Capítulo 322: Apenas Uma
O silêncio depois do embate ainda pairava sobre a mesa como uma sombra incômoda. O aroma da carne assada ainda era forte no ar, mas nenhum dos capitães parecia mais se importar com o sabor. Kamitase recostou-se na cadeira, respirando fundo, tentando controlar a tensão que ainda vibrava em sua espinha.
— Precisamos conversar com mais clareza agora, senhores — disse ele, olhando diretamente para Filipinas. — O que está vindo… vai atingir todos nós. Não importa se estamos no Norte, no Sul ou no meio do maldito oceano.
Filipinas não respondeu. Ela girava a taça entre os dedos, o olhar fixo em algum ponto indefinido no horizonte, sem disfarçar o desdém.
— Estou falando da Pedra Solar — continuou Kamitase. — Você sabe o que ela pode fazer. Sabe o que ela representa. E, mais do que isso… sabe que ela já foi usada.
Otomendi, ainda com o rosto levemente avermelhado da bebida e da discussão anterior, se adiantou:
— Garota, eu também não gosto de admitir que precisamos uns dos outros. Mas se essa pedra cair nas mãos erradas — e ele lançou um breve olhar para Dante, como se aquelas mãos erradas talvez estivessem mais perto do que gostaria —, todos nós vamos pagar o preço. Não vai sobrar navio, armazém ou cidade flutuante. Nem pro Rei do Oeste, nem pra você.
— E nem pra você — retrucou Filipinas, num tom ácido.
— Justamente — respondeu ele, sem hesitar. — Mas, diferente de você, eu sei quando vale mais a pena baixar a cabeça e sentar à mesa com aqueles que ainda podem segurar o oceano junto comigo.
Nuno, que até então se mantivera em silêncio, tomou a palavra com um tom mais comedido, quase professoral:
— Filipinas… Você é uma lenda viva do Oeste. Isso não se discute. Mas a Pedra Solar não é um problema do Oeste. Ela não segue fronteiras. Não responde a bandeiras. Estamos falando de algo que está ligado às antigas estruturas da Terra, algo que a IA tentou utilizar há tempos. E agora… todo mundo quer ela. Sabe o que vai acontecer se colocarem as mãos nela?
Ela o encarou, sem demonstrar medo. Mas a mão que antes girava a taça agora a segurava firme, os dedos pressionando o vidro.
— Estão me dizendo que essa reunião é só pra isso? Para me usarem como um escudo ou uma espada?
— Não é isso — disse Kamitase com urgência. — É pra formar um pacto. Uma frente comum. Você ainda tem seus aliados. Tem influência. Conhece as rotas do Rei do Oeste como ninguém. E a Pedra está próxima da região que você controla. Se ela for ativada lá, seremos todos reféns.
— Reféns? — Filipinas gargalhou de maneira curta, seca, e virou a taça de uma só vez. — Vocês têm medo de uma pedra. Uma pedra! Quando eu cruzei o Mar Cinzento, perdi trinta homens por causa de um ataque biológico, não por conta de alguma relíquia esquecida.
— E você vai perder mais — rebateu Nuno. — Se ignorar o que está diante de você. Esta não é uma arma qualquer. É um catalisador. Energia bruta. Um deus em forma sólida.
Enquanto os três falavam, Dante mantinha-se quieto.
Seu garfo girava preguiçosamente sobre o prato, desenhando pequenos círculos entre as batatas e o molho. Ele não encarava ninguém diretamente, mas também não parecia alheio. Era como se cada palavra fosse absorvida e empilhada, organizada, pesada. Ele sequer respirava mais fundo. Só observava. O velho parecia distante e, ao mesmo tempo, o mais presente de todos.
Filipinas percebeu isso. E, pela primeira vez, olhou para Dante não com desconfiança, mas com uma curiosidade verdadeira.
— E você, velhote? Vai ficar calado enquanto falam da tal Pedra?
Dante apenas levantou os olhos, vagarosamente, e segurou o olhar dela por um instante. Não disse nada. Só ergueu a taça, num gesto mínimo, quase indolente, e tomou mais um gole, como quem não tem pressa de dizer o que já sabe.
O silêncio dele pesou mais do que qualquer argumento dito até então.
E Filipinas entendeu que, se até aquele homem estava escutando em silêncio… então, talvez, ela devesse fazer o mesmo.
O problema era que Dante não tinha problema em falar ou ficar quieto, ele queria o mesmo respeito que sentia por aquele que sempre o derrotou. E só não sabia se naquele momento tinha o medo ou respeito deles.
Mesmo uma espada afiada apontada para a garganta dela não tinha sido o suficiente para que perdesse a voz ou se calasse. Ainda era ousada em falar com ele dessa forma, eles ainda eram por não terem incluído o Nokia nos seus planos.
Uma coisa era clara: precisavam dessa Pedra Solar da mesma forma que Dante queria alguém que pudesse entendê-las, tanto a Solar quanto a Lunar. O Nokia ficaria a deriva se não fosse consertado corretamente, e quanto mais se dedicava mãos a ele, mais Dante tinha um certo afeto. Um estranho afeto.
Ergueu o olhar, enfim. Os olhos cortaram a mesa de ponta a ponta, cruzando por cada rosto — um a um — até repousarem sobre Kamitase.
— A Pedra Solar — disse, sem erguer a voz. Mas ela parecia preencher todo o salão. — Uma delas vai ser minha. Não importa o acordo que fizerem entre si. Uma… vai ser minha.
O ar pareceu pesar. A madeira da mesa pareceu ranger.
— Essa é sua única oferta pra ajudar? — perguntou o Convidado, com a calma perigosa de quem mede as palavras com navalhas. — Por que você precisa dela?
Dante segurou a resposta por um breve instante, como se decidisse o quanto revelar. E então, quase como quem concede algo, disse:
— É um item que não deveria estar nas mãos de qualquer um. E acredito que nem você saiba, mas o Bastardo também está atrás delas. E mais… ele já tem uma em sua posse.
A revelação caiu sobre a sala como uma tempestade súbita. O silêncio não veio imediatamente — foi como uma onda se armando, se formando na respiração contida de cada um.
Kamitase virou-se para Nuno e Otomendi. O rosto dos dois, até então firmes, endureceu ainda mais, mas agora com sinais claros de preocupação. Aquelas rugas não vinham do tempo. Vinham do medo.
Dante não podia culpá-los. Era o natural. Era isso o que acontecia sempre que alguém ouvia o nome do novo Rei do Leste e percebia que ele estava mais próximo de seus objetivos.
— Se o Bastardo sabe… — murmurou Filipinas, e seu tom, pela primeira vez, perdeu o deboche — então o Rei do Oeste também sabe.
— Possivelmente — respondeu Dante, pegando outro pedaço de carne com naturalidade. — Essa pode ser a verdadeira forma de trabalharem sem sofrerem danos diretos. Bastardo quer algo no Oeste… então façam o Rei do Oeste tomar uma decisão. Uma falsa decisão.
Por um instante, o silêncio reinou entre os capitães. Mas logo Kamitase não conseguiu conter a indignação.
— Perdeu a cabeça? — disparou, encarando Dante como se esperasse ver loucura nos olhos dele. — Se os dois Reis entrarem em combate, quem perde somos nós. Pode até ser natural que disputem territórios, mas forjar um confronto direto? Isso é insanidade. Maluquice em todos os sentidos.
Dante pousou o garfo, ergueu os olhos devagar e sorriu com certa condescendência. Era um daqueles sorrisos que não pediam compreensão — apenas indicavam que a paciência dele era finita. E ele já queria sair dali.
— Você parece preocupado demais… sendo que não tem nada a perder — respondeu quase entediado. — Não precisa ser um gênio pra perceber que eles vão entrar em conflito de qualquer forma. Então por que não no momento certo? Num momento que beneficie a todos?
Fez uma pausa. Pegou o garfo novamente e o balançou no ar, como se abanasse uma fumaça invisível.
— Eu vou ter uma delas. A Pedra. Isso não está em negociação. O resto… vocês podem decidir entre si.
Com isso, arrastou a cadeira para trás, com um rangido que pareceu mais alto do que deveria. Pegou o pano, limpou calmamente os dedos e o repousou sobre a mesa. Depois, pegou o último pedaço de carne e o levou à boca com a tranquilidade de quem estava, na verdade, saboreando o tempo — e não o alimento.
Os olhares sobre ele pesavam. Cada um carregava um julgamento, uma dúvida, um medo disfarçado de análise fria.
Intrigante como eles são completamente diferentes de todas as pessoas que conheci, pensou Dante, enquanto mastigava lentamente. Uma risada contida passou por dentro dele, quase como um sopro abafado. Ao terminar, empurrou a cadeira de volta ao lugar com precisão e se levantou com elegância.
— Acredito que, como a refeição acabou, nossa conversa também terminou — disse, ajeitando as mangas. — Kamitase, quando tiver o plano elaborado, me avise. Estarei presente quando for necessário.
Fez questão de sorrir. Um sorriso com mais peso que ternura, mais provocação que gentileza.
— Até o nosso próximo encontro, senhores.
E então virou-se, deixando a mesa para trás com passos calmos. Ninguém o impediu. Ninguém disse nada. Apenas o observaram ir, como quem assiste um presságio se afastar lentamente.
Ao subir de volta ao convés e fazer seu caminho para o navio, novamente começou. Primeiro, a prancha que ligava o Nokia ao ancoradouro começou a desaparecer — lenta, quase preguiçosamente. Depois, os mastros sumiram diante dos olhos dos capitães, assim como as velas, os cascos, os canhões.
E por fim, o próprio Nokia desvaneceu por completo, desaparecendo como névoa sob o calor do sol.
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