Capítulo 347: O Caminho da Memória (II)
— O que é isso?
Dante arfou. Ainda atordoado, levou a mão ao interior do casaco, por instinto — e sentiu.
Um corpo pequeno. Pelagem áspera. Coração pulsando depressa. Olhos grandes e vivos o encarando de dentro do tecido. Um rosto que Dante tinha esquecido de como era por estar escondido por tanto tempo dentro de suas vestes.
— Nick… — ele murmurou, quase sem acreditar.
Era o pequeno Sugador que o salvou na Zona Cega.
Nick.
A pequena criatura, escondida entre as ramificações de suas vestes. Leal, silenciosa… e faminta por Energia Cósmica.
Nick ergueu o focinho, farejando o ar pesado. E, de repente, seus olhos se fixaram na criatura à frente deles.
O Rastro.
O cheiro da Energia era inebriante.
— Não… — a criatura sussurrou, instintivamente recuando um passo. — Não… isso é… impossível.
Dante não esperava que ele fizesse muita coisa, mas a aparição causou um grande medo no Rastro.
Os olhos dela arquejaram, sua força e arrogância sumiram de uma hora para a outra. E não só Dante sentiu isso.
Nick havia saltado do casaco como uma flecha viva, girando no ar. Suas presas brilharam por um instante, e então ele mordeu.
Não na carne. Na Energia.
A luz ao redor da criatura oscilou violentamente, como se algo essencial tivesse sido arrancado de seu núcleo. A pulsação amarela em seus olhos falhou, vacilante. Um tremor correu pelo corpo dela — não de dor, mas de surpresa.
Dante percebeu a oportunidade. Num único movimento, reuniu toda a força que ainda restava nas pernas e braços e se lançou para frente. Como um aríete humano, curvou o corpo e colidiu de ombro contra o abdômen do Rastro. Um estalo abafado ecoou pelo impacto, e a criatura foi empurrada, cambaleando.
Ele não parou. Continuou correndo com ela colada ao corpo, os pés socando o chão com violência, arrastando a entidade em direção a um dos prédios de Kappz — sua cidade, sua memória, seu lar.
Os chiados que tomavam conta de sua mente estouraram como vidro sob pressão, e então a voz de Vick retornou. Mas lenta, distorcida, como se atravessasse uma barreira invisível.
“Alerta… ataque… pelas costas…”
A cotovelada veio antes que o aviso se completasse.
A dor explodiu em suas costas, um trovão queimando através da espinha. Mas Dante não cedeu. Seu corpo vacilou por um instante, o joelho esquerdo quase tocando o chão… quase.
Então ele levantou o tronco com força e girou o quadril, descarregando um gancho certeiro bem no queixo do Rastro.
PÁ!
O impacto foi tão violento que o ar ao redor se distorceu. Os braços dela foram lançados para os lados pela força do golpe, como se tivessem sido apanhados por uma rajada de vento invisível.
Dante, ofegante, ergueu o braço com precisão. A mão encontrou Nick — que ainda vibrava com a Energia Cósmica sugada há instantes — e o lançou diretamente contra o peito da criatura.
— O que você está fazendo? — ela perguntou, mais surpresa do que assustada.
Nick cravou os pequenos dentes contra o centro do peito do Rastro e mordeu fundo. A energia contida nela estalou, tremendo em ondas violentas, como se o próprio tecido da realidade estivesse se desfiando. A pele dela, antes translúcida e serena, agora tremulava como papel em chamas.
Durante aquele instante de oscilação — onde o mundo girava e as cores se embaralhavam — os olhos dela captaram um último detalhe.
O punho de Dante.
Estendido para trás.
Postura firme, pés encaixados, respiração cadenciada.
— “Direto do Topo” — ele murmurou.
A Energia Cósmica se condensou ao redor do seu braço, vibrando em espirais que se estendiam para trás como uma cauda azulada. Era como uma aurora boreal, viva e pulsante, acompanhando o movimento do corpo com elegância feroz.
Dante não era mais apenas um lutador tentando sobreviver. Era uma força. Uma decisão. Um grito de existência num mundo fragmentado.
Cada parte de sua técnica — o peso nos calcanhares, o giro dos ombros, o alinhamento da cintura — estava perfeita. Como uma dança aprendida em silêncio, esculpida pela dor e pelo tempo.
E ela, o Rastro, sentia.
Sentia tudo.
Sentia que aquela não era apenas uma técnica. Era uma resposta.
Uma resposta ao que ela havia mostrado, às memórias falsas que entregou, ao consolo que ofereceu.
O golpe veio.
E antes mesmo de ser atingida, ela já havia sido quebrada.
O impacto explodiu contra o centro do peito, somado à presença de Nick ainda mordendo sua energia. Um rasgo cósmico se abriu entre os dois, lançando fagulhas e distorcendo o ar ao redor. O chão se partiu. A parede do prédio atrás deles ruiu com o tremor.
O corpo da criatura foi lançado longe, atravessando os escombros de Kappz, voando entre as memórias que tentou dominar.
Ela caiu, rolando, até se arrastar de joelhos… sem mais poder, sem mais luz nos olhos.
E ali, ajoelhada, com a pele trincada e a energia escapando em lamentos dourados, ela olhou para Dante.
Ele estava de pé.
Rasgando a respiração. Sangue escorrendo da boca. O braço direito quase sem forças. Mas…
Ele sorria. Não com soberba. Nem com desprezo. Mas com algo que ela nunca entendeu.
Esperança.
— Por quê…? — ela perguntou, quase sem voz. — Por que continua? Depois de tudo… depois de perder tanto. Por que ainda sorri, mesmo agora…?
Dante se ajoelhou à frente dela. Pegou Nick com cuidado e o colocou em suas costas. O Sugador havia crescido mais, seu corpo esticou depois de consumir tanta Energia Cósmica de uma só vez.
Por mais que Dante sentisse raiva dela, ainda existia pena em sua mente.
— Porque isso… é o que me mantém vivo. A dor, a perda, as cicatrizes. Tudo isso me lembra de quem eu sou. Eu não lutei pra fugir da dor. Eu lutei pra continuar sentindo.
Dante esticou a mão para o lado, os dedos abertos como quem chama algo que já conhece profundamente. Fragmentos dispersos de Energia Cósmica, ainda vibrando pelas ruínas da memória de Kappz, começaram a deslizar pelo chão. Como se atraídos por um campo invisível, arrastavam pequenas faíscas e traços de luz, serpenteando entre os escombros.
Aos poucos, foram se reunindo — pequenas partículas ganhando densidade, forma, intenção.
Dante observava em silêncio, enquanto os fragmentos subiam por seu braço e se fundiam em sua mão. Primeiro o cabo, depois a guarda e, por fim, a lâmina — acinzentada, robusta, pesada como o destino que carregava. A arma estava completa. Não era apenas uma espada. Era uma decisão.
— Eu… posso… — a voz do Rastro soou fraca, quase sussurrada. A criatura ergueu a cabeça com dificuldade, os olhos tremendo sob o peso da derrota. — Tentar…
Dante girou a lâmina para o lado, com um movimento firme e natural. A superfície da espada refletiu a imagem da mulher — fragmentada, partida, os olhos pedindo algo que nem ela mesma compreendia mais.
— Não. — ele respondeu, com uma serenidade cortante. — Você não pode.
E então, num único movimento, ele fez um corte limpo.
O som foi seco. Quase discreto.
A cabeça caiu na neve, rolando lentamente até parar de lado. Os olhos ainda abertos, congelados num último pedido. A boca ainda tremia, como se tentasse formular palavras que jamais teriam tempo de nascer.
Dante permaneceu parado, olhando para o corpo ajoelhado à sua frente. O silêncio que se seguiu era denso, preenchido apenas pelo som suave do vento percorrendo os escombros de Kappz.
No início… ele acreditou que havia chance. Que ela poderia mudar. Que talvez houvesse algo de humano por trás de tudo aquilo.
Mas não.
Algumas personalidades eram como rochas: firmes, intransponíveis. Não mudavam com o tempo. Nem mesmo diante da morte. Nem mesmo diante da verdade. Algumas pessoas, ou criaturas, queriam ser exatamente aquilo que foram destinadas a ser…
Até o fim.
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