Capítulo 34: Um Homem e uma Besta (II)
Tinha um gato rondando por ali, correndo atrás de uma borboleta. Ele nem ligava para se tinha criaturas lá embaixo ou humanos, apenas brincava sem se importar com nada. Dante ficou um pouco invejado, e deu um sorriso para o bichano.
Às vezes, sentia falta de casa, de estar com seu pai e ter apenas a responsabilidade de treinar, comer e dormir. Dias tão calmos e tranquilos, com exceções de alguns outros, mas ele nunca deixou que essa mancha tornasse os demais ruins.
Sentia falta da Capital, dos rapazes e da senhora Dalia. Mesmo que por pouco tempo, a conexão que fez com aquelas pessoas lhe mostrou um caminho para seguir. Não cumpriu sua promessa de enviar uma carta, nem mesmo de mandar dinheiro.
Durante as noites, quando dormia dentro do prédio, recostado em almofadas rasgadas e cobertas não muito limpas, sentia saudade de tudo o que um dia esteve ao seu alcance. A vida na Capital era simples demais comparada com a de Kappz.
Aquela cidade, destruída e sem nenhuma tecnologia era uma bomba relógio que não parecia nunca poder ser melhorada. E ninguém além de Clara e Marcus pareciam se importar com isso.
— Estamos ficando sem suprimento de novo — alertou Clara para os dois em cima do telhado. Ela tinha o tom mais sério, com o olhar pesado. — Nós entregamos metade daquelas latas que acharam, mas os Caçadores não conseguiram nada. Nem mesmo um animal naquele…
— Sem palavrões, dona — pediu Marcus com a manta sobre a cabeça e o óculos de uma só lente na frente do seu rosto. — Nós vamos achar mais. Nessa última semana Dante encontrou diversas coisas, até mesmo um pé de Tangerina, que sendo sincero, nunca tinha ouvido falar.
— Essas coisas são importantes, mas temos duas coisas que precisamos mais do que qualquer outra. — Ela ergueu um dedo. — Energia, mesmo que não pareça, temos equipamentos de sobra no andar debaixo que todos os outros descartaram, mas sem energia elétrica.
Marcus moveu a cabeça para Dante.
— Certo, certo.
Carla não entendeu os dois, e abriu os braços, confusa.
— O que é isso? Estão escondendo algo de mim?
— Não é esconder, dona — respondeu Marcus. — É… bom. Quando fomos ao reservatório, o velho encontrou algo. Um dispositivo diferente que tinha na tal Capital.
— Um painel solar — falou Dante.
Dentro das construções mais bem utilizadas que a Capital utilizava, o painel tinha sido um dos poucos que realmente deu certo na época. Dante não conhecia completamente a história, Talia quem sempre lhe contava sobre os problemas de energia, e até mesmo queria implementar em casa, mas seu pai não deixou.
Eles não precisavam de um luxo que traria problemas. Por isso, Talia nunca o ensinou a realmente montar uma.
— Minha irmã dizia que esse painel converte energia do sol em energia elétrica — explicou Dante aos dois. — Tenho quase certeza que tem um desses no Reservatório. Ele absorve energia de manhã, por isso a água fica esverdeada, e quando chega de noite, começa o tratamento.
— Não é uma suposição ruim. — Clara ficou observando o nada, ponderando. — E acha que se pegar um desses, consegue instalar aqui?
Dante tinha certeza que Vick tinha essa capacidade. Nos últimos dias, ele estava testando o avanço da IA dada por seu pai. Ela localizava equipamentos e recursos, mesmo que escondidos, sondando com o que já tinha sido captado algum dia enquanto ainda era usada por Render.
Seu pai lhe deu uma ferramenta tão… poderosa, além de sua habilidade e treino sem nunca pedir nada de volta.
— O problema de pegar será a bateria, dona.
— Bateria?
— Positivo. — Marcus apontou para onde o Reservatório estava. As ondas de vento balançavam as árvores que cresceram ao redor, mas não ocultavam suas entradas forçadas e arrombadas pelas paredes e teto. — O painel precisa de uma bateria para armazenar energia enquanto estiver de noite. Teremos que entrar no Reservatório e pegar algumas…
— Algumas? — Dante riu. — Se der pra pegar uma vai ser muito. Cada bateria pesa quase cem quilos. Teremos que arrastar para fora enquanto os Felroz vêm atrás da gente.
— Então, não. — Clara negou na hora com a mão. — Ficaram doidos? Se vocês forem sozinhos, vão ser mortos lá dentro. É perigoso demais.
Marcus respirou fundo. O atirador tinha uma calma imensa mesmo debaixo do sol com seu equipamento, ele tocava a carabina deitada em suas pernas, mas quando ergueu a arma um pouco, deu para entender que seu sentimento ia contra o que Clara havia ordenado.
— Se não formos, a situação será a mesma. Ver o esforço que fazemos todos os dias serem tomados porque alguns grupos não conseguem fazer sua parte me deixa extremamente irritado. Não vou pedir permissão para ir porque meu coração pede por isso.
Dante achou incrível ele ter sido tão honesto quanto o que sentia. Clara, no entanto, não tinha a expressão mais bondosa ou compreensível. Ela usava a mão para segurar a outra, tentando ocultar o aperto profundo. Não queria perder Marcus.
Eles eram bons amigos. Como eu era com os meus.
— Consigo pegar a placa e a bateria — disse cortando o silêncio dos dois. — A placa é bem fácil porque posso subir até o telhado e tirar a força. A bateria vai ser mais difícil, um pouco só, porque vamos ter que limpar o Lagmorato deles.
Os dois ficaram quietos, completamente confusos.
— O que é um… Lagmorato? — perguntou Clara colocando o queixo na mão, curiosa.
— É um sistema que a humanidade tem contra os Felroz. — A resposta fez com que Dante questionasse o quanto eles sabiam sobre as batalhas que aconteceram no passado. — Nunca viram? É um número que aparece quando você entra na mesma zona que os Felroz tomaram ou ao contrário. São lugares diretamente ligados à importância, como um aglomerado, vilarejo ou… cidades.
Dante olhou pra cima. Procurou no meio do ar, mas nada. Nenhum sinal de que havia aqueles números em porcentagem ativos. Como era possível isso?
— Não faço ideia do que esteja falando — respondeu Marcus, no entanto, estava interessado também. — O que ele faz?
— Marca… em porcentagem quantas pessoas e quantos Felroz tem dentro de um lugar. — Dante ficou um pouco perdido ainda tentando encontrar. — Vick, não tem Lagmorato por aqui?
De repente, os dois sentiram uma pressão em suas cabeças, recuando na mesma hora. Mas, ouvindo uma voz robótica soar com naturalidade, conversando com eles.
“Lagmoratos são criações humanas em todos os recintos. No entanto, apenas quando um lugar atinge um valor sentimental suficiente, eles tomam forma. A cidade de Kappz não tem cidadãos suficientes, nem mesmo poder bélico necessário, para ativar um Lagmorato. O Reservatório, como dizem querer adentrar, terá, como valor sentimental e de sobrevivência.”
Então era assim que funcionava. Dante não sabia que o Lagmorato tinha tanto significado. Isso mudava bastante coisa, então. Valor sentimental e bélico, a cidade sem armamento não era nada. Dante ficou um pouco irritado, porque mesmo ele ali em Kappz não criava um Lagmorato.
Por outro lado, isso era bom. Sem a presença da porcentagem, os Felroz não tentavam encontrá-los. Estavam a salvo.
Perdido nas próprias ideias, Dante não percebeu o olhar de Clara e Marcus.
— O que foi isso? É uma IA? — perguntou Clara na mesma hora. — Você tem uma IA com você? De onde veio isso é normal? Como…
— Não tenho uma IA, foi um presente, mas ela só responde perguntas básicas — mentiu Dante novamente. Uma semana, não tinha como dizer tudo o que sabia para eles. — Meu pai me deu antes de eu ir pra Capital. Era dele. Não sei muito sobre ela, mas me ajuda com noções básicas.
— Que tipo de noções básicas?
“Responder perguntas é minha funcionalidade base. Minha função original é calcular a porcentagem de conversão de energia cinética para corporal, auxiliando Dante e Render, meu antigo proprietário, em como não serem mortos pela sua própria habilidade”.
Dante deu uma risada.
— Assim, está vendo? Quase não a uso, somente quando estou batalhando, como aconteceu antes de eu cair aqui em Kappz.
Marcus rapidamente pegou o braço de Dante, o erguendo e vendo as três linhas em seu antebraço. Dante achou estranho, as linhas eram para estar no pulso, não ali. Algo tinha mudado nesse tempo todo.
— Impressionante, muito impressionante. — Marcus tocou os círculos pretos no braço e levantou o dedo um pouco. Havia saído um pequeno filamento do material. — Esse tipo de condição é raro. IA normalmente são externas, mas já ouvi sobre as internas. E tem histórias muito macabras. Espero que essa seja mentalmente saudável.
“Corrigindo, Vick não possui mente, então não existe motivo para eu estar saudável. As únicas preocupações são o sistema corpóreo de Dante. Informações bases fornecidas apenas virão com…”
Ela parou de falar, criando um pequeno ruído.
— Acho que parou de funcionar. — Marcus soltou o braço de Dante. — De qualquer forma, o que a IA disse tem sentido, dona. Deveríamos tentar limpar o reservatório.
— Uma ideia idiota — respondeu Clara ainda impressionada com a IA. — Mesmo que Vick ajude, vocês são apenas dois. E eles podem estar em centenas. É um problema que não tem solução agora.
Marcus não cedeu, ele segurou sua carabina e ergueu lateralmente, forçando o aperto. Dava para ver que mesmo sendo razoável, seus pulsos tremiam.
— Mesmo que seja uma chance ruim, não vamos morrer. Eu estou vivendo nesse inferno faz anos, não quero mais ter uma chance e não ir adiante. — Ele abaixou a arma de repente e fechou o punho. — Eu não quero mais ver aquelas crianças lá embaixo sem um futuro. Não terei misericórdia, nem mesmo compaixão por aquelas aberrações. Não vou pedir permissão, mas quero que ore.
Dante ergueu a sobrancelha. Orar?
— Infelizmente, Marcus — Clara falou de maneira bem angustiante — , orar é a única coisa que posso fazer se realmente querem ir para lá. Me sinto inútil não podendo fazer nada a mais.
— Você já faz muito aqui, dona.
Clara não aceitou as palavras com gratidão.
— Se continuar falando, vai piorar a situação. Se querem ir, vou esperar que retornem. Mas quero que prometam que vão voltar.
Marcus rapidamente segurou a carabina e a puxou pro peito, arfando.
— Voltarei com vida.
Prometa que vai voltar com vida, meu filho. Linda tinha dito isso para Dante antes dele sair de casa. As palavras soaram mais vivas do que nas últimas vezes que lembrava de casa. E fechou um pouco os olhos, sentindo que dizer aquelas palavras teria um novo significado. Um novo peso. Uma nova missão.
Essa não é a minha casa, mas é onde eu estou agora.
Lembrava de Linda dizendo a Talia quando estavam em casa, a lição era sempre a mesma, todos os dias.
— Não importa o lugar, casa é onde nos sentimos seguros e queremos que os outros se sintam assim.
Palavras doces com ensinamentos complexos.
Prometer viver, mais uma vez, para si, fez com que Dante entendesse sua importância.
— Dante — ouviu Clara o chamar. — Está tudo bem? Precisa de água? Temos um pouco ainda para beber.
Comida, roupa, lugar e esperança. Os dois lhe deram isso quando chegou, sem ao menos pedir nada em troca. Estava na hora de mostrar um pouco do que sua primeira casa havia lhe ensinado.
— Está tudo bem. — Ele fingiu coçar os olhos e bocejou um pouco. — Apenas estava pensando. E sim, eu prometo voltar com vida, e trazer Marcus também vivo.
— Como se eu precisasse da sua ajuda para enfrentar aqueles bichos.
Clara sorriu para ambos, e concluiu.
— Não avisarei ninguém sobre esse problema, não quero criar falsas esperanças em ninguém. Quero que vocês façam o mesmo.
— Positivo, dona.
Dante concordou, em silêncio. Uma nova casa, uma nova batalha.
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