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    O mar estava escuro.

    Não pela ausência de luz — pois ainda restava um traço dourado do entardecer no horizonte —, mas pela densidade das nuvens que pairavam acima como um presságio. O Nokia deslizava silenciosamente sobre as águas, o casco cortando ondas preguiçosas que não ousavam se erguer demais.

    Lá na frente, como uma sombra entre brumas, o navio batedor sinalizava com uma bandeira pálida: já estavam entrando na rota que levaria ao Reino das Cinzas.

    Dante estava na proa, as mãos cruzadas nas costas, o casaco balançando ao sabor do vento. Seus olhos buscavam mais do que terra firme — buscavam sentido nas histórias que ouvira sobre aquele lugar.

    — O Reino das Cinzas não aparece nos mapas modernos — disse Nekop, aproximando-se com um mapa envelhecido e cheio de anotações. — Tecnicamente, dizem que ele afundou durante a Segunda Inundação. Mas esse navio à frente jurou ter visto os pilares da entrada duas noites atrás.

    — Nunca ouvi falar sobre esse lugar até você mencioná-lo. Que tipo de reino é esse?

    Nekop hesitou. Seu olhar vagou brevemente pelo convés, como se estivesse buscando uma boa explicação ou talvez se certificando de que ninguém mais os ouvia.

    — Não é um reino comum. É mais como um filtro — respondeu, enfim. — Um lugar onde certas informações surgem. Não pelas palavras de homens, mas por aquilo que carregamos dentro de nós. O Reino das Cinzas escolhe o que revelar, com base no que fizemos em vida. É como se fosse um tipo de portal.

    Ele passou o dedo por uma linha riscada no mapa e suspirou.

    — Da última vez que estive lá, tivemos problemas. Muitos problemas. Por isso, quero te alertar: não vá esperando lógica. Esse lugar responde a coisas que a gente nem sempre entende.

    Dante inclinou levemente a cabeça, atento.

    — Os cultistas, eles têm ligação com esse reino?

    — Eles o adoram — respondeu Nekop, com desprezo contido. — Chamam aquele lugar de “Berço da Verdade Queima”. Fanáticos por histórias antigas, ritos esquecidos, pelas promessas do que chamam de Iluminação Cósmica. Mas é mais do que fé cega. Tem um motivo.

    Ele fechou o mapa e passou a mão pelo rosto, cansado.

    — Eu não entendo a Energia Cósmica, nem sei de onde ela vem. Só sei que, de algum modo, consigo escrever algo em papel aqui… e alguém a milhas de distância pode lê-lo. E isso… isso mexeu com a cabeça deles. Gente assim começa a querer moldar o impossível. Entender o inexplicável. E foi aí que começou a queda.

    Dante manteve o silêncio por um tempo, o olhar fixo nas nuvens que se acumulavam. Seus dedos tamborilaram discretamente na lateral da bainha da espada.

    — A Segunda Inundação… Foi causada por isso?

    Nekop olhou para ele com um peso no olhar que não era apenas de tristeza — era o peso de quem viu coisas demais para contar com leveza.

    — É uma história pesada demais pra ser jogada no vento — disse. — Mas sim. O Reino das Cinzas foi o começo de tudo. O primeiro experimento. O primeiro grito daquilo que chamaram de “ressurreição do saber”. Por isso, nosso guia vai nos deixar assim que confirmarmos a rota correta. Depois disso, seremos só nós… contra tudo o que aquele lugar decidir mostrar.

    — E você tem medo do que tem lá dentro? — perguntou Dante, sem tirar os olhos do horizonte.

    Nekop hesitou por um instante antes de responder. A brisa fria do mar parecia cutucar sua pele com dedos invisíveis, como se o vento também esperasse sua resposta.

    — Tenho medo de muitas coisas, na verdade — confessou, com honestidade. — Sinto que ir até lá por causa daqueles dois é o certo a se fazer. Bulianto… ele ficaria honrado por isso. Mas, ao mesmo tempo, tenho receio de que nos percamos lá dentro. Os Cultistas não aceitam gente de fora. E mesmo que aceitem… não vão simplesmente nos deixar entrar.

    Dante deu um leve sorriso, quase imperceptível.

    — Ótimo — disse apenas.

    Nekop virou o rosto e o observou puxar um charuto do bolso interno do casaco. Ele o girou entre os dedos por um segundo, como se pensasse em algo, e então o levou à boca. Com um estalo seco de pederneira, acendeu a ponta. A brasa brilhou como um olho vigilante. Dante tragou com força, o peito inflando de ar e silêncio.

    — Minha mãe costumava dizer que o momento em que sentimos medo é exatamente o momento em que precisamos seguir em frente — disse, soltando a fumaça devagar. Seus olhos brilharam por um instante, perdidos em memórias. — E acho que ela estava certa sobre quase tudo. Talvez tudo mesmo.

    Havia saudade naquelas palavras. A lembrança do rosto dela — firme, gentil, tão presente nos dias mais sombrios — se misturava ao cheiro de sal, ao calor do charuto, e ao eco da voz dela que ainda morava em algum lugar dentro dele.

    — Vá até os outros. Avise que estamos próximos. — Ele apontou com o queixo para o convés abaixo. — O alvo está à nossa frente.

    O oceano parecia o mesmo de sempre: um abismo plano e infinito, onde céu e mar se confundiam num tom azulado que não pertencia a nenhum dos dois. Mas Dante via além. Mesmo com o navio batedor liderando, mesmo guiados por um aliado experiente, havia algo no Capitão que fazia Nekop confiar.

    Dante e Bulianto são diferentes em muitos aspectos, o pensamento veio sozinho, como um sussurro involuntário.

    Era como olhar para um homem de idade avançada escondido num corpo jovem — alguém com sabedoria demais para a impulsividade que carregava, e impulsividade demais para a sabedoria que lhe pesava nos ombros. A vontade de se lançar em aventuras e o dever de pensar antes de agir duelavam dentro dele, numa dança antiga, quase harmoniosa.

    Todo homem tinha amarras. Algumas invisíveis. Outras, evidentes.

    Mas em Dante… elas pareciam se entrelaçar, como se buscassem uma forma de se romper e, ao mesmo tempo, manter tudo no lugar.

    De repente, o navio batedor à frente disparou dois clarões curtos. Um sinal claro.

    Logo depois, fez uma curva suave para a direita. Seus tripulantes acenavam, mas para o nada.

    Nada além do vazio, do ar rarefeito sobre a água imóvel. Mas era ali.

    Ali se abriria o portal.

    Dante observou a cena com um sorriso enviesado no rosto. Levantou o charuto e fitou a brasa por um instante, como se ela fosse a chama de uma lembrança antiga.

    — Por mais que eu deteste ficar longe de casa… — murmurou para si mesmo. — Sempre que vou conhecer algo novo, eu fico animado.

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