Índice de Capítulo

    Dante abriu os olhos com um sobressalto. O coração batia tão forte que parecia martelar contra o peito, como se tentasse escapar dali. Inspirou fundo — o ar tinha um cheiro diferente, algo mais limpo, suave, quase doce. E havia um som… um zumbido ritmado, distante, distinto dos estalos do convés e dos rangidos metálicos aos quais se acostumara.

    Mais um dia. Mais um dia no lugar onde, estranhamente, seu coração havia decidido pertencer.

    — Acordou, velhote — disse uma voz na porta.

    Dante virou o rosto devagar. Talia estava ali, encostada no batente, o olhar afiado e levemente divertido. Os cabelos soltos escorriam por sobre o ombro, e ela usava a farda preta dos Comandantes da Capital, impecável como sempre — botas lustradas, espada de adorno pendendo do cinto. Orgulho visível em cada detalhe.

    Ele soltou um bocejo preguiçoso, se ajeitando e levantando com certa lentidão, como quem ainda flutuava entre o sono e a realidade.

    — Acho que dormi demais hoje… — murmurou, esfregando o rosto. — O que veio fazer aqui?

    — Pai e mãe pediram pra te avisar que vão passar no vilarejo. Vão comprar umas coisas — disse ela, tirando um papel do bolso interno e estendendo. — Era pra eu deixar com a Clarinha, mas ela tá ocupada. Parece que tá falando com umas pessoas de Kappz.

    — Kappz? — Dante pegou o papel, franzindo o cenho. Passou por ela e saiu para o corredor. Talia o seguiu de perto, com os passos leves, como uma sombra impaciente.

    — Não vai atrapalhar ela — resmungou, cutucando-o com o dedo.

    — Me dá um pouco de paz, garota…

    Seguiram até a última porta, o escritório. Dante abriu sem bater. O espaço era silencioso, iluminado pela luz suave que entrava pelas janelas longas. No fundo da sala, Clara estava sentada diante de uma tela. O televisor projetava imagens holográficas do outro lado da conexão — rostos atentos, reunidos à distância.

    Sem fazer barulho, os dois se aproximaram e sentaram em silêncio ao lado da porta. Clara estava de costas, concentrada, gesticulando com calma e precisão enquanto falava.

    Talia se inclinou para perto de Dante, sussurrando com um sorriso:

    — Ela fala muito melhor que você.

    — Fica quieta — respondeu ele, sem tirar os olhos de Clara.

    A voz dela era firme, mas gentil, e cada frase parecia bem medida, como se tivesse ensaiado por dias — mas Dante sabia que aquilo era puro instinto. Clara falava com representantes de Kappz, tratando de alguma cooperação envolvendo uma cidade recém-estabelecida. A conversa era formal, mas havia calor nas palavras. Ela fazia parecer fácil… mesmo aquilo sendo o tipo de coisa que sempre exigiu muito dele.

    Por um instante, ele apenas observou. O modo como Clara cruzava as pernas com leveza, como inclinava a cabeça quando ouvia algo importante, como sorria com os olhos antes de falar. Tudo aquilo o fazia lembrar por que era ela quem sempre conseguia unir pessoas. Ele conquistava com força — ela com presença.

    Talia olhou para ele de novo, mas dessa vez não disse nada. Apenas sorriu e apoiou o cotovelo no joelho, relaxando. Aos poucos, a reunião se encerrava.

    Clara deslizou os dedos sobre a interface holográfica, encerrando a última fala com um leve aceno.

    — Agradeço pela confiança de vocês. Vamos manter contato — disse, e a tela brilhou por um instante antes de sumir lentamente, deixando apenas o silêncio e a luz suave da manhã.

    Ela ficou alguns segundos parada, os olhos ainda fixos no ponto onde os rostos de Kappz tinham desaparecido. Respirou fundo, depois se virou — e ao vê-los ali sentados, um de cada lado da porta como dois guardas relaxados, soltou uma risadinha.

    — Há quanto tempo estão me espionando?

    — Desde que você começou a dar ordens melhor que o Dante — respondeu Talia, divertida.

    — Nem é difícil — provocou Clara, olhando para ele com o canto dos olhos.

    Dante bufou, fingindo ofensa:

    — E eu que achei que tinha autoridade por aqui…

    — Tem sim, velhote — disse Talia, batendo no ombro dele com carinho. — Autoridade pra lavar a louça.

    Clara se aproximou devagar, tirando um grampo do cabelo e deixando-o cair sobre os ombros. O dia lá fora estava mais claro agora, e o vilarejo começava a despertar de vez — sons de conversas, rodas de carroça, o cheiro do pão fresco no ar.

    — E então? — ela perguntou, pegando o papel da mão dele. — O que eles foram comprar?

    — Coisas básicas. Arroz, farinha, sabão, pregos… esse tipo de coisa. Disseram que vão demorar um pouco.

    — Você podia ir com a gente — sugeriu Talia. — Vamos até lá, ver o que falta. E pegar um pouco daquele chá que você gosta.

    Clara levantou uma sobrancelha, fingindo ponderar.

    — Vocês só querem minha presença pra conseguir desconto com a senhora Odile.

    — Exato — responderam os dois ao mesmo tempo, e riram.

    Clara mordeu o lábio inferior, como se ainda hesitasse… mas então assentiu com um leve sorriso.

    — Tá bom. Só me esperem trocar de roupa.

    — Três minutos. Senão a gente vai sem você — disse Dante, já saindo do escritório.

    — Vai nada — murmurou Clara, sorrindo para si mesma enquanto subia as escadas.

    Talia olhou para o pai, ainda sentada, e balançou a cabeça com um olhar cúmplice.

    — A gente tem sorte de tê-la, né?

    Dante parou por um instante no corredor, ouvindo aquilo em silêncio. E respondeu sem olhar para trás:

    — Temos. Muita.

    Dante ficou parado do lado de fora, e deixou Talia partir para avisar aos pais que estariam indo. Assim que a porta se abriu, Clara deu de cara com ele, ainda surpresa por ele aguardar ali.

    — O que foi? — perguntou Dante com um sorriso suave, puxando Clara delicadamente para mais perto, envolvendo-a com os braços num abraço cheio de calor e familiaridade. — Ficou assim porque não me acordou hoje cedo? Está tentando fugir de mim, é?

    — Como se eu pudesse fugir de você, meu amor… — respondeu ela, com um olhar carinhoso. — Só quis te deixar descansar um pouco mais. Você tem feito mais do que qualquer um por aqui, tentando manter tudo em ordem. Você também merece um pouco de paz.

    As mãos de Clara tocaram seu rosto com uma ternura que parecia mágica. Sempre tão suaves, quase irreais, como se fossem feitas de algodão e luz. E quando ela o acariciava assim, era como se o mundo sumisse, como se ele estivesse exatamente onde devia estar.

    — Sempre estive com você. E nunca vou te deixar — disse ela, com um sorriso pequeno, firme, repleto de promessa. — Essa foi a nossa promessa, lembra?

    — Lembro todos os dias — murmurou ele, encostando a testa na dela. — Você sempre me faz lembrar… mesmo que tenha sido eu quem fez você prometer.

    Clara deu de ombros, brincando com o tom da voz.

    — É que você precisa mesmo ser lembrado que está comigo. Todos os dias. Pra sempre.

    Dante a observou por um instante, absorvendo cada traço daquele rosto que o conhecia melhor do que ninguém. Quantos anos haviam passado até chegarem ali? Quantas batalhas vencidas, quantas dores enfrentadas? E ainda assim, ali estavam, juntos, vivendo o que um dia parecia impossível.

    — Estamos vivendo o nosso maior sonho, não é? — ela sussurrou, quase como se temesse quebrar o encanto ao dizer em voz alta.

    Ele assentiu, com os olhos brilhando.

    — Estamos, sim.

    Clara entrelaçou os dedos nos dele e o puxou suavemente.

    — Vamos? — disse com um sorriso travesso. — Vamos nos atrasar pra encontrar seus pais, e você sabe como sua mãe adora reclamar quando isso acontece.

    Dante riu baixinho, deixando-se guiar por ela.

    — Tá bom… mas só porque você me prometeu ficar comigo. Todos os dias. Pra sempre.

    — Sempre — respondeu Clara, apertando sua mão com firmeza, como quem sabia exatamente aonde estavam indo.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota