Índice de Capítulo

    O mar parecia segurar o fôlego quando o Nokia cruzou a linha invisível onde os sinais apontavam.

    Foi como atravessar uma membrana feita de silêncio — nenhuma onda, nenhum som além do estalo da madeira rangendo sob os pés. O céu não mudou, mas o mundo em volta sim. O vento cessou. A luz, mesmo vindo do sol poente, parecia não se mover mais. Estava ali… estagnada. Como se o tempo tivesse parado por respeito.

    Nekop subiu correndo as escadas do convés inferior para alcançar Dante, que permanecia firme na proa. E atrás dele, praticamente todos da Vanguarda. Eles se estreitaram, lado a lado, para verificar o mundo inteiro que parecia sem lógica alguma.

    — Passamos — disse, sem fôlego. — É isso. Entramos.

    Dante assentiu, os olhos fixos no que se desenhava diante deles.

    O mar agora refletia. Não como a água comum, mas como vidro líquido. Por todos os lados, vastas estruturas emergiam da água — colunas cristalinas que subiam como torres tortas até perderem-se nas nuvens. Algumas quebradas. Outras intactas, mas todas… espelhadas.

    Era como navegar dentro de um mundo partido, onde o céu se repetia em mil direções, e cada movimento do navio era devolvido por reflexos ligeiramente distorcidos.

    — Nunca tinha visto nada parecido com isso. É como se estivesse vivo. — sussurrou Nekop.

    — Se você estiver certo, Nekop, esse é Reino das Cinzas — respondeu Dante, a voz grave e calma. — Ou o que restou dele.

    Não demorou muito para que, entre os espelhos e pilares, vultos ganhassem forma.

    — Capitão… — chamou um dos vigias acima, perto do mastro, apontando. — Tem coisa vindo!

    E então os viram.

    Seis navios.

    Não vinham na mesma direção que o Nokia, mas seguiam por rotas distintas, contornando espelhos, desaparecendo e surgindo entre fendas espelhadas, todos avançando para um mesmo ponto central. Um ponto que ainda não podiam ver, mas que o mundo refletido parecia sussurrar como inevitável.

    Navios grandes. Pequenos. Um deles, com velas negras. Outro, repleto de estandartes rasgados. Todos diferentes, mas todos com um mesmo foco,

    — Eles sabem onde fica o centro… ou estão sendo puxados pra lá, assim como a gente — disse Nekop, os olhos seguindo os mastros distantes.

    — Ouviram as histórias também — murmurou Dante, sem se virar. — Ou perderam alguém lá dentro.

    Ele tragou devagar o que restava do charuto e deixou a brasa apagar em silêncio.

    — Eles não são nossos inimigos — disse, por fim. — Mas também não são nossos aliados. Não fazemos ideia do que está nos esperando, mas acredito que vamos descobrir em breve.

    O reflexo do Nokia tremia em dezenas de superfícies, como se mil versões deles próprios estivessem navegando lado a lado. Mas nenhuma se movia com a mesma convicção.

    — Vamos manter o curso — ordenou Dante. — Nekop, mantenha o curso, nós vamos enfrentar esses caras de frente.


    Bastardo lia a carta entregue pelo mensageiro como quem tinha uma imensa lealdade e respeito.

    Não era um bilhete qualquer, nem de um dia qualquer. A caligrafia ali registrada vinha de alguém que, um dia, caminhou próximo demais ao homem que Bastardo chamara de amigo. Agora, sentado em sua poltrona de couro escuro, com a penumbra de sua cabine oscilando à luz de uma lamparina solitária, ele sorria com um canto de boca ao passar os olhos pelas últimas linhas.

    Quando terminou, balançou a cabeça, descrente.

    — Ainda tentando catar grãos de diamante com a boca… — murmurou, num tom que mesclava desprezo e diversão.

    Na penumbra, outra presença se revelou com lentidão. Um homem de traços pálidos e feições calmas, o rosto parcialmente escondido pelas sombras e pelos óculos que escorregavam preguiçosamente até a ponta do nariz. Ele inclinou o rosto, deixando-se ver.

    — Achei que, depois do que aconteceu em Truman e Singapura, eles recuariam por um tempo — disse Glossário, surgindo mais plenamente sob a luz fraca. Seu tom era preciso, quase educado demais. — A carta reflete algo parecido com o que suspeitamos. O Convidado não olha mais para o Nokia com os mesmos olhos.

    — E entregaria o navio e seu novo capitão de bandeja? Sem sequer cobrar um favor? — Bastardo ergueu a sobrancelha, descrente. — Kamitase serviu ao Bulianto por mais de uma década. Sempre esteve ao lado dele, apoiando decisões, sustentando o leme nas tempestades. Essa atitude não me parece de alguém que honra um antigo rei. Nem tampouco de alguém que respeita o navio que um dia jurou defender.

    Glossário puxou uma cadeira de canto com um leve rangido e sentou-se com calma. Fez um gesto vago com a mão, como quem desmonta uma teoria com desdém.

    — E o que acha que é?

    — Não sou burro. E você tampouco. Toda nossa coleta, cada movimento nas últimas semanas, não tem nada a ver com domínio de território. Rei do Oeste, Rainhas do Norte, toda essa política podre… nada disso importa. O que importa é a Pedra Solar. É por isso que quero o Nokia.

    Glossário deixou escapar um sorriso quase sarcástico.

    — Engraçado você dizer isso, Bastardo. No mesmo dia em que matou Bulianto, fez sua tripulação ajoelhar-se. Tinha o navio inteiro nas mãos. E ainda assim… um homem o atingiu.

    Bastardo não desviou o olhar.

    — Não foi só um homem.

    — Ah, claro. — Glossário cruzou os braços, quase debochado. — Porque você acredita nas histórias. Aquelas velharias que os antigos Cultistas recitavam à beira da morte. Não existe reencarnação, não existem milagres. Existem as Pedras Lunares e Solares e é isso que nos move.

    Por um instante, o silêncio se instalou. Não por falta de resposta, mas por cálculo. Os olhos de Bastardo o encaravam, impenetráveis. Ele sabia que Glossário não via o tabuleiro inteiro — apenas as peças mais óbvias. Era um homem que confiava na realidade concreta, mas ignorava os detalhes que davam profundidade ao jogo.

    — Se não acredita em mim, acredite nos seus próprios fracassos — disse Bastardo, com um meio sorriso. — Você perdeu o Carpinteiro. E perdeu o respeito dos seus quando foi chutado de Truman como um cão.

    — Foi uma questão de logística.

    — Mais de cem soldados em Truman, um batalhão de mercenários em Singapura… contra meia dúzia da Vanguarda. Sua logística parece feita de papel molhado. Se não consegue admitir que aquele homem tem algo de especial… então você é mais burro do que eu pensei.

    Glossário riu, seco. Um som vazio, sem humor.

    — Está mais preocupado com as minhas derrotas do que com as suas. Por isso teme acreditar que essa carta seja real. O novo capitão do Nokia indo em direção ao Rei do Oeste, atrás da Pedra Solar… parece absurdo, não é?

    — Ou ele sabe de algo que nós não.

    — Ou está sendo manipulado, como todos os outros — retrucou Glossário, e tirou outra carta do paletó. Um papel limpo, fechado com um selo modesto. — Somos aliados por conveniência, Bastardo. Procuramos as mesmas pedras. Desejamos a morte dos mesmos homens. Então, posso dividir isso com você.

    Esticou o envelope sobre a mesa. Bastardo o pegou com cuidado, como quem segura um frasco de veneno. Abriu. Leu as três primeiras linhas. Encarou Glossário.

    — Ele simplesmente… brigou com os quatro capitães?

    — Não sei o que aconteceu de verdade, mas foi o que meu informante relatou. — Glossário deu de ombros, quase satisfeito. — Parece que resolveram colocá-lo na dianteira. Talvez até empurrá-lo contra o próprio Rei do Oeste. E soube, também, que ele afundou três dos navios de Duncan. Sozinho.

    A menção ao nome azedou o semblante de Bastardo.

    — Duncan detesta o mar. Ele manda nas rotas de terra. Mesmo perdendo embarcações, não seria fácil trazê-lo pro nosso lado.

    — E por que acha que só três navios bastariam? Você está pensando pequeno, Bastardo. Vamos fazer o mesmo que Kamitase fez. Usaremos o nome dele. Vamos destruir as rotas fingindo serem ordens dele. Quando o velho Duncan ver o caos, ele vai vir. Vai se aliar. Talvez até com um sorriso no rosto.

    Um brilho sinistro dançou nos olhos dos dois, como se compartilhassem uma visão única, terrível — e eficiente.

    — Tantos inimigos por um único alvo… — murmurou Bastardo, saboreando o pensamento. — Interessante.

    Glossário recolheu a carta e estendeu a mão.

    — E então? Temos um acordo?

    As mãos se encontraram no centro da mesa. O aperto foi firme, frio e sem retorno.

    — Temos, sim.

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