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    Pierre desceu da prancha com pressa, os olhos varrendo o convés como um predador inquieto. Virava a cabeça de um lado para o outro, farejando o caos antes mesmo de ele acontecer. Sua movimentação chamava atenção dos que estavam por perto. Os murmúrios, os risos, o som das taças — tudo parecia irritá-lo profundamente.

    — Cadê ele? — gritou, apontando o dedo direto para Miatamo, a voz quase um berro. — Onde está o seu capitão?

    Miatamo e Guaca se entreolharam, confusos, e correram em sua direção.

    — Capitão Pierre, o que aconteceu?

    Mas Pierre não respondeu. Virou o rosto mais uma vez, farejando o ambiente como um cão de caça até que seus olhos se fixaram. Um velho, de aparência pacífica, sorria enquanto conversava. Pierre não pensou duas vezes. Passou direto por Guaca e Miatamo, os passos pesados ecoando sobre a madeira enquanto marchava em direção ao homem.

    Foi então que uma figura interceptou seu caminho.

    — Senhor Pierre, não é? — disse Humber, erguendo um braço com firmeza. O rosto, embora calmo, carregava um ar mais severo do que de costume.

    — O que você quer? — rosnou Pierre. — Eu não tenho nada a tratar com você.

    — Imagino que não — respondeu Humber, sem se mover. — Mas não pode se aproximar de alguém com essa postura. Respire. Fale. Porque…

    — Porque o quê?! — Pierre estalou, batendo no braço dele e o empurrando para o lado. — Dante!

    O nome saiu como uma sentença, e o efeito foi imediato. Do outro lado do convés, Dante interrompeu a conversa com os outros capitães. Virou-se devagar, e o sorriso antes leve desapareceu de seu rosto. Agora, sua expressão era fria, calculada.

    Pierre estacou.

    Aquilo não era o que esperava. A pressão que sentiu ao encará-lo era opressora. Como se o próprio ar tivesse ficado mais denso.

    — Me chamou, Capitão Pierre? — disse Dante, caminhando dois passos em sua direção antes de parar. As mãos foram às costas. Seu tom era calmo. — Para gritar assim, imagino que seja algo muito importante. O que houve?

    — O Nokia não deveria estar sob o seu comando — disparou Pierre, sem hesitar.

    O convés silenciou. A festa, os risos, os brindes, tudo se desfez num instante. Como se nunca tivessem existido. Os olhos voltaram-se para os dois, atentos, como se soubessem que um momento decisivo estava por vir.

    Pierre não havia previsto isso. Sentiu-se nu diante de todos os olhares.

    Mas Dante permaneceu impassível. Sua aura não vacilou. Havia uma paz perigosa em sua postura, como um lago calmo que escondia águas profundas.

    — Eu sei disso — respondeu Dante, com um tom tão firme quanto suave.

    A resposta o atingiu com força. Pierre engoliu em seco. O peso que sentia nos ombros parecia dobrar.

    — Eu conheço a história deste navio, Pierre — continuou Dante. — E entendo sua raiva. Mas você não esteve aqui. Não viu o que aconteceu. Não viveu os dias que me trouxeram até este convés. E não tenho a menor intenção de ser um obstáculo para vocês.

    — Então por que veio?

    — Nekop — respondeu Dante, direto. — Seu amigo disse que, para vencer o Bastardo, eu precisaria de você e de Nero. Ele arrumou um jeito de colocar vocês aqui. Não perguntei como… mas confiei.

    Pierre recuou um passo. O nome ecoou em sua mente como um corte aberto. Nekop. Maldito Nekop. Bastava aquela palavra para que memórias violentas retornassem.

    Disparos. Homens ajoelhados. Espadas em pescoços.

    — Ele… ele é forte demais — murmurou. — Não tem como vencê-lo.

    — Eu já venci — disse Dante, os olhos fixos. — E posso fazer isso de novo.

    Pierre balançou a cabeça. Não acreditava. Ou não queria acreditar. Tentou recuar mais, mas duas mãos firmes tocaram suas costas: Guaca e Egiss. Não o seguraram, mas também não o deixaram fugir. Ele estava cercado. Pelos outros. Por suas próprias dúvidas.

    O Bastardo era só um homem… mas o que ele havia feito… era desumano.

    — Se quer minha posição, Pierre — disse Dante, firme — eu posso dar. Quero algo que o Bastardo também quer. E não importa o que aconteça, vou atrás disso. Ele tem mais navios, mais homens… mais poder. Mas eu não vou forçar ninguém a lutar por algo que não acredita.

    — Por quê?

    — Porque seria injusto usar o medo de um homem contra ele.

    Pierre sentiu a verdade pesar. Dante não mentia. Se mentisse, os homens que um dia serviram Bulianto jamais o seguiriam. Jamais teriam se ajoelhado. Jamais teriam sido leais como são agora.

    Ele mesmo só havia passado um mês preso. Um mês. Nada comparado há um ano… ou a quarenta, como alguns dos que ali estavam. Dante libertou todos eles com clareza, com intenção. Com escolha.

    — Se quiser partir depois de hoje — concluiu Dante — não vou me opor.

    Pierre baixou os olhos por um instante. Os dedos tremiam, e ele os fechou com força, tentando conter o torpor que lhe subia pelo braço. Respirou fundo. Uma. Duas vezes. Queria gritar. Queria dar um soco em alguém. Mas, acima de tudo, queria desaparecer dali.

    — Não é tão simples… — murmurou, a voz mais fraca, quase engolida pelo silêncio ao redor. — Você fala como se… como se fosse só uma escolha.

    Ele ergueu os olhos de novo, fitando Dante. A serenidade daquele homem só o afundava ainda mais. Era como olhar para alguém que já atravessou o inferno e decidiu não temer mais nada. Pierre, por outro lado, ainda estava preso lá. E o calor da fornalha queimava só de lembrar.

    — Ele matou meus homens. Os que se ajoelharam… os que resistiram… todos. Como você olha pra isso e diz que pode vencer?

    Dante não respondeu de imediato. Manteve o olhar firme, sem julgar, sem pressionar.

    — O medo é natural — disse, por fim. — Mas ele não pode ser o comandante do seu navio.

    Pierre mordeu os lábios, e aquilo o atingiu mais fundo do que esperava. Sua mão foi à cintura, buscando firmeza em qualquer coisa. Seu punhal. Sua dignidade. Mas tudo parecia escorregar pelos dedos. Havia raiva, sim. Mas era medo o que moldava cada passo.

    — Eu… eu não sou como Bulianto — balbuciou. — Eu só aceitei comandar porque… não tinha ninguém. E o Nokia… esse navio… ele carrega muita coisa.

    Sua voz quase falhou, mas ele endireitou o corpo.

    — Achei que, ao menos aqui, seria ouvido. Respeitado. Não… substituído.

    Dante soltou um leve suspiro, mas não demonstrou qualquer reprovação.

    — Você ainda é respeitado, Pierre. Não por ser forte. Mas por continuar de pé mesmo depois de tudo.

    Os olhos de Pierre vacilaram. Era uma frase simples. Mas em sua alma, soou como um chamado.

    Guaca e Egiss não recuaram. Não o empurravam, mas permaneciam ali, como se dissessem: Estamos com você. Mesmo assim.

    — Eu não consigo confiar em você… ainda — disse ele, trêmulo. — Mas se Nekop confiou… se ele realmente acreditava nisso…

    Engoliu seco. Dante não se moveu.

    — Então eu fico.

    Era uma rendição torta, cheia de rachaduras. Mas era tudo que Pierre conseguia oferecer. E Dante, com um breve aceno de cabeça, aceitou.

    — Eu aprecio sua permanência, Pierre. — Dante se virou, vendo que Nero e Nekop voltaram. Miatamo logo atrás. — E mesmo que eu não possa te garantir um destino onde possa confiar em mim, peço que confie nos seus amigos. E não precisa se preocupar com o Bastardo, eu o farei entender o que uma luta de verdade.

    Dante não poupou palavras. Dava pra sentir, mesmo que no meio da serenidade, que ele tinha algo guardado consigo. Pierre não sabia o que era, mas preferia acreditar que era raiva, porque precisaria para ganhar daquele homem.

    Alguns dos seres mais cruéis eram os que pensavam abertamente.

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