Capítulo 328: Reino de Cinzas (V)
No mesmo instante, uma onda invisível explodiu a partir de seu peito. A vibração do canto atravessou o convés como um trovão ressonante, criando uma cúpula protetora ao redor de Dante e dos tripulantes mais próximos.
As gotas, aquelas agulhas de cristal, afiadas como o próprio fim, bateram contra a barreira. E por um momento, tudo pareceu tremer. O som do impacto era quase etéreo, como sinos quebrando em plena tempestade. A barreira oscilava, resistia, mas cada espinho que se chocava criava fissuras, como se a música de Guaca estivesse sendo arrancada nota por nota.
Miatamo se jogou por cima de Trahaus, protegendo-a com o corpo. Porto se encolheu atrás de um tonel caído. Nekop puxou uma lona sobre dois outros soldados feridos. E ao centro, Dante ainda de pé, com a espada trincada em mãos e o corpo tremendo, assistia à barreira vibrar com o peso de cada impacto.
Guaca rangeu os dentes, o corpo arqueado, as veias do pescoço saltando. A cada segundo que passava, a melodia parecia mais difícil de sustentar. Um brilho azulado envolvia suas costas, como asas feitas de som, tremeluzindo com a energia que escapava.
— Aguenta… só mais um pouco! — ele gritou, o suor escorrendo em rios pelo rosto.
Então, uma das gotas atravessou a barreira.
Ela passou rente ao ombro de Dante, rasgando parte de sua capa e deixando um rastro ardente na pele. Outras vieram em seguida, como estilhaços que conseguiam encontrar falhas entre as notas da canção. Uma furiosa sequência de impactos sacudiu a proteção mágica.
— Vai quebrar! — Nekop gritou.
— Não vai! — Guaca urrou, a voz já falhando.
Dante fechou os olhos. E naquele instante, em meio ao caos, ele escutou novamente a voz em sua mente:
“Resistência identificada. Canalizando nova frequência. Interligando batimentos cardíacos à matriz sonora. Unidade: Guaca. Proteção secundária ativada.”
Um novo som nasceu.
Era mais profundo, grave e melancólico. Como se o próprio mundo começasse a cantar junto. A barreira brilhou num tom púrpura-espectral e, por um segundo, o tempo pareceu se dobrar em silêncio. As gotas que ainda caíam se desfizeram em luz ao tocar o novo escudo.
Guaca tombou de joelhos, exausto, mas ainda vivo. Ele arfava como um animal em fuga, os olhos brilhando em lágrimas e choque.
— Capitão…? — ele sussurrou, fitando Dante, que agora caminhava lentamente em sua direção, apesar da dor, apesar do corpo falhando.
Dante apoiou a espada no chão, a lâmina lascada e queimando em energia residual. Um sorriso cansado, quase irônico, se desenhou em seus lábios.
— Ainda estamos aqui.
E estavam.
O convés estava molhado, coberto de estilhaços de água sólida, como cristais de chuva congelados. Mas nenhum deles tinha caído. Nenhum deles tinha morrido.
O céu acima ainda era um turbilhão escuro, o mundo espelhado os mantendo numa bolha suspensa entre realidade e ilusão. Mas agora, todos sabiam : algo havia despertado. E o nome disso era mais antigo do que qualquer um gostaria de admitir.
Abaixo do Nokia, a água girava como se ainda estivesse sob o efeito da explosão anterior. Mas acima, os outros navios… eles se aproximavam.
E estavam armados.
— Capitão! — Nekop chamou, apontando. — Eles vão atacar de novo!
Dante respirou fundo. Suas mãos ainda tremiam, mas seus olhos… seus olhos estavam firmes.
Ele fechou o punho, os dedos estalando, mas no lugar. A dor se rompia, tornando seus músculos novamente a se mexerem como antes.
— Então vamos acabar com isso… antes que as coisas voltem ao normal.
Se Vick estava certa — se sua presença só poderia existir enquanto o Mundo Espelhado permanecesse ativo — então tudo o que Dante ainda podia fazer estava condicionado a esse breve lapso no tempo. Um instante suspenso entre realidades. A cada segundo que passava, as bordas daquele mundo pareciam tremer, e a sua oportunidade de agir se esvaía como areia escorrendo por entre os dedos.
Os navios onde os soldados da Capital haviam desembarcado estavam agora mergulhados num completo caos. Explosões, gritos, o tilintar metálico das armas se chocando, e, no fundo, o lamento abafado das estruturas cedendo. O próprio casco das embarcações ameaçava ruir — e Dante não sabia o que aconteceria se um deles desabasse dentro do Mundo Espelhado. Mas sabia de uma coisa: se os destruísse da mesma forma que desviara a onda, talvez… só talvez, pudesse trazê-los de volta. Não fisicamente, mas de outra forma.
E ele precisava de respostas.
— O que vai fazer, senhor? — A voz da Vanguarda veio firme, mas com um leve tremor, ao ver Dante ainda arrastando uma das pernas, ofegante.
Mas passo a passo, ele começava a recuperar o ritmo. O tremor cedia. Seus músculos pareciam se lembrar do que era lutar.
— O que vamos fazer? — outro insistiu.
— Mantenham o curso! — a resposta de Dante cortou o ar com força. — Mirem no próximo navio. Continuem a rota. Confio em vocês para isso.
O anão ao lado do timão o observou subir calmamente, como se cada degrau que pisava carregasse o peso de uma decisão inteira. E quando Dante finalmente parou, de frente para o mar e para o navio onde os soldados da Capital ainda lutavam, seu semblante endureceu. A espada em sua mão estava em frangalhos, rachada da base à ponta, mas sua postura… sua postura dizia outra coisa.
— Posso estar enganado, — ele disse, alto, para que todos ouvissem. — E se eu estiver, podemos morrer. Mas se você confia em mim, como confiou no antigo Rei, conduza o Nokia adiante.
O anão não hesitou.
— Farei isso, senhor. Não precisa pedir.
Dante sorriu — um daqueles sorrisos raros que misturavam cansaço com convicção. E então virou o rosto, gritando com uma autoridade que só ele possuía:
— Miatamo!
Sua voz atravessou o convés como uma ordem divina.
— Está na hora de me arremessar novamente.
Por um instante, o convés silenciou. O pedido era absurdo. Pavoroso para alguns, cômico para outros. Mas já tinham visto o capitão ser arremessado antes… e desta vez, havia algo diferente no ar. A sua aura pulsava como uma maré, mais densa, mais intensa, quase palpável. Não era o mesmo homem de minutos atrás.
— Não se mate, velhote! — provocou Porto, gargalhando alto, sem medo algum.
— Nós não podemos ficar sem um capitão de novo! — completou outro, com um sorriso nervoso.
Os comentários ecoaram como pequenos trovões em seu peito. Aquilo o aquecia mais do que qualquer Energia Cósmica. Lutava ali, diante de seus soldados. Alguns dos quais nem sequer eram originalmente seus. Mas agora… eram.
E mesmo entre os escombros da memória, ele sentia as vozes dos que saltaram para o navio inimigo.
Soldados da Capital.
Tão próximos… tão distantes.
Por quanto tempo ficaram vagando? Quantos anos eles esperaram? E por quê? Como haviam chegado ao Mundo Espelhado? E quem eram os outros navios?
Dante sentiu a garganta apertar. Esticou a mão para o lado, e em meio ao turbilhão de perguntas, murmurou:
— Como eu queria que visse isso, Talia.
A palma estendida encontrou outra mão já esperando por ela. Miatamo estava ali, firme, o olhar sereno, pronto para cumprir sua parte no plano maluco do capitão.
— Preparado? — Dante perguntou, seu tom baixo, mas cheio de chama.
Miatamo respirou fundo. Um brilho dourado cercou seus dedos.
— Sim, senhor. E você?
— Sempre.
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