Capítulo 339: Sonhos (II)
— Você demorou tempo demais para chegar até aqui, Kefiane…
Os Freto estavam todos reunidos nas escadarias da Casa Ketio. A estrutura colossal se erguia como um monumento à tradição: trezentos degraus largos, com quase trinta metros de extensão cada, formavam um caminho de reverência até o coração do Clã. Em cada um deles, estava posicionado um membro da linhagem Freto, vestindo trajes vermelhos, tingidos pelo sol poente que os fazia parecer dourados, embora as bordas negras das vestes permanecessem intensas, quase ameaçadoras. Aquelas bordas representavam mais do que estilo — eram história, autoridade, orgulho.
Ali, diante daquela multidão disciplinada e imponente, Kefiane se sentia pequena. O vento quente da tarde tocava seus cabelos desalinhados, e o silêncio era quase absoluto. Todos esperavam o desfecho do retorno.
Ser um Freto significava jamais se dobrar, jamais esquecer — e jamais abandonar a terra que os criou. E no topo da escadaria, ereto como se fosse parte da própria pedra, estava Gayu Freto, patriarca, comandante e… pai.
— O que esperava que aconteceria quando voltasse? — A voz dele ecoou, carregada de julgamento e dor. — Vocês partiram há quase trinta anos. Deixaram este lugar para trás como se ele não fosse parte de vocês. E agora voltam… sem um arranhão… sem sequer terem envelhecido?
— Nós não encontramos com… — Kefiane tentou responder, mas a frase mal começou a tomar forma.
— Não diga nada… garota. — O corte da voz dele foi seco. Não era só autoridade. Era pessoal. E ela sabia.
“Garota”. Era como ele a chamava… antes. Antes de tudo. Antes de ela provar seu valor nas batalhas familiares, de tomar o comando, de sacrificar noites, sangue e os próprios sentimentos para colocar o nome Freto novamente entre os Clãs mais respeitados de Yieno.
Ela ergueu os olhos, devagar. E viu.
O sorriso.
Era sutil, discreto, mas inegável. O mesmo sorriso de quando ele observava de longe os quadros de honra, ou quando assistia de relance às vitórias que ela entregava ao clã. Era o sorriso orgulhoso de um pai que nunca soube dizer “estou orgulhoso”.
Depois de anos sendo ignorada por ele sem nunca entender o porquê, algo nele finalmente se quebrava.
— Você disse que iria conquistar o oceano por nossa família… e depois nunca mais voltou — murmurou Gayu, sua voz vacilando por um instante. Ele abaixou a cabeça, respirando fundo, e continuou, mais baixo. — Minha filha… que eu achei morta durante todo esse tempo… está viva. Viva. Diante de mim.
— Pai… — Kefiane deu um passo hesitante.
— E eu achava que nunca mais sentiria essa alegria no peito… Estou me perguntando se isso é real. — A mão dele subiu devagar, tocando o queixo dela com um gesto leve, quase trêmulo. Em seguida, seus dedos deslizaram pelos fios do cabelo da filha, como se tentasse recuperar o tempo pelo toque. — Minha garotinha. Minha filha mais nova… voltou para casa depois de tanto ser levada pelo mundo.
Kefiane fechou os olhos. O peso de anos de ausência e silêncio caía como uma tempestade de dentro para fora. Mas o abraço ainda não veio. Não ali. Não diante de todos.
Por ora, aquele toque era tudo.
E, por ora, era o suficiente.
As escadas da Casa Ketio pareciam mais altas agora, cada degrau carregando séculos de honra, tradição e expectativas. À medida que Kefiane subia, os olhos de todos os membros do clã a acompanhavam. Alguns eram familiares, rostos da juventude que envelheceram sem ela. Outros, desconhecidos — crianças que se tornaram adultos, primos que nasceram na sua ausência, sobrinhos que só ouviram falar dela como uma lenda que desapareceu no mar.
Nenhum deles falou.
Mas todos se curvaram.
Degrau por degrau, um por um, baixavam a cabeça à medida que ela os ultrapassava. O gesto não era de subserviência, mas de reconhecimento. Ela havia voltado. E apesar dos anos, do silêncio e da ausência, ainda era uma Freto.
Ao alcançar o topo, o grande pórtico de madeira escura da Casa Ketio se abriu lentamente, rangendo como se despertasse de um longo sono. Os guardiões da entrada a saudaram com olhares sérios, porém respeitosos, e não fizeram perguntas. Apenas abriram caminho.
Lá dentro, o cheiro era o mesmo. Canela, tabaco, ferro. As tapeçarias dos corredores permaneciam nas paredes, embora mais desbotadas, e o som abafado das pegadas sobre as pedras polidas ecoava suave. As janelas longas, as colunas entalhadas com brasões e frases antigas… tudo continuava como na memória. O tempo parecia ter caminhado por fora, mas ali dentro — ali dentro o passado resistia.
Kefiane não hesitou. Cruzou os salões, contornou o jardim interno com suas flores escuras e vivas, e seguiu em direção ao antigo quarto do segundo andar — não o dela, mas o de sua mãe.
Parou diante da porta de madeira clara, diferente de todas as outras da casa, esculpida com desenhos suaves e folhas. Respirou fundo.
E bateu.
— Entre — veio uma voz baixa e firme, ainda tão familiar quanto o cheiro do quarto.
Ela empurrou a porta.
Sua mãe estava sentada ao lado da janela, costurando com delicadeza um tecido azul-escuro. Os cabelos agora eram prateados, presos num coque elegante, e os olhos… ah, os olhos. Eram os mesmos: olhos de tempestade, tão analíticos quanto acolhedores. Ela não levantou ao vê-la, mas os dedos pararam de costurar no exato instante em que a reconheceu.
— Então você voltou — disse, sem surpresa, mas com a voz embargada.
Kefiane não respondeu com palavras. Apenas caminhou até ela, ajoelhou-se no chão como fazia quando era criança, e encostou o rosto no colo da mãe. A respiração prendeu na garganta por um instante, mas logo veio em soluços contidos.
Os dedos maternos, calejados e firmes, pousaram sobre seus cabelos. Fizeram um leve carinho, e então seguraram a cabeça dela com mais força.
— Tantas noites eu sonhei com isso — murmurou a mulher, finalmente deixando que uma lágrima escorresse por seu rosto calmo. — Tantas noites sem saber se você ainda estava viva, se comia, se dormia… se lembrava de mim.
— Todos os dias, mãe — disse Kefiane, a voz fraca e rouca. — Todos os dias.
— Meu Deus… você está igual — ela riu entre lágrimas. — Como pode? Tantos anos se passaram… e você parece a mesma menina que me abraçou antes de partir.
— Eu não fiquei igual por dentro. Mudei muito… e nem sempre para melhor.
A mãe apenas a apertou mais forte contra si.
— Mas você voltou. Isso é tudo o que importa agora.
E por alguns minutos, o mundo lá fora desapareceu. A guerra dos clãs, o oceano e seus segredos, o peso de um nome, as tradições… tudo ficou pequeno diante do reencontro de uma filha e uma mãe, em meio a um silêncio que dizia mais do que qualquer discurso.
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