Índice de Capítulo

    — A única forma de criar um Lagmorato é estando lá dentro. — Com o dedo apontado, Dante teve certeza de que a ideia de somente Marcus e ele irem era a ideal. Não precisaria se preocupar tanto. — O que acontece quando entrarmos é que vamos ser avisados de que tem inimigos, e os inimigos farão o mesmo.

    Os dois sentavam em um caixote de madeira, no pátio interno, do Reservatório, esperando dar o horário certo. Marcus não deixou de ser completamente grosseiro em relação a Dante quando colocou o restante do seu equipamento no corpo. Além da carabina em mãos, a cintura tinha dois coldres de cada lado com duas pistolas que não tinha visto até aquele momento, e em suas costas uma espécie de mochila que retraía uma maleta.

    Silêncio ponderou entre eles. Dante não tinha medo de adentrar lá, mas a situação era outra. Ter alguém consigo lhe dava uma atenção a mais. Desde que tinha enfrentado alguns na Capital, nunca foi em combate unido. Talvez, apenas quando esteja na Balsa, no seu primeiro dia.

    Dalia nem mesmo teria problemas em lidar com alguns piratas, quando pensava agora.

    — Eu quero saber se o que disse naquele dia era verdade. — Marcus não parava de passar o pano no cano da carabina. — Quando veio parar aqui, você enfrentou quarenta desses bichos sozinhos?

    — Por mais que eu queira dizer que não queria, é a verdade. — De mãos abertas, as uniu e separou lentamente. — Meus amigos foram encurralados, e não tinham como chamar por ajuda. Eu cheguei primeiro que todo mundo.

    O sangue fervendo, o sorriso estampado, a vibração dos seus músculos, cada golpe acertado era um Felroz voando. A sensação não tinha sumido.

    — E você não conseguiu salvá-los, não é? — perguntou Marcus, sobriamente. — Veio parar aqui.

    — Eu salvei eles.

    O rosto do atirador se virou lentamente.

    — O que eu estava fazendo não era para matar ou destruir, eu estava ganhando tempo. — Dante ergueu a mão na frente, esticando os dedos. — A minha missão era resgatar. A Capital estava muito longe do acampamento. Eles usaram um portal e saíram. Eu fui o último.

    Abaixou o braço, perdendo um pouco da força.

    — E veio parar aqui — concluiu Marcus.

    Concordar com aquilo era um pouco deprimente. Tantas vezes decidiu fazer o certo, e se seu pai havia lhe dito em um sonho que se jogar no portal e ter lutado foi a escolha correta, Dante não faria o contrário.

    Ele se levantou.

    — Vim para ajudar, como eu fiz com as pessoas que me apoiaram quando eu precisei.

    Marcus ainda tinha a cabeça erguida, mas soltou uma risada abafada. Sua carabina foi abaixada na diagonal enquanto ficava de pé. Seu traje o cobria completamente, parecendo ser um vulto. E sua risada se tornava meio macabra por debaixo do traje verde-escuro.

    — Sua ingenuidade é pior do que honestidade. — Marcus passou por Dante, na direção da porta. — Mas foi nela que eu decidi confiar hoje. Temos que achar a bateria enquanto estivermos lá dentro. Qual o plano?

    Dante respirou fundo e pôs a mão no bolso, puxando o charuto. Desde que tinha chegado a Kappz, não tinha tragado. E quando o fez, Marcus lhe deu mais uma risada.

    — O plano vai ser entrar, bater no que tem que bater, pegar a bateria e voltar vivos. — Lançou um olhar de lado para o atirador. — Simples e objetivo. Preparado?

    — Positivo.

    I

    Clara havia sentado novamente perto da beirada. Usou uma almofada larga e se ajustou confortável. Tinha pego um livro e um lápis, pondo em seu colo, e esperou. A cidade estava silenciosa, como sempre no começo da tarde. Não tinha tanto vento, as nuvens não foram carregadas nos últimos dias. Um cervo bem longe, no meio dos escombros, comia grama de cabeça baixa.

    Essa estranha sensação de paz sempre lhe deixava amargurada. Nunca era desse jeito. Quando o sol se despedia, as criaturas apareciam de todos os buracos possíveis. Seus ruídos, gemidos e roncos de fome carregavam também o medo aos que escutavam.

    Até mesmo os animais procuravam fugir quando a noite surgia.

    Essa sensação nunca desapareceu, nem mesmo quando as lamparinas a óleo clareavam seus quartos ou cômodos quebrados. Eles não tinham esperança em nada além de viverem um dia de cada vez.

    Pensar no futuro chegava a dar pena. Ninguém deveria ter falsas esperanças.

    — Eles têm coragem, Clara.

    Simone veio andando do outro prédio sozinha. E se sentou ao seu lado. Mesmo velhinha, ela tinha uma vontade absurda de estar por ali. Não precisava, mas Simone sempre dizia que ter companhia melhorava o dia.

    Tentou dar um sorriso, mas não foi muito efetivo.

    — Não confia neles? — perguntou Simone, achando estranho. — São boas pessoas. Ajudam bastante, mas você parece desconfortável. Por quê?

    — É difícil, bem difícil. Acho que o motivo foi porque quando eu tive esperança uma vez, ela foi arrancada de mim. — Os olhos de Clara se mantiveram estáticos no Reservatório. — Orar todos os dias por dias melhores sempre foi um ato de respeito pelo que perdi, mas nunca pelo que eu tive. Sempre pedir, nunca agradecer. Eu não queria agradecer porque sabia que se fizesse, me conformaria com a nossa situação. E eu odeio estar em um lugar onde não me sinto segura o suficiente e dizer às crianças que tudo vai ficar bem.

    — Bom, Deus está te ouvindo, não acha?

    Clara a encarou de lado.

    — Ele está?

    — Você pediu por força, Ele te deu batalhas. Pediu por sabedoria, Ele te deu lições. — Simone fez uma pausa, respirando profundamente. — O ar que você respira está limpo. Temos conseguido mais água, e os suprimentos foram doados sem ao menos termos confusão. Pode não parecer, mas quando você pede por ajuda, Deus te manda algo… ou alguém para te auxiliar.

    Clara ouviu um estrondo ecoar vindo do Reservatório. De dentro de um dos buracos do teto, um dos Felroz bateu contra as placas de ferro, e seu peito foi explodido por um disparo. Os rugidos ainda ecoavam, trazendo pessoas dos andares debaixo indo até suas janelas e buracos observando uma estranha aparição acima do reservatório.

    A numeração em vermelho, um número.

    — Esse é o famoso Lagmorato — disse Simone, mostrando gratidão. — Eu pensei que nunca veria um desses. Consegue entender, Clara? Você orou tanto que Deus te enviou um baita de um milagre.

    O número azul acima do reservatório continha apenas 10%, mas que era o suficiente para que o número na tela vermelha pulsasse sempre. Dante falava a verdade, como seu coração e mente diziam ser.

    No dia que o viu cair no meio da rodovia, não esperava que apenas algum tempo depois ele estaria lutando por uma causa que nunca foi dele. Uma missão um tanto suicida, qualquer um diria isso.

    Sua mão se juntou a outra, e ela apertou, enfiando entre as pernas. O peito batia um pouco mais forte, e não queria tirar os olhos de lá por nada. Queria mais do que tudo que os dois voltassem, com ou sem bateria.

    — Por favor… só voltem.

    I

    Marcus queria assumir a dianteira. Sua arma teria um disparo mais rápido por ter acoplado um pente de armazenamento. Os disparos com Energia Cósmica arrebentavam o braço e peito, criando um estalo na carcaça dos Felroz.

    O primeiro caiu velozmente. Ele tentou se aproximar por uma corredor e desabando várias caixas. Marcus puxou e deu um tiro direto. Caindo, Marcus puxou a pistola do bolso e disparou contra outro que tinha se aproximado.

    Quando o segundo caiu, mais três avançaram rapidamente. E pelo som que faziam atrás, tinha muito mais se chegando.

    Marcus recuou um pouco e estalou a língua. Guardou a pistola e puxou a alavanca da ISE. Estava no tempo de recarga quando um dos Felroz pulou na sua direção com um grito agudo.

    Os quatro braços do demônio se retraíram, prestes a avançar, algo muito forte o acertou na cara, o enviando contra a parede e explodindo um tanque. A explosão criou um buraco imenso no teto, fazendo a luz entrar e clarear bastante da escuridão do hall de entrada.

    Marcus usou aquele tempo para explodir a criatura que tinha conseguido sobreviver no alto. Ele recuou mais uma vez e recarregou. Abaixou um pouco e puxou a alavanca da arma, levantando e procurando o próximo.

    Foi quando entendeu que a racionalidade e a honestidade andavam muito bem junto.

    Era Dante. Como o velho estava batendo em mais de dois Felroz, Marcus não tinha ideia. Só que vendo pela câmera de calor, Dante bloqueava com o braço direito, subia por um dos membros do inimigo, e explodia outro contra o chão, criando um estalido e mandando o restante para longe.

    Não tinha entendido antes o perigo que corria, Marcus ficou intrigado porque apenas alguns Felroz estavam caminhando na sua direção se o tal Lagmorato anunciava que existiam dois inimigos para eles. Mas, era isso. O poder destrutivo de Dante se assemelhava a um disparo furioso que criava uma desordem e também estrago dentro da linha racional dos próprios Felroz.

    O caçador se torna a caça.

    Um dos Felroz tentou atacar pelas costas de Dante, mas o velho parecia ter visão nas costas. Marcus nem teve tempo de avisar. Assistiu o ataque passar raspando o vazio, e o pé se esticou, criando uma pressão de ar que estourou a carcaça.

    — Preciso que mantenha os inimigos afastados de mim pela direita — disse Dante ao pegar dois braços e os girar contra a parede. — Vou imobilizar, você finaliza. Vamos ficar muito tempo se nós nos separarmos.

    Marcus nem precisou pensar duas vezes. Ele já estava praticamente fazendo a cobertura. O primeiro caiu contorcido em seus pés, ele atirou na cabeça. O segundo foi agarrado contra um lustre no teto, e ele finalizou com facilidade.

    A facilidade de Dante em lutar em um espaço fechado era louvável, mas completamente insano. Marcus não esperava que até mesmo dentro de um ninho, veria que as criaturas, sem olhos, pareciam ter medo em suas faces.

    — Vamos em frente.

    Marcus concordou. Dante usou a palma aberta em linha reta, na direção de um corredor. O ar se contorceu até mesmo para Marcus que estava atrás dele, e os Felroz foram arremessados contra sua própria força para lá. Mais de duas dúzias enfiados em um corredor estreito.

    Engolindo em seco, Marcus abaixou a carabina por um segundo.

    — Quem caralhos é você, velho?

    Dante já estava mais a frente e não o escutou. Apenas retirou o charuto da boca e soprou a fumaça cinzenta.

    Era como ver algo pior do que um Felroz bem na sua frente.

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