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    O silêncio após o golpe se espalhou por Kappz como uma bruma espessa. A neve, que antes caía suavemente, parou no ar. Os ventos cessaram. Os prédios se mantinham de pé como sombras estáticas, congelados no tempo.

    Dante baixou a espada lentamente, ainda respirando com força. Seus olhos percorriam a cidade — mas algo estava mudando. Os contornos dos edifícios começaram a se desfazer em partículas de luz, como tinta sendo dissolvida em água. As ruas derretiam em neblina. As formas conhecidas da cidade que um dia chamou de lar evaporavam no ar como se nunca tivessem existido.

    Kappz estava desaparecendo.

    Não a cidade real, mas aquela construída pelas memórias — pelo desejo, pela dor, pela Energia Cósmica que tentou usá-lo contra si mesmo.

    Ele girou sobre os calcanhares, observando a paisagem ao redor se fragmentar, se partir em pedaços suaves que flutuavam para cima. Era como assistir a um sonho se desfazendo, lentamente, com gentileza. E então, quando o último pedaço da rua sob seus pés começou a se dissolver, algo brilhou.

    No centro do espaço esvaziado, surgiu uma esfera pulsante de luz.

    Pequena, quase do tamanho de um punho fechado, flutuava em frente a ele com uma calma sobrenatural. Sua superfície era translúcida, com cores se movendo em camadas — azuis, verdes, lilases — dançando como auroras vivas. Uma aura suave envolvia seu núcleo, e sua voz, quando veio, não teve som. Apenas sensação.

    — Você me enfrentou até o fim… e não cedeu.

    A esfera girou levemente sobre si, como se o estudasse.

    — Tantos outros caíram. Tantos desistiram. Mas você… Dante. Você lutou contra mim com algo que poucos possuem: convicção.

    Ele ficou em silêncio. Sua respiração ecoava no vazio onde antes existia uma cidade inteira.

    Convicção… — repetiu, com os olhos fixos na esfera. — Eu só… fiz o que precisava.

    — E mesmo assim, isso foi tudo. — A luz emitiu uma onda suave. — Você negou seus maiores desejos. Você não pediu para que Clara voltasse. Não desejou o retorno de Marcus. Não buscou o alívio da dor. Você quis… continuar. Mesmo que doesse. Mesmo que perdesse tudo.

    Dante apertou os dedos. A espada em sua mão dissolveu-se junto à lembrança da cidade, como poeira sendo levada pelo tempo.

    — Eu tenho um mundo para proteger. Mesmo que ele esteja em pedaços.

    A esfera pulsou mais uma vez.

    — Você será testado de novo. E de novo. Existem partes de mim espalhadas… antigas, adormecidas, corrompidas. Verdades enterradas sob os mares congelados e os céus rasgados. Há forças que nem você, nem eu compreendemos por completo. O mundo ainda guarda muitos mistérios, Dante. E todos eles querem algo.

    Ela se aproximou um pouco mais. A energia ao redor se tornou quente, reconfortante.

    — Mas se há um humano que pode suportar tudo isso, é você. Porque você foi o primeiro… a me recusar.

    Ele engoliu em seco, os olhos marejados. Não sabia se era dor, alívio, ou só o peso de estar de pé depois de tudo.

    — Então me diga… o que devo fazer agora?

    A esfera brilhou intensamente, quase ofuscando seus olhos. E, com suavidade, ela respondeu:

    — Fique mais forte do que tudo. Não por poder. Mas por escolha. E quando o próximo chamado vier… escute com o coração. Porque a próxima porta… talvez seja a última.

    A luz da esfera começou a se dissipar, subindo lentamente como poeira estelar.

    — Obrigado… Dante. Por ter me enfrentado… e me libertado.

    E então ela desapareceu.

    O mundo ainda desaparecia ao seu redor, camada por camada, como se a realidade estivesse sendo apagada por um pincel invisível. E, mesmo assim, Dante não tinha pressa. Permaneceu ali por um instante a mais, observando as ruas se dissolvendo em poeira de luz, os prédios se curvando em névoa, os detalhes sumindo aos poucos da paisagem.

    Mesmo que fosse um mundo feito de memórias… ainda era a cidade para a qual sonhara em voltar. Kappz. Não apenas o lugar, mas as pessoas. As vozes que o haviam guiado. Os olhos que o haviam confortado. Os nomes que o mantinham de pé nos piores momentos.

    Precisava agradecê-los.

    No fundo, lá dentro, onde as dores mais antigas se escondiam, ele sabia: parte da sua força naquela luta tinha vindo deles. Cada golpe, cada passo, era porque esses rostos ainda existiam dentro de si. E talvez… talvez fosse por isso que o Rastro não tinha vencido.

    Ela não tinha um lugar real para onde voltar. Era feita do reflexo dos outros, das dores dos outros, das histórias que não eram dela. Tentou viver pelas sombras que absorveu… mas nunca teve luz própria.

    O céu, acima dele, começou a mudar. Estrelas surgiram, acendendo uma a uma como brasas em meio ao preto profundo. Era o mesmo céu que vira tantas vezes enquanto caminhava pelas vielas de Kappz, quando ainda acreditava que um dia as coisas poderiam melhorar. E agora, ali, ele sentia que bastava ordenar — e tudo poderia mudar.

    A voz de Vick surgiu em sua mente, trêmula, enfraquecida.

    Energia sendo consumida velozmente… possível hibernação… Dante… foi um prazer poder observar… seus movimentos… novamente… Cada dia que passa… tenho mais certeza que… você vai… superar…

    A voz foi se perdendo em chiados, dissolvendo-se como o mundo ao redor.

    Dante fechou os olhos por um segundo. Quando os abriu, havia algo firme neles. Um brilho que só se vê em quem já esteve no fundo… e decidiu voltar.

    — Ainda não, Vick. — Ele bateu no próprio peito com força. — Vou consertar o que está quebrado aqui dentro. Vou desfazer essa maldição. Vou te trazer de volta. E vou voltar pra casa.

    Deu um passo à frente, firme, sem hesitar.

    O chão sob seus pés sumiu, mas ele não caiu. Caminhava agora sobre o vazio — um espaço onde nem a luz nem a escuridão reinavam. E à medida que seguia, as estrelas no céu iam piscando e se apagando, uma por uma, como se se despedissem dele.

    Mas havia algo diferente.

    Nas margens desse vazio, onde antes só havia o silêncio dos que dormem, algo começava a despertar. Corpos esquecidos por décadas. Consciências apagadas por séculos. Seres e vontades enterradas pelo tempo. Todos começavam a se mover… como se a chama reacendida por Dante tivesse alcançado até eles.

    Ergueu o braço direito em um gesto firme, quase desafiador. O coração batendo como um tambor.

    — Esse foi pra vocês.

    Ele, então, atravessou a escuridão.

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