Capítulo 342: O Caminho do Rastro (I)
Dante abriu os olhos de súbito — e sua mão reagiu antes mesmo que ele pensasse. Num impulso feroz, esticou o braço e agarrou o pescoço da criatura de luz à sua frente. Seus dedos afundaram na superfície vibrante, quase líquida, daquilo que se fingia de Clara, apertando com força.
Seus olhos pulsavam, oscilando entre o verde, o azul e o negrume mais denso. A respiração estava descompassada, e o corpo ainda tremia, tomado pela sombra da ilusão que acabara de deixar. Uma vida perfeita. Uma vida digna, repleta de sonhos, de paz… de amor verdadeiro.
— Por que… — murmurou a criatura, com uma voz cristalina e curiosa, sem sinal de dor — …por que você não aceitou viver naquele mundo?
Dante apertou mais forte, rangendo os dentes, como se pudesse esmagar com os dedos a ilusão que ainda latejava em sua mente. A luz da criatura começou a vacilar, ondulando como fogo. Então, num movimento repentino, ela reagiu.
O punho reluzente acertou em cheio o peito de Dante.
O impacto foi seco e brutal. Ele foi lançado para trás, atravessando uma parede de madeira, depois outra de pedra, até se chocar com um casco metálico. Cada superfície que atravessava era familiar — pedaços de lugares que ele conhecera, memórias fragmentadas de sua jornada.
“Como eu sei disso?”, pensou, ao se erguer entre os escombros.
A criatura flutuava no ar, pernas cruzadas, imperturbável, pairando como um anjo decadente.
— Como conseguiu sair do meu mundo perfeito? — perguntou ela, com um tom quase melancólico. — Seus pensamentos são claros demais. Seus medos, seus desejos… tudo estava ali. O lar que você sempre quis, o tempo restaurado, o amor da mulher que perdeu. Era seu mundo de direito. E ainda assim… recusou.
Dante se endireitou, a mão no peito, onde o golpe o acertara. O dano físico fora mínimo, mas o que veio depois era bem mais pesado.
A Energia Cósmica que se desprendeu da criatura era densa, sufocante, quase sólida. Preenchia o ar ao redor com uma pressão invisível que ameaçava esmagar os pulmões, como se a própria realidade estivesse se dobrando.
Aquele poder… não era comum. Não era só uma manipulação mental. Era algo antigo, puro, corrompido pela consciência que o moldava. Algo destrutivo por natureza.
— A maioria das pessoas… — continuou a criatura, observando-o como quem analisa uma peça defeituosa — …aceita seu destino. Mergulha nas ilusões que ofereço. Mas você, Dante… você parece sentir repulsa pela ideia de paz. Suas memórias me enganaram. A esperança que vi em você… era outra coisa, não era?
Ela parou por um instante, pensativa. Mas Dante a cortou, a voz baixa, firme, com a raiva contida na ponta da língua:
— Por que continua se fazendo de confuso… quando já sabe a resposta?
Silêncio.
A criatura não respondeu. Apenas flutuava ali, imóvel, a luz ao redor de seu corpo oscilando como uma chama prestes a se apagar.
E Dante, com o peito ainda arfando, não desviava o olhar.
Eles estavam presos naquele momento — o homem que desafiou a ilusão, e o ser que não compreendia por quê.
— A resposta pode ser clara demais para quem observa apenas o que quer. Homens que vivem uma vida procurando a paz não se remetem a fugir dela. Eles permanecem, assim como você deveria. Sua vida não foi manchada de dores? Então, por que não aceitar a indolor vida de um homem amado? Não é isso que procura? Amor?
Dante cruzou as sobrancelhas, achando engraçado e confuso, na mesma proporção.
— Acha que só porque eu procuro algo, eu me renderia a ela tão fácil? Você leu minha mente, ótimo, fez o que outras pessoas também fizeram, mas não é nada demais. O que sabe sobre mim? São só…
— Você odeia estar longe de casa.
Dante abriu a boca.
— E dai? Todo mundo odeia ficar longe de casa. Não é incomum.
— Você odeia o fato de estar tão focado em voltar que não sabe o que fazer quando conseguir. Essas pessoas que juraram lealdade a você há pouco tempo, o que fará quando conseguir o que quer? — A criatura fez uma pausa, virando a cabeça um pouco para o lado, interessada. — Questiona sua própria viagem, seu próprio caminho e também sua própria ética em ter que deixar todos eles a deriva. Tem medo de ir embora mesmo sabendo que… Ah, então, é o seu medo que te fez perceber.
Alguns pequenos espelhos começaram a rotacionar por aquele caminho onde ele tinha sido arremessado. Eram fragmentos pequenos, talvez, pequenos demais para serem considerados espelhos, mas sim fragmentos cristalinos.
Aos poucos, centenas deles se reuniram ao redor, mas no caminho entre a criatura e ele.
— Não levei em consideração seus medos — continuou ela. — Seu medo de permanecer fiel, sua determinação em querer fazer o sonho de todos se realizarem. Mas, se fosse somente isso, eu teria tido sucesso.
— Eu não sou um homem muito fácil de lidar, não é mesmo? — Dante mostrou seu sorriso. — E mesmo que eu fosse, seria errado demais deixar um mundinho tão podre quanto o seu interromper o que eu estou procurando.
— Sonhos… é isso o que procura? Posso te dar isso. Posso entregar o que você quer. — Ela parecia mais desesperada esticando o braço. — O mundo que você quer, o que é? Como posso…
— Ei, calma ai. Você acha que eu vou aceitar qualquer merda que me oferecer só porque achou uma forma melhor de criar? — Dante deu outra risada. — Que tipo de idiota faria isso?
A cabeça da criatura virou para os dois lados. E num estalar de dedos, as luzes na escuridão se acenderam. Os tripulantes do Nokia e os agregados flutuavam no meio do breu, ligados por fios de luz em seu corpos.
Vagando na escuridão, seus corpos eram iluminados como a criatura, travados e imersos na criação de uma realidade, de um universo, que não era o deles. E num estalar de dedos, novamente, a escuridão se transformou.
Um campo verde se formou. As florestas se esticavam lado a lado da estrada, com o céu azulado com poucas nuvens. A grama rasteira não escondia animais silvestres, nem a estrada de terra e pedra que se seguia.
Dante ficou perplexo.
— Onde estamos?
— Você ficou tanto tempo fora de casa que as coisas mudaram por aqui. — Uma voz veio de suas costas. Dante se virou. Dois homens cavalgavam um ao lado do outro, devagar, acenando casualmente. — O que houve para… isso acontecer, Humber?
Era o Comandante da Capital, conversando abertamente com um homem que Dante se lembrava vagamente, mas não lembrava de onde.
— Muitas histórias são reais, isso posso te garantir, meu amigo. Nenhum delas, no entanto, é pouco assustadora. Eu fiquei preso num lugar muito distante, esperando para ser liberto. Mas, até hoje não entendo direito. Uma hora estava lutando ao lado de alguns marinheiros, e no outro conseguiu me libertar. Mas, sei que perdemos boas pessoas nesse processo.
— Fico triste em ouvir isso. Faremos um funeral para aqueles que partiram, em homenagem, como sempre fizemos na Capital.
Humber assentiu, bem cordial.
— Obrigado por isso, amigo.
Dante assistiu eles continuarem a seguir seu caminho. Perplexo com o cheiro, a sensação do vento batendo, o calor do sol em suas costas e cabeça. Era a mesma sensação que sentiu quando… aquele não era o seu mundo.
O brilho formulou atrás de si e ele virou. A criatura estava presente, dessa vez, sua mão brilhante ganhou textura, se formulando a carne e pele. Seus braços, torso, depois o cabelo preto e olhos azuis. Sua pele era um pouco acinzentada, mas a tonalidade variava de acordo com a roupa que ela escolheu para si. Um conjunto de coletes leves, com uma calça mais justa e botas descascadas.
Tudo isso para se encarar.
— Os humanos realmente possuem corpos orgânicos. Nem preciso fazer força para existir, nenhum anseio profundo, nenhuma sensação angustiante. Formulados apenas para existir, de maneira que se permanecerem quietos, nunca sofrerão.
Dante rapidamente apontou para si.
— Por que estou aqui? — E apontou para Humber, sem seguida: — Por que ele está aqui?
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