Capítulo 326: Reino de Cinzas (III)
Os ventos mudaram sem aviso — violentos, selvagens, rasgando os céus e empurrando o mar numa fúria descontrolada. O Nokia e outros seis navios foram tomados pela corrente, como folhas sugadas por um redemoinho invisível. Começaram a girar, não ao acaso, mas em torno de um ponto comum, como se algo no fundo do oceano os puxasse para uma dança aquática rápida e mortal. Era um balé de caos.
As velas tremulavam com estalos secos. Nekop e os Vanguardistas estavam no convés, gritando ordens, mãos firmes no leme e nos cabos, tentando girar o navio junto ao vento, buscando controlar o Nokia na maré traiçoeira. Mas a corrente parecia uma criatura viva, resistindo a cada manobra, forçando o casco com uma pressão desigual que fazia toda a estrutura gemer sob o esforço.
— Capitão! — O grito de Nekop cortou o ar como uma lâmina, pegando todos de surpresa.
Um dos mastros rangeu perigosamente. Por um instante, pareceu que cederia — mas foram apenas as cordas, rompendo e chicoteando o ar como serpentes enfurecidas. Miatamo se lançou entre elas, agarrou duas com força e foi arrastado meio metro para frente antes de fincar os calcanhares e estabilizar a linha com um grunhido feroz.
Dante permanecia parado à proa, o vento chicoteando seu sobretudo, os olhos fixos no horizonte — ou no que restava dele. À frente, o núcleo da espiral marinha que os engolia parecia descer para as entranhas do oceano. O mar girava e afundava, como se o mundo inteiro estivesse sendo engolido. E além daquele centro… só havia escuridão.
Um breu denso, absoluto. Nada mais. Nem luz. Nem cor. Nem retorno.
— Senhor, o que fazemos?! — uma voz desesperada veio de trás, alguém jovem demais ou com medo demais para manter o controle.
Dante girou lentamente, como se não houvesse urgência, e abriu os braços num gesto quase teatral. Um sorriso se formava em seus lábios, largo e destemido.
— Vamos cavalgar essa onda! — gritou. — Ativem os propulsores! Usem tudo o que roubamos daquele navio do Duncan! Vamos vencer essa corrente e tirar esses navios do nosso caminho!
Um coro de vozes confusas e hesitantes se ergueu, abafado pelo vento. Então Nekop gritou de volta, correndo até o meio do convés, cabelos presos mal e mal sob o capuz de couro.
— Isso é loucura! Não temos como proteger os Técnicos lá embaixo se houver colisão! E o casco não vai aguentar dois impactos seguidos!
Dante soltou uma gargalhada seca, mirando o abismo à frente como se ele fosse uma provocação pessoal. O vento batia em seu peito como punhos, mas ele não recuava — nem um passo.
— Ativem os propulsores! — repetiu, com a voz de quem já decidiu. — O resto… o resto a gente resolve quando sair do outro lado.
Um ronco profundo começou a emergir das entranhas do Nokia. As placas metálicas na lateral tremiam, as correntes se agitavam como se algo antigo estivesse despertando sob o convés. De repente, o navio tremeu por inteiro — não como um casco sendo empurrado por vento ou corrente, mas como um predador se preparando para o salto.
— Propulsores ativados! — gritou um dos Técnicos, com as mãos sujas de óleo e os olhos arregalados de pavor e admiração.
O chão vibrou. O ar ficou pesado. E então, o Nokia disparou.
Como uma flecha negra cortando o mar, ele avançou com brutalidade, a proa cortando a água em dois jatos laterais. A corrente que os prendia parecia se desfazer por um instante diante da força do avanço, e o navio rugia, deixando um rastro de espuma violenta para trás. O vento era um grito constante nos ouvidos dos que estavam no convés.
Dante manteve-se firme no parapeito, as botas cravadas contra o chão escorregadio. Os olhos estavam fixos à frente, impassíveis, calculando. A embarcação inimiga surgia cada vez maior — escura, larga, com velas pesadas já tensionadas ao máximo. A tripulação, em pânico, corria para ajustar o curso, tentando desviar do monstro que avançava. Tarde demais.
— Disparar, dispare contra os Estrangeiros!
A ordem ecoou no ar como um estalo, cortante e urgente. Ele a ouviu, mas por um breve instante, não reagiu — a palavra Estrangeiros o atingiu com força, como um soco no estômago.
Algo nele se desconectou por um segundo. Seus pensamentos escaparam para a Capital, para as ruas opressoras de pedra cinza, onde aquele termo era repetido com desdém, quase como uma sentença. “Estrangeiro” ali era sinônimo de ameaça, de impureza, de algo a ser corrigido ou eliminado. E agora… agora estavam usando essa mesma palavra aqui, do lado de cá, como se os papéis tivessem se invertido — ou talvez nunca tivessem sido diferentes.
Confuso, baixou o olhar e então congelou.
As roupas. A coloração branca.
Por que diabos ele estava usando branco?
A mesma tonalidade dos Oficiais da Capital. O mesmo branco que marchava pelos corredores das instituições, pelas ruas devastadas, pelas docas onde os inocentes desapareciam. Agora ele o vestia, sem sequer perceber quando ou por quê.
— Mas que merda…? — murmurou, quase para si mesmo, a respiração presa entre o susto e a incredulidade.
O tempo pareceu encolher.
A proa do Nokia atingiu o inimigo com violência brutal, como uma lança viva perfurando carne e osso. O ferro negro se cravou fundo no casco adversário, e o impacto sacudiu ambos os navios num estrondo ensurdecedor. O som do rompimento — madeira estilhaçando, metal rasgando, vozes gritando em pânico — preencheu o ar como uma orquestra do caos.
A ponta afiada do Nokia não apenas abriu caminho, ela engoliu parte da estrutura do outro navio, arrancando placas, vigas, homens. Gritos estouraram dos dois lados. O casco inimigo se partiu num rugido crescente, como se o próprio oceano gritasse com ele.
E então, corpos começaram a cair.
Pelo convés do Nokia, eles desabaram como bonecos jogados ao vento — alguns feridos, outros apenas desorientados, cobertos de sangue, lascas e fumaça. Tropeçavam, se arrastavam, sem entender onde estavam nem por que o chão sob seus pés não era mais o de seu navio.
A água explodiu em seguida. Uma coluna líquida se ergueu dos escombros como uma muralha viva, açoitada por uma explosão interna que reverberou pelas costelas do Nokia.
— Ah, merda, merda, merda! — Nekop e Miatamo gritaram em uníssono, quase afundando ao tentar se manter em pé no convés encharcado. — Isso não estava nos planos!
Outra explosão estremeceu o inimigo. Uma labareda breve rompeu entre as velas rasgadas, forçando o mar a cuspir mais uma onda imensa na direção deles. Se aquilo os atingisse em cheio, seriam arremessados para o abismo — junto com destroços, homens e a sorte que ainda restava.
— Dante — a voz de Guaca cortou o ar, ofegante.
O velho se virou, encarando o rosto suado do companheiro.
— Nenhum deles caiu na água. Nenhum deles morreu — disse Guaca, os olhos arregalados, varrendo o cenário diante deles com incredulidade.
Dante olhou novamente para o que restava do navio inimigo. A expressão anterior, firme e analítica, esvaneceu num misto de surpresa e desconfiança.
Duas figuras foram lançadas como projéteis, atravessando o ar e aterrissando pesadamente no convés do Nokia. Mais três voaram pelas laterais, mas antes que tocassem a água, correntes de ar os envolveram, suaves e certeiras, guiando-os de volta como se o próprio vento estivesse obedecendo a um comando oculto. Eles não caíam. Eles eram… trazidos.
Foi quando uma voz soou atrás de Dante, rouca e solene:
— O Reino de Cinzas não aceita oferendas humanas.
Dante girou o corpo. Um dos soldados vestindo branco o encarava, parado a poucos passos. Sua roupa, antes idêntica à que Dante vira em si mesmo momentos atrás, parecia agora uma extensão do próprio nevoeiro. O homem era largo, com músculos de veterano e um tapa-olho opaco. Mas foi o sorriso que chamou atenção — um riso torto, quase divertido, como quem reencontra um velho conhecido num velório.
Dante baixou os olhos instintivamente, mas sua roupa havia voltado ao normal. Aquilo tinha sido real? Ou só mais um truque?
— Estávamos esperando o sétimo navio há mais de vinte anos, desgraçado, — disse o homem, dando mais um passo adiante. — E quem diria que seria um velho? — soltou uma gargalhada abafada. — E então? Vai querer um pouco de ajuda… ou vamos nos matar juntos?
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