margem da praça, com as mãos unidas sobre a barriga, apertando a túnica contra o corpo para se proteger do vento. Ao seu lado, Marcus mantinha os olhos fixos no movimento, os braços cruzados, as duas pistolas na cintura e a carabina atravessando suas costas, mas os ombros relaxados.

    Quando Kalish os viu, ergueu a mão e desceu do cavalo com um grunhido exagerado.

    — Estão tão bonitos quanto da última vez que os vi. — Kalish desceu do cavalo com um leve estalo nos joelhos, o rosto enrugado se abrindo num sorriso cansado. Em seguida, franziu a testa e ficou pensativo. — Estranho… faz quanto tempo que não os vejo mesmo?

    — Um mês e meio — respondeu Clara, estendendo a mão para cumprimentá-lo com um sorriso sereno. — Fez a mesma rota de antes, pelo que estou vendo. Deu tudo certo?

    Kalish apertou sua mão, mas seus olhos deslizaram para os arredores com um olhar mais contido.

    — Você tem um amigo um tanto quanto… misterioso que acompanha nossa travessia, senhora Clara. — Apesar do sorriso, havia um nervosismo tênue em seu tom. — Nunca sabemos de onde ele está observando, mas sabemos que está lá. Sempre.

    — Rupestre não é muito de aparecer. Mas ele é leal. Confia em nossos julgamentos desde que conheceu Dante. E por algum motivo… ele insiste em dizer que Dante ainda está vivo.

    Ela se permitiu rir de leve ao final da frase, mesmo que seus olhos brilhassem com certa melancolia. Clara gostava de ouvir isso. Precisava ouvir isso. De algum jeito, aquela certeza de Rupestre servia de âncora.

    — Mas chega de conversa no vento. Vamos entrar — disse ela, batendo de leve no braço de Kalish. — Você não parece feliz em ficar no frio.

    Marcus, que até então observava em silêncio, deu um passo para o lado e fez um gesto com a mão, cordial.

    — As carroças podem dar a volta pela praça. O acesso lateral está livre.

    Kalish acenou para os motoristas, que começaram a manobrar os cavalos e rodar os veículos com cuidado. Então caminhou ao lado de Clara, os olhos se voltando para o grande complexo à sua frente.

    A estrutura tinha sido remodelada por inteiro, com os prédios se interligando com concreto ao invés de ser uma lona barata. E subiam, praticamente, mais de cinquenta metros, abrigando dormitórios, cozinhas comunitárias, salas de aula, oficinas, e até um auditório onde os moradores se reuniam para mais do que só trabalho.

    E a luminosidade, Kalish adorava as luzes, como Clara bem sabia.

    — Se Dante estivesse aqui — disse baixinho —, ele estaria orgulhoso.

    Clara assentiu, os olhos brilhando com a brisa matinal.

    — Ele construiu isso sem saber que estava construindo. Queria proteger umas poucas pessoas, e acabou protegendo centenas. Até gente que nunca viu.

    O sorriso de Clara foi bondoso e largo e Kalish notou.

    — Você também precisa estar orgulhosa. Fundar uma cidade e cuidar dela para que não aconteça nenhum tipo de problema é uma característica inata de líderes. – Ele se espreguiçou chegando mais perto da porta da Cuba. – Não vejo a hora de me aposentar logo.

    — Eu só segui o que ele começou — murmurou.

    — É — disse Kalish, espreguiçando os braços e encarando a entrada de Cuba como quem sonha com descanso. — E eu só quero me aposentar logo. Dormir num quarto quentinho, com comida de verdade e nenhuma ameaça de morte pelas costas.

    Clara riu, dessa vez com gosto.

    — Se continuar trazendo suprimento assim, te arranjo um quarto só pra você.

    — E que tenha janelas pra eu ver essas luzes todas. — Ele piscou. — Cuba é bonita demais pra se esquecer.

    E, juntos, passaram pelos portões. A cidade os recebeu como o abrigo que Dante havia semeado — uma fortaleza construída com sangue, coragem, e sonhos. E saudades, Clara sentia tanta saudade.

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