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    — Ele continua impulsivo como sempre — comentou Linda, com um sorriso gentil. A lembrança do filho reacendera com força em sua mente. Esperava que o mesmo acontecesse com Render, mas os olhos do marido permaneciam arregalados, sem piscar. — Ele ainda não te superou, querido. Não se preocupe.

    A realidade voltou para ele num estalo. Piscou duas vezes, sentindo o peito arder, o coração acelerado como se quisesse escapar pelas costelas. Sua mão tocou o peito, por cima da roupa, e ele abaixou a cabeça.

    — Sim. Ele… ainda não está…

    A luta. Os movimentos. Tudo em Dante parecia ter saído direto de sua memória — como um reflexo dos anos de treinamento, das repetições infindáveis, de um garoto que nunca aprendeu de fato a lutar… mas que gravou tudo em seu próprio instinto.

    Mesmo a força mais brutal precisava de uma mente.

    — Por que você não diz alguma coisa? — perguntou Linda. — Por que está fugindo dele?

    — Fugindo? — A pergunta o atingiu em cheio. — Não estou fugindo. Meu filho é apenas uma cópia… do que meu pai e eu fomos. Limitado pelo próprio corpo. Talia é quem está lidando com os problemas reais. Ele…

    O espelho ainda mostrava Dante segurando Akishat, mesmo após destruir o navio, já sendo transportado ao Nokia. Ele sorria. Um sorriso absurdamente fora de contexto, como se zombasse do destino.

    — A única coisa que separa Dante de mim é essa… loucura dele — murmurou Render, engolindo em seco. — Ele se diverte em se machucar.

    — E não foi essa a lição que você passou a ele? — Linda não sorriu. — Ele sempre quis ser você. E agora está tentando fazer o certo, onde quer que esteja. Mas você nunca o reconheceu.

    — E nem vou.

    Render empurrou a cadeira para trás, levantando-se e caminhando até a porta. Ao girar a maçaneta, ouviu aquela voz. A voz que há quase trinta anos o confrontava, perguntava, reclamava, aprendia.

    — Sempre deixo claro que não vou morrer pra nenhum de vocês.

    Render virou o rosto e viu Dante puxar Akishat para perto.

    — Só tem um homem que pode me derrotar. — Dante empurrou o inimigo para longe, encarando o outro navio, ainda disparando com seus canhões. — E esse homem está me esperando em casa. Nekop, vire o navio agora.

    O Nokia começou a curvar levemente, inclinando a proa em direção ao casco inimigo. Dante correu até a beirada, saltou e abriu os braços.

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    Dante caiu sentado. Humber, Kefiane e mais três Capitães o observavam em silêncio. O Nokia estava lotado, quase todos os tripulantes presentes. Até mesmo Akishat, caída mais adiante, tentava se levantar, confusa.

    — Você tem muito a nos explicar — disse Humber, sentando-se à sua frente. — Ainda temos tempo até a próxima prova do Reino das Cinzas. Pode começar a falar.

    — Eu? — Dante arqueou as sobrancelhas. — São vocês que estão presos aqui há mais de quarenta anos. Como eu poderia explicar alguma coisa? Eu só vim buscar colegas que foram enviados ao Mundo Espelhado… mas eles nem estão aqui.

    O anão se aproximou. Nekop se sentou. A Vanguarda, vendo os dois relaxarem, imitou o gesto.

    — O Mundo Espelhado é só uma das fases do Reino das Cinzas. Meu contato falou de uma lenda. Agora precisamos passar por mais duas provas até chegarmos ao Lagmorato. Lá embaixo… é onde está o verdadeiro problema.

    — E o que tem lá embaixo? — perguntou Kefiane.

    — Destruição — respondeu Akishat.

    A Capitã Peixe ergueu-se com ajuda dos companheiros, sentando-se com esforço.

    — Há mais de vinte anos tento chegar até aqui, fugindo dos predadores das profundezas. Se vocês descerem, encontrarão demônios. — Sua voz era cansada, derrotada. — Sempre que eles surgiram, uma de nossas casas foi destruída. Saí para vingar os mortos… mas nunca consegui me aproximar deles.

    Dante a ouviu com respeito. Vingar sua casa era uma missão nobre. Mais nobre que muitos que se diziam ouro, mas valiam menos que latão enferrujado.

    — O que vai fazer agora que nos derrotou? — perguntou Humber, coçando o rosto. — Não envelhecemos desde que chegamos aqui. Se sairmos… talvez voltemos para casa. É o que espero.

    — Não quero prender nenhum de vocês aqui.

    O silêncio que seguiu foi puro choque.

    — Vai nos liberar? — Kefiane arregalou os olhos. — Está falando sério, velho?

    — Não faz sentido manter vocês aqui. Na verdade, duvido que algum de vocês queira isso. Só quero entender como todos vieram parar aqui. — Dante olhou para Humber. — Você veio da Capital. E ela está a mais de vinte, talvez trinta anos de viagem daqui. E você, Kefiane… Yieno fica do outro lado do Continente Fluvial. São mais de quinze anos para contornar tudo isso. Como chegaram aqui?

    Humber respirou fundo.

    — A Capital sempre foi minha casa. Mas eu buscava lugares onde os Felroz talvez não estivessem. Ilha por ilha, descobrimos que ninguém havia sobrevivido. A Capital precisava de minérios. Recolhi o que pude, mas no caminho de volta, entramos numa correnteza estranha. E quando percebemos… já estávamos aqui. — Ele gesticulou ao redor. — Nesse mundo espelhado.

    — O mesmo comigo — disse Kefiane. — Navegávamos para um tratado comercial, mas entramos numa tempestade esquisita. E isso nos trouxe pra cá. Trinta anos… nesse inferno.

    — Todos nós ficamos presos — acrescentou um Capitão mais afastado. — Mas sabíamos, de algum jeito, que faltava alguém.

    Humber assentiu.

    — Sim. Os Sete Navios. Nunca entendi o motivo, mas sabíamos que o sétimo precisava chegar. Sempre que tentávamos resistir… éramos forçados a duelar.

    Dante estreitou os olhos. Nunca ouvira nada sobre isso.

    “Menções registradas sobre uma lenda presente em múltiplos continentes. O Reino das Cinzas pode ter outros nomes, segundo meu banco de dados.”

    — Uma lenda com outro nome?

    — Sim — disse Nekop, atraindo os olhares. — O Reino das Cinzas também é conhecido como Caminho do Rastro. E se nossas informações estiverem corretas… é pra lá que estamos indo. Essas duas provas serão determinadas por você, Dante.

    — Eu? De novo?

    — Sim, como você venceu todos os Capitães. Assim que o Mundo Espelhado se recompor, nós iremos para a segunda prova. Não faço ideia do que esteja nos esperando, mas acredito que seja pior do que agora.

    — Não vai ser tão complicado se a gente for junto. — Dante se jogou novamente para trás, deitando no convés do Nokia. — Agora, senhores, eu quero poder descansar pelo menos dois minutos antes de qualquer outra coisa tentar nos matar.

    Humber deu uma risada. Os demais se afastaram, o Comandante da Capital se manteve parado, o encarando por algum tempo. Mesmo no silêncio, não existia dúvida que esse velho homem que deitava no navio era algum soldado da Capital.

    Mas, depois de tanto tempo afastado e longe de casa, o que havia mudado para que ele se juntasse ao Nokia e a esses tripulantes todos? Humber queria conhecê-lo mais, para quando voltasse para casa, ter o reconhecimento desse mesmo homem.

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