Capítulo 338: Sonhos (I)
— Sempre achei que esse dia nunca chegaria — disse Humber, deixando escapar um suspiro aliviado.
O cheiro do sal era mais brando agora, suavizado pela brisa morna que soprava da costa. O Toffo avançava lentamente em direção a Cintinae, cortando as águas com reverência. Era como se o próprio navio soubesse onde estava, reconhecendo aquele porto antigo que há tanto tempo não via.
Foram mais de trinta anos. Trinta anos à deriva, como prisioneiro do tempo e das marés — e, ainda assim, Humber jamais deixou de imaginar aquele momento. Nunca deixou de sonhar com o sol dourando as colinas, com o céu límpido sobre os telhados da cidade. Nunca deixou de se ver voltando para casa.
E agora estava nela.
O impacto da chegada, no entanto, não foi o que esperava. Do cais, as expressões eram de espanto, confusão — não de festa. Afinal, aquele navio deveria ter sido engolido pelo mar décadas atrás. Era um fantasma flutuante que surgia no horizonte, rompendo com tudo que os habitantes julgavam esquecido.
Humber caminhou até a beirada da prancha com passos lentos, como quem ainda não acredita no próprio retorno. As construções começaram a se alinhar à sua frente: casas de pedra e madeira dispostas lado a lado, como peças de uma memória que se reerguia diante de seus olhos. Mas elas não eram como antes.
— A arquitetura mudou bastante… — murmurou, mais para si do que para alguém ao redor.
As casas estavam mais compactas, os espaços abertos haviam desaparecido. Havia menos luz entre as vielas, menos janelas, menos cor. Era Cintinae, sim… mas não exatamente como ele a deixara.
Mesmo assim, sorriu.
— Estou em casa. De novo.
Humber desceu pela prancha devagar, sentindo cada passo como um rompimento com o passado. O chão de pedra do cais rangeu sob suas botas, e ele precisou de um segundo para se firmar, como se a terra firme agora fosse o elemento estranho. Respirou fundo. O cheiro de sal se misturava ao aroma de ferrugem e madeira velha, ao som das gaivotas e ao burburinho de vozes que crescia.
Entre as figuras que começavam a se reunir, uma se destacou.
Homero.
O uniforme do oficial era novo, de traços modernos, mas a postura era a mesma. Ombros retos, olhar firme. O rosto, agora coberto por rugas, ainda guardava a expressão determinada de outrora. E quando os olhos dos dois se cruzaram, o tempo pareceu recuar décadas.
— Humber… — a voz de Homero saiu rouca, falhando no fim.
Humber parou. Sentiu o coração apertar, os olhos marejarem antes mesmo de tentar conter.
— Homero? — a voz também vacilou. — Por todos os ventos… você ainda está aqui.
Homero avançou alguns passos, mas não de forma abrupta. Foi como alguém que não sabe se deve se aproximar de um fantasma.
— Achei que você tinha morrido. Todos achamos.
Humber riu baixo, mas seus olhos já estavam úmidos. Ele abriu os braços, e Homero, sem hesitar mais, o envolveu num abraço forte, como se estivesse tentando garantir que ele era real.
— Eu também achei, por um tempo — murmurou Humber contra o ombro do velho amigo. — Mas o Toffo me trouxe de volta.
Eles se afastaram um pouco, mas mantiveram as mãos sobre os ombros um do outro, como quem segura uma âncora emocional. Homero encarou o rosto envelhecido de Humber e balançou a cabeça, sorrindo entre lágrimas.
— Você está mais magro, mas não mudou absolutamente nada. Ainda tem o tapa-olho, ainda parece um homem tão velho.
— E você, mudou tanto. Seus cabelos agora são grisalhos. — Humber riu, enxugando os olhos. — E pensar que o garoto que eu treinei se tornaria um Oficial de verdade. Você continua a mesma pessoa, não é?
— Queria que fosse verdade. Os tempos mudaram, Humber. Cintinae mudou. Mas… agora que você voltou, talvez algumas coisas possam voltar ao lugar.
Um silêncio reverente caiu entre os dois. Atrás deles, marinheiros do Toffo começavam a descer, alguns igualmente confusos, outros se emocionando ao reconhecer detalhes da cidade. Mas naquele momento, só os dois importavam.
— É bom te ver, Homero. Mais do que bom. — disse Humber, apertando o ombro do amigo.
— Bem-vindo de volta, Comandante. A Capital ainda está no mesmo lugar que você deixou. Quer descansar e ver o que perdeu esses anos todos?
— Claro que quero ver. Minha fedida e velha Capital — disse Humber com um sorriso nostálgico.
— A mesma de sempre — respondeu Homero, rindo com ele.
— Quero ver os outros também. Tanto tempo. E, ainda assim, nem parece… real.
Seguiram juntos pela antiga estrada de pedra, ombro a ombro, deixando para trás o cais onde o Toffo finalmente havia atracado após décadas de ausência. À frente, a cidade parecia ter acordado de um sonho. Ou talvez fosse ele quem ainda estivesse sonhando.
Dois cavalos foram trazidos até eles. Homero os segurou pelas rédeas e entregou um ao amigo. Com movimentos coordenados, passaram as pernas pelas selas e montaram lado a lado. O trote começou leve, suave, como se os animais também compreendessem o peso simbólico daquele retorno. Homero soltou uma risada sincera ao conduzir os dois pelas ruas.
Humber, por outro lado, não conseguia conter as emoções. Cada casa, cada porta de madeira, cada janela torta ou novata… tudo despertava memórias que ele achava ter perdido. Viu os pequenos navios de pesca ancorados, alguns com as mesmas bandeiras de quando partiu. O cheiro do pão assando, das ervas secando ao sol, das águas do canal: tudo estava lá. Tantas coisas resistiram. Outras, mudaram completamente.
Quantos se foram? Quantos nasceram?
E ele, como um sobrevivente teimoso do tempo, estava ali de novo, intocado por décadas que não viveu.
— Quer me contar o que aconteceu? — perguntou Homero, sem pressão, apenas com o cuidado de um velho amigo. — Nunca ouvi falar de alguém ficar tanto tempo longe… e voltar assim.
— Assim como? — Humber riu, virando o rosto para ele. — Não estou exatamente novo. Ainda sou velho, Homero.
— Você entendeu o que eu quis dizer, velhote.
— Agora nós dois somos velhos.
Humber esperou alguma resposta atravessada, talvez uma resmungada fingida, mas o que veio foi uma gargalhada leve, cheia de vida. Uma risada que atravessou o tempo com eles.
— Eu realmente envelheci — admitiu Homero, olhando para frente, com um brilho calmo nos olhos. — E sabe de uma coisa? Eu gostei disso. Gostei de ter ficado mais velho, mais sábio. Você sempre dizia aquilo, lembra? Que o tempo ia temperar a carne, deixar calos e me ensinar a me virar.
— E parece que funcionou.
— Funcionou sim. Agora, eu cuido de Cintinae.
— E cuidou bem — respondeu Humber, sincero, olhando para os detalhes da cidade que ainda carregava raízes em sua alma.
Já próximos da saída da parte mais densa da cidade portuária, onde o horizonte começava a se abrir para campos mais vastos, Homero virou o rosto com um sorriso cheio de intenções antigas.
— E agora eu tenho você pra me ajudar — disse ele, erguendo o punho na direção do velho amigo. — Como nos velhos tempos, senhor.
Humber olhou para o punho estendido. Sorriu. E respondeu o gesto, fechando sua mão contra a dele com firmeza e respeito.
— Claro, Oficial Homero.
E seguiram adiante, dois homens com o peso do mundo nos ombros… mas juntos novamente.
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