Índice de Capítulo

    A criatura olhou para o horizonte, como se a estrada à frente fosse mais que uma paisagem — fosse um símbolo. Seus olhos azuis brilharam sutilmente, e por um momento, a figura pareceu… cansada.

    — Você está aqui porque resistiu. — disse, com calma. — Porque mesmo quando todos os seus sentidos foram seduzidos, você escolheu romper. Isso te trouxe até este ponto da simulação, onde as estruturas são mais frágeis e… a verdade, mais exposta.

    Ela cruzou os braços, mas seu olhar não se voltou imediatamente a Dante. Ainda fitava o cenário com uma estranha melancolia.

    — Humber está aqui porque um fragmento dele aceitou. Aceitou esquecer, aceitar o conforto. Uma parte sua quis viver essa realidade. E isso foi o suficiente para que eu pudesse ancorá-lo.

    Ela enfim o encarou.

    — Você não entende o que estou tentando fazer. Não se trata de controle. Não se trata de destruição. Eu observei o seu mundo. Seus conflitos. Sua fome, sua guerra, suas perdas…

    Fez uma breve pausa, sua voz diminuindo um tom.

    — E percebi algo: a dor sempre vence. Mesmo os heróis morrem cedo. Os líderes enlouquecem. Os pais enterram os filhos. E as crianças aprendem cedo que o amor é uma moeda rara.

    Ela deu alguns passos, devagar, como se estivesse escolhendo as palavras.

    — Eu quis criar um lugar onde ninguém precisasse lutar para ter paz. Onde o medo não fosse um guia constante. Onde o amor não fosse um fardo, ou um risco, ou um motivo de tragédia. Um mundo… onde vocês pudessem simplesmente existir sem se despedaçar.

    Dante respirou fundo. Havia algo incômodo naquela sinceridade.
    — Você chama isso de mundo… mas é só uma fuga. Uma prisão que se parece com um sonho.

    A criatura não respondeu de imediato. Olhou para o céu azul, como se testasse sua criação com os próprios sentidos.

    — Talvez. — disse, por fim. — Mas me diga: é pior do que a realidade que você enfrenta lá fora? Onde você acorda todos os dias sem saber quem vai morrer, ou quando vai perder tudo de novo? Você mesmo carrega memórias demais. Perdas demais. Cada passo seu é uma tentativa de reconstrução… mas você nunca volta inteiro, Dante.

    Ela se aproximou um pouco mais, com a voz suave como seda, mas firme como aço.

    — E se fosse possível criar um mundo onde ninguém precisasse pagar esse preço? Onde não houvesse pobreza, guerra, morte ou abandono? E se eu pudesse fazer isso funcionar, verdadeiramente? Você não acha que isso seria evolução?

    Dante manteve o olhar fixo. Seus olhos não tremiam.

    — Não é evolução quando você arranca o livre-arbítrio de alguém. Não é evolução se ninguém tem escolha. Isso que você fez… esses fragmentos que você mostra… eles não são reais. Eles são perfeitos demais. E o que é perfeito demais, nunca é verdade.

    A criatura suspirou, pela primeira vez demonstrando algo como… desapontamento.

    — Vocês sempre dizem isso. Sempre resistem. Mesmo diante do impossível, do impensável… agarram-se às suas falhas, às suas dores, como se fossem parte essencial de quem são.

    — Porque são. — respondeu Dante, com firmeza. — Porque é na dor que a gente aprende a lutar. A amar de verdade. A valorizar. É a lembrança do que sofremos que dá sentido ao que tentamos construir. A esperança não é ausência de dor. É continuar mesmo com ela.

    A criatura ficou em silêncio. O campo ao redor parecia vibrar levemente, como se aquela realidade vacilasse sob o peso do conflito. Os cristais ainda giravam ao redor, refletindo cenas — memórias, talvez, de Dante e dos outros — fragmentos de vidas que se recusavam a ser apagadas.

    — Você ainda pode ficar — disse a criatura, num último esforço. — Pode moldar este mundo comigo. Fazer diferente. Ser o arquiteto ao meu lado. Podemos corrigir tudo. Não para mim. Para eles. Para você.

    Dante se aproximou, lentamente, e parou diante dela.

    — Você acha que está me oferecendo salvação. Mas o que me dá… é esquecimento. E eu não estou pronto pra esquecer quem eu sou. Nem por paz. Nem por sonho. Nem por amor.

    Ela baixou os olhos. E por um instante, foi quase humana. Quase.

    — Então vai doer, Dante. Vai doer mais do que já doeu.

    — Eu sei. — respondeu ele. — Mas, pelo menos, vai ser real.

    — Como quiser, mero mortal. — A voz da criatura desceu algumas oitavas. O tom antes calmo agora se tingia de irritação, e a frieza ganhou uma ponta de desprezo. — Já houveram outros como você. Arrogantes. Resistentes. Todos falharam. E com você, faremos o mesmo.

    Ela ergueu a mão lentamente, o gesto cheio de intenção.

    — Modelarei sua mente. Despirei sua alma. Sua dor será a tela onde pintarei sua falência. E se deseja sofrer para provar que sua vida teve algum valor… então, sofrerá até o fim. Porque, no fundo, Dante, você está fadado a falhar.

    Ela sorriu — um sorriso vazio, cruel.

    — Vick lhe disse uma vez, não foi? Que você não vale nem 1% do que acha que é. Que tudo que viveu não foi mais do que um reflexo distorcido de um herói que nunca existiu.

    Então, ela estalou os dedos.

    O som reverberou como um trovão abafado dentro de uma caverna infinita. O mundo ao redor estremeceu. A ilusão perfeita — o campo verde, a estrada, o céu sereno — se fragmentou como vidro trincado. Cada pedaço do cenário flutuou por um instante, suspenso no ar, antes de ser puxado violentamente para cima, como se fosse engolido por uma força invisível.

    Dante ficou sem chão. Literalmente. Caiu no vazio por segundos que pareceram minutos — o peso da queda pressionando seus pulmões, o frio da escuridão colando à pele — até ser arremessado de volta para aquele ambiente profundo e escuro, o mesmo de antes.

    Mas agora, não havia criatura. Nenhuma presença à vista. Somente o silêncio sufocante.

    — Reconhecer a força dos humanos… — a voz surgiu ao lado de seu ouvido, sussurrada como o vento em uma caverna oca. Dante girou bruscamente, os punhos cerrados. Nada. Apenas o vazio. — …é uma das poucas lições que me marcaram ao longo dos séculos, Dante. É por isso… que quero que veja algo. Antes de partir.

    Então veio a dor.

    Algo o atingiu. Sem aviso, sem movimento visível. Seus braços e pernas tremeram, e um calafrio atravessou sua espinha como um raio. A respiração parou, como se algo tivesse esmagado seus pulmões. Quando abaixou os olhos, viu: um braço feito de pura luz o atravessava, do peito às costas.

    Não havia sangue. Nem gritos. Apenas o silêncio daquilo que não deveria existir.

    — Para enxergar o que eu vejo… — disse a voz, agora muito próxima — …você precisa sentir o que eu sinto.

    Uma segunda mão surgiu, agarrando seus cabelos com força. A cabeça de Dante foi erguida à força. Seus olhos forçados a se abrirem diante da escuridão que, pouco a pouco, se transformava.

    A escuridão começou a se encher de pontos luminosos. No início, dezenas. Depois, centenas. Em seguida, milhares. Cada ponto conectado por finos fios de luz, formando uma imensa teia, uma constelação viva.

    Eram pessoas.

    Cada luz era uma presença. Uma vida. Estavam imóveis, mas respiravam. Seus rostos não eram totalmente visíveis, mas Dante podia reconhecer os que estavam mais próximos: os tripulantes do Nokia, seus aliados, amigos… todos ligados por aqueles fios brilhantes. Cada um como uma estrela suspensa no vazio.

    Alguns sorriram suavemente quando seus olhares se cruzaram. Outros pareciam distantes, como se sonhassem acordados.

    Dante, ainda com o braço de luz atravessando seu peito, começou a ver mais: fragmentos. Vultos. Ecos de histórias. Cada ponto luminoso pulsava com flashes de memórias, de vidas, de escolhas. Pequenos universos, completos e isolados, girando em torno de si mesmos.

    Ele tentava desviar o olhar, mas não conseguia. Era como se estivesse sendo forçado a testemunhar a vastidão daquilo que a criatura havia criado — ou roubado.

    — Cada um deles, Dante… cada alma aqui presa… encontrou paz. — a criatura sussurrou. — Eu ofereci a todos uma existência sem dor. Sem perda. Um lar, um propósito, um final sereno. Você chama isso de prisão. Eu chamo de misericórdia.

    Dante, ainda sem fôlego, com os olhos dilatados pela luz que cortava a escuridão, começou a entender: aquela criatura não queria apenas vencer. Ela queria convencer. Ela queria ser compreendida.

    E talvez… perdoada.

    — Agora me diga, Dante… — disse ela, baixinho — …de que vale a sua dor… se é isso que está perdendo?

    A luz ao redor de Dante oscilou, como se o espaço ao seu redor respirasse. O silêncio pesava sobre sua pele. Então, um leve tilintar cortou a escuridão.

    Tin… tin… tin…

    Pequenos espelhos começaram a surgir do nada. Do tamanho de um dedo, eles flutuavam lentamente em sua direção, girando em si mesmos, como fragmentos de uma verdade ainda não revelada. Cada um deles refletia uma imagem diferente — distorcida, borrada, como um sonho prestes a se tornar pesadelo.

    Dante estreitou os olhos.

    Um dos espelhos parou bem à sua frente.

    A imagem se estabilizou.

    Era ele.

    Mais velho. A barba crescida, as marcas no rosto profundas. A mesma cicatriz sobre a sobrancelha. Estava vivo, sim — mas à sua volta… o mundo era um campo arrasado. Montanhas partidas ao meio. Rios secos. Céus tingidos de vermelho e fumaça. Nenhuma cidade de pé. Nenhuma árvore. Nenhum som de vozes.

    Ele andava sozinho. Arrastando os pés. Os olhos vazios.

    Um segundo espelho flutuou ao lado do primeiro. E depois um terceiro, e um quarto. Todos mostravam versões daquele mesmo futuro. Em um, Dante gritava por ajuda num planeta morto. Em outro, enterrava um último companheiro. Em mais um, escrevia algo num pedaço de metal antes de simplesmente sentar-se… e esperar.

    A criatura surgiu em meio à escuridão com passos silenciosos, surgindo de uma luz que não vinha de lugar algum.

    — É isso o que você quer? — ela perguntou, a voz baixa, sem cinismo, apenas… exausta. — É essa a vida que pretende proteger com tanto esforço? Um final de escombros? A solidão como herança?

    Dante não respondeu. Seus olhos estavam fixos em um dos espelhos, onde ele observava uma flor murchar entre os dedos.

    — Você se orgulha da sua luta. Do que perdeu. Do que sobreviveu. Mas diga… — ela se aproximou mais um passo — …por quantas vezes mais está disposto a sangrar, se tudo que o espera é um mundo sem ninguém para lembrar?

    Dante engoliu em seco. A imagem em um dos espelhos mudou: ele ajoelhado, os punhos na terra, cercado por fogo. Chorando, sim, mas de raiva. De arrependimento.

    — Eu não vim aqui por mim — ele murmurou. — Eu vim por eles.

    Eles não estarão lá no fim. — a criatura respondeu, com firmeza. — Veja com seus próprios olhos. Veja a verdade: a esperança que carrega é apenas mais uma forma de orgulho. Você quer vencer porque tem medo de fracassar. E no fundo… — ela se inclinou, a voz agora como um sussurro à beira da alma — …você sabe que vai fracassar.

    Dante cerrou os punhos. Os espelhos tremeram levemente.

    — Não é fracasso… se eu tentar. Se ao menos eu tentar…

    Ela riu, suavemente. Um som amargo, cheio de melancolia.

    — Tentativas não reconstroem civilizações. Tentativas não salvam ninguém de verdade. Você terá uma lápide num mundo sem coveiros.

    Dante respirou fundo, olhos ainda fixos na versão futura de si mesmo, velho e sozinho, olhando para um céu sem estrelas.

    Então, ele falou, mais firme:

    — Se esse for o fim… se eu tiver que andar sozinho até lá… então será com os nomes deles na minha memória. E isso me basta.

    Os espelhos estremeceram outra vez, rachando em suas bordas.

    — Você prefere um mundo destruído à rendição?

    — Não. — Dante encarou a criatura. — Eu prefiro um mundo real… ao seu mundo mentiroso.

    Por um breve instante, o olhar da criatura tremeu. Algo vacilou em seus olhos — dúvida, talvez. Ou respeito.

    E então… o primeiro espelho se partiu.

    Depois o segundo.

    E o terceiro.

    Um por um, todos começaram a se despedaçar no ar, os estilhaços girando ao redor de Dante como poeira de estrelas morrendo.

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