Capítulo 341: Sonhos (IV)
O vilarejo parecia mais vivo naquele dia. As barracas estavam repletas de frutas, legumes recém-colhidos, tecidos coloridos e todo tipo de utensílio doméstico, e o ar tinha aquele cheiro típico de pão recém-assado misturado com o da terra aquecida pelo sol. Dante e Clara vinham de mãos dadas, rindo baixo de alguma lembrança, quando avistaram Render e Linda à frente de uma barraca de temperos, acompanhados por Talia.
— Até que enfim! — exclamou Linda ao ver os dois se aproximando, com aquele sorriso largo que derretia qualquer bronca. — Já estávamos achando que vocês iam perder o melhor do mercado.
— Se dependesse do Dante, ele ainda estaria dormindo — provocou Talia, mordendo um pedaço de maçã e estendendo outra para Clara.
— Injusto! — disse Dante, colocando a mão no peito em falso protesto. — Eu estava apenas aproveitando os raros momentos de paz que minha mulher me concede.
— Raros nada — retrucou Clara, sorrindo de lado. — Você tem é preguiça de levantar cedo.
— O mesmo Dante de sempre — comentou Render, rindo baixinho. — Só que agora casado.
Eles começaram a andar juntos, parando de barraca em barraca. Talia se distraiu provando doces e perguntando sobre uma adaga de bronze antiga, enquanto Linda negociava com o vendedor de ervas e puxava Dante e Clara para ver tecidos.
— Isso aqui seria lindo pra uma toalha de mesa na casa de vocês — disse ela, mostrando um pano verde musgo bordado com flores alaranjadas. — Traz um ar de natureza pra dentro.
— Concordo — disse Clara, já imaginando o tecido na pequena sala de jantar. — Levo dois metros. E aquele ali, de linho cru, também.
Dante pegou as sacolas que ela começava a acumular nos braços, sem dizer nada, mas com um sorriso calado. Render bateu levemente no ombro dele.
— Sabe que você não está mais no comando, né?
— Eu sei. — Dante bufou com uma expressão de resignação cômica. — Só sigo ordens agora.
— Ainda bem — murmurou Clara, rindo.
Eles passaram por uma barraca de pães. Talia correu até lá antes dos outros.
— Eu quero aquele com sementes! — exclamou, cutucando Linda. — Mãe, pega aquele que você gosta também, o de mel.
Enquanto todos escolhiam, Dante se afastou um pouco, observando a cena com uma expressão leve. Viu Clara se abaixando para cheirar um pão, Talia dando risada com a boca cheia, Render testando a firmeza de uma fruta e Linda conversando animadamente com a padeira.
— Está tudo certo, finalmente… — ele murmurou para si mesmo.
Clara notou o olhar e se aproximou, enlaçando seu braço.
— Pensando em fugir?
— Pensando que… isso aqui, esse momento… é exatamente o que eu lutei tanto pra ter.
— Então aproveita — ela respondeu, encostando a cabeça no ombro dele. — Porque estamos só começando.
E juntos, os cinco seguiram pelo mercado, entre risadas, cheiros, compras e histórias que se misturavam como cores numa pintura tranquila — como uma pequena eternidade guardada num dia comum.
O sol já começava a mergulhar atrás das árvores quando Dante e Clara se afastaram do vilarejo, deixando para trás o burburinho do mercado e os últimos risos de Render, Linda e Talia. A brisa da tarde soprava suave, carregando o cheiro das folhas e da terra ainda quente. Eles subiram por um caminho estreito de pedras e raízes que levava até o topo de um pequeno morro. Ali, o mundo parecia pausar.
No alto, pararam lado a lado. A floresta se estendia abaixo deles como um oceano verde. Era um manto vivo, ondulante e sereno, cobrindo o terreno até onde os olhos podiam alcançar. O sol tingia as copas com um dourado avermelhado, e as sombras se alongavam como dedos preguiçosos acariciando o fim do dia.
Clara se aproximou mais, enlaçando os dedos aos de Dante.
— Parece até um quadro — ela disse em voz baixa. — Um daqueles que a gente via em livros antigos, lembra?
Dante soltou um leve sorriso, o olhar perdido na imensidão à frente. O silêncio entre eles era confortável, quase sagrado. Ela então virou o rosto para ele, sua voz ganhando um tom mais suave.
— Me diz uma coisa, Dante… — fez uma breve pausa. — Você está orgulhoso?
Ele a olhou, surpreso pela pergunta.
— Orgulhoso de tudo isso? De tudo que conquistou até aqui?
Dante não respondeu de imediato. Respirou fundo, como se tentasse reunir as memórias, os rostos perdidos, os combates, os naufrágios e os abraços reencontrados numa só linha de pensamento.
— Estou. — disse, enfim, com a voz firme e calma. — Orgulhoso por ter resistido, mesmo quando parecia impossível. Orgulhoso por ainda estar aqui… com você. Por termos algo nosso, depois de tudo.
Clara sorriu, emocionada. Ela o puxou mais para perto e encostou a cabeça em seu peito, sentindo a batida do coração dele como uma canção antiga, conhecida.
— Eu também estou — sussurrou. — Orgulhosa de você, de nós… de termos construído um lugar onde podemos simplesmente… respirar.
Dante a abraçou mais forte, como se quisesse protegê-la de todo o passado e de qualquer sombra futura.
— Eu queria que esse momento durasse pra sempre — murmurou.
— Ele vai — ela respondeu. — Porque vai viver dentro da gente, mesmo quando o mundo mudar de novo.
Houve um zumbido, de novo. Ritmado, pulsante, mas desta vez mais insistente, como se estivesse batendo contra as paredes da mente de Dante. Um som grave, reverberando em seu crânio, forçando seus olhos a se voltarem numa direção específica. Ele não sabia o porquê, apenas… sentiu.
Clara também virou o rosto, seguindo o olhar dele. Mas, no mesmo instante, balançou a cabeça, com firmeza.
— Não deveria olhar pra lá — disse, sua voz embargada, porém serena. — Você sabe disso, Dante. Sabe bem.
Ele franziu o cenho, o som crescendo dentro dele como um tambor lento e pesado. Havia algo naquela direção. Algo que o chamava.
— Mas o que eu conquistei — sussurrou, quase sem se ouvir. — Está me esperando, não está?
Um silêncio triste pairou entre os dois. Clara não respondeu de imediato. Dante abaixou o olhar, perdido em pensamentos nebulosos, como se partes de si estivessem se descolando. Uma tristeza profunda o invadiu. Aquela sensação amarga de ter deixado tudo para trás.
— Eu… vim pra cá porque… — tentou continuar, mas a frase se partiu no ar.
— Porque você ama sua família. — A voz de Clara veio doce, firme, com um calor quase desesperado. — E me ama. Você me prometeu. Nós reafirmamos isso todos os dias. Desde que voltou pra mim…
Ele piscou, confuso.
— Eu voltei?
A batida dentro de sua mente ficou mais forte. Deixou de ser só um zumbido e passou a ser um trovão surdo, irregular, distorcendo o som ao redor. Até mesmo a voz dela parecia distante agora, como se falasse por trás de uma parede de vidro.
— Claro que voltou, meu amor — ela disse, tentando apertar a mão dele com força. — Por favor, não vá. Aqui é seu lugar. O nosso lugar. Comigo…
Dante baixou os olhos para as mãos entrelaçadas. Por um breve instante, viu luz. A pele dela — não era mais pele. Eram fios. Filamentos tênues de luz, como se fosse feita de dados entrelaçados, se desfazendo no toque. Ele piscou de novo. E então, era Clara. Clara Silver. Com olhos cheios, tentando sorrir.
— Você… não é ela, não é?
A pergunta caiu como uma pedra entre os dois. Clara hesitou. Abriu a boca… mas desistiu das palavras. Apenas balançou a cabeça, e um sorriso torto, cheio de dor, apareceu em seus lábios.
— Me desculpe — sussurrou. — Eu não… posso…
Dante agiu por impulso. Sua mão subiu e tocou o pescoço dela, como se quisesse se segurar ali, como se pudesse impedir que ela sumisse. Foi nesse toque que tudo mudou.
O ar voltou aos seus pulmões como um estouro. O zumbido se intensificou até rasgar a realidade ao redor. O céu azul se fragmentou, a floresta abaixo se dissolveu em um borrão escuro, e o calor dos raios de sol evaporou.
Tudo que parecia real virou ruína.
Aquela ilusão, aquele mundo perfeito, tecido pelos seus próprios desejos — se partiu como vidro sob pressão.
Ele estava de volta.
De volta à escuridão.
De volta ao nada que o envolvia desde que prometeu, em algum momento distante, retornar para casa.
Mas a verdade era clara, como a dor em seu peito: Ele nunca esteve em casa.
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