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    A mesa armada no convés do Nokia era larga, feita às pressas com pranchas reforçadas e correntes para fixar as bases ao chão metálico. Dava conta de acomodar mais de cem pessoas, mas ainda assim não era suficiente. Apenas os tripulantes do Nokia se sentavam nela — não por hierarquia, mas por costume, quase como uma tradição silenciosa entre quem sobreviveu à travessia do Mundo Espelhado. Os demais, entre aliados da Capital, guerreiros de Yieno e soldados libertos, improvisaram suas próprias mesas com barris, tábuas e lonas. Empurraram os móveis juntos, como quem entende que a comunhão vale mais do que a organização.

    Com a queda da noite, o convés inteiro se iluminava com tochas e pequenas lanternas penduradas nos mastros. Era um calor dourado, quente, como se o próprio navio comemorasse estar de volta ao mundo real.

    Nos corredores internos, Nekop, junto de Miatamo, Guaca e Egiss, caminhava em direção à cozinha, prontos para ajudar no preparo do banquete. Já ensaiavam piadas sobre o quanto Egiss queimava arroz e o fato de Miatamo não saber quebrar um ovo. Mas assim que a porta foi aberta, deram de cara com a movimentação frenética dos Técnicos do navio.

    Panelas ferviam. Facas cortavam em ritmo preciso. Verduras eram organizadas por tamanho e textura, enquanto um forno enorme, envolto por uma contenção de ferro, rugia com o calor controlado das Pedras Lunares.

    — Pode deixar com a gente, senhores — disse um dos técnicos, erguendo o polegar com um sorriso orgulhoso. — Tudo vai estar pronto em uma hora.

    Mais de trinta pessoas se revezavam ali dentro. E mesmo com a cozinha expandida pelos fragmentos lunares, um espaço que podia crescer dezenas de metros com facilidade, ela nunca pareceu tão apertada. Gritos coordenados, vapores subindo, cheiros se misturando.

    Nekop gargalhou alto ao ver aquilo. Por um instante, esqueceu do que viria depois. Mas o riso murchou aos poucos, lembrando da obrigação que ainda pendia sobre seus ombros.

    — Precisamos fazer as apresentações — comentou aos companheiros. — Dante ainda não conhece os Capitães de Frota.

    — Agora não é o melhor momento — rebateu Guaca, com tom brando. — Dante disse que ia conversar com os seis capitães depois, pra alinharem um acordo.

    — Mas eles precisam entender onde estão se metendo — acrescentou Egiss, sério. — Saber o que enfrentamos, e o que está por vir com as Pedras Solares.

    Miatamo assentiu.

    — Podemos pedir com jeitinho, Anão. Dante não vai se importar.

    Voltaram ao convés. A festa se intensificava. Os barris de rum iam sendo empilhados lado a lado, e as canecas passavam de mão em mão, sem distinção de origem, farda ou bandeira. Um canto de louvor se elevava entre os soldados — da Capital, de Yieno, de tantas partes — todos celebrando aquele que os havia salvado. Havia música improvisada, pés batendo no chão de metal, palmas, assobios.

    Foi então que Nekop parou.

    Seus olhos subiram para o mar adiante… e então ele viu.

    Seis navios se erguiam lentamente da água, envoltos por um brilho tênue, ainda pingando o mar como se saíssem de um profundo sono. Eram as embarcações dos Capitães, que tinham sido tragadas durante a distorção dimensional. Agora voltavam, guiadas pela maré do mundo real.

    Ele olhou ao redor. Nada de Dante, tampouco dos Capitães de Frota. Pelo menos, não no convés principal. Então, ergueu o braço com firmeza.

    — Onde está o Capitão?

    A voz de Nekop cortou o ar como um estalo. O burburinho cessou quase de imediato. Canecas pararam a meio caminho da boca. Risadas morreram no ar. Por um instante breve, o silêncio pairou como uma névoa tensa.

    Foi quebrado pela risada debochada de Dante, ecoando do alto do timão.

    Ele surgiu lentamente, descendo os degraus em passo calmo, com os seis Capitães de Frota caminhando logo atrás — figuras robustas, cada uma distinta em porte e postura, mas todas sob seu comando.

    — Por que esse silêncio? — disse ele, os braços se abrindo num gesto teatral, quase divertido. — É hora de comemorar. Estive negociando para conseguir os navios dos nossos colegas de volta. Agora temos como continuar nosso banquete.

    Nekop soltou um suspiro aliviado. Nenhuma loucura, nenhum risco absurdo dessa vez. Por mais que gostasse das aventuras, reconhecia que, desde que Dante assumira o comando, eram guiados por uma sucessão de decisões arriscadas — uma linha tênue entre o improvável e o impossível.

    Só que elas funcionavam. Sempre.

    Observar a batalha contra o Rastro deixara marcas nele. Aquilo não era apenas mais uma jornada. Era uma corrida pela sobrevivência em ritmo brutal. Sob o comando de Bulianto, o mundo parecia mais estável — ele era um rei distante, que deixava a linha de frente para os seus homens. Já Dante… Dante segurava a corda com as próprias mãos, sempre na ponta, sempre no limite. Era ele quem barrava os perigos. Quem tombava primeiro se algo desse errado.

    Talvez por isso o saudassem com tanto fervor. Porque sabiam que aquele homem sangraria por eles.

    — Algo errado, Nekop? — perguntou Dante, aproximando-se. — Parece um pouco pálido.

    O anão se curvou imediatamente, um joelho no chão, com a mão sobre o peito.

    — Eu gostaria de apresentar ao senhor os dois Capitães de Frota que ainda não o conhecem. Sei que o momento é delicado, já que está reunido com os demais… mas creio que eles precisam conhecê-lo.

    Dante sorriu de leve, como quem entende mais do que demonstra.

    — Onde eles estão?

    Nekop piscou, surpreso pela facilidade da resposta.

    — Devem estar em suas embarcações neste momento. Posso ir chamá-los.

    — Então vá. Traga-os até aqui. Vamos conversar durante o banquete. E traga todos, não importa quem sejam. Estamos comemorando uma vitória.

    Sem dizer mais nada, Dante se voltou para Humber, o guiando até uma cadeira à mesa principal. Nekop se ergueu com um leve estalo nos joelhos, e encontrou Miatamo com um simples olhar. Eles trocaram um aceno e partiram juntos pelo convés, rumo à prancha de acesso.

    À medida que se afastavam, o som das comemorações foi ficando mais baixo — as vozes, os cantos, as risadas. Ao pisarem no primeiro navio, quase podiam ouvir o próprio respirar.

    Ali, o ambiente era sombrio, abafado, como se a festa não tivesse alcançado aquele lugar.

    — Lembro que Netero nunca foi dos mais calorosos — murmurou Miatamo, com um toque de incômodo. — Mas isso aqui… isso tá estranho.

    — Ficou mais escuro do que antes.

    Conheciam bem o caminho. Cruzaram o convés em silêncio, até a escotilha que levava ao interior. Desceram as escadas estreitas com passos contidos. No primeiro nível, um som os fez parar.

    Vozes. Vindas da antiga cozinha.

    Nekop ergueu a mão, pedindo silêncio. Aproximaram-se com cuidado, esgueirando-se pelas sombras, até que as palavras começaram a ficar nítidas.

    — …não podemos seguir um homem que foi colocado ali sem o nosso voto — dizia Pierre, com tom firme. — Mesmo que…

    — Mesmo o quê? — interrompeu Netero, a voz carregada de sarcasmo. — O Bastardo jogou a gente nesse buraco, sabendo que Bulianto morreria se não estivéssemos lá. E você quer comparar o antigo Rei com esse homem?

    — Claro que sim. Claro que vou comparar. Não conhecemos Dante. Dizem que era prisioneiro. Depois virou Vanguardista. E em menos de um mês foi eleito Capitão. O Nokia não é um navio que qualquer um pode comandar.

    Um suspiro longo ecoou da parte de Netero.

    — E o que vai fazer? Vai confrontar o homem que derrotou uma aberração de Energia Cósmica sozinho? — A pergunta soava mais como escárnio do que dúvida. — Bulianto tinha planos. Mas sequer deixava a gente tentar conversar.

    — Ele ia até o Fim do Mundo atrás do Desejo…

    Outro suspiro. Agora impaciente.

    — Eu poderia discutir com você a noite inteira, Pierre. Mas acho melhor ouvirmos de quem esteve com ele esse tempo todo.

    Silêncio.

    Nekop e Miatamo recuaram instintivamente, como se tivessem sido flagrados invadindo um ritual. Mas a voz de Netero os deteve:

    — Não precisam ir embora. Eu ouvi vocês quando ainda estavam na prancha.

    Sem ter como negar, os dois se revelaram, aproximando-se da luz fraca da lamparina pendurada sobre a mesa. Os dois Capitães estavam sentados frente a frente. As expressões sérias. O ambiente, carregado.

    Pierre ergueu a mão, chamando Nekop como quem cobra uma resposta.

    — Então, a pergunta que não quer calar…

    Fez uma pausa, e então:

    — Quem é esse tal Dante?

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