Capítulo 354: Passos para a Guerra
Gladius desceu os últimos degraus da passarela com o peso de quem carrega a própria terra às costas. Seu manto grosso raspava contra o ferro envelhecido, e a cada passo, o som se espalhava como um tambor abafado. Parou a poucos metros do Bastardo, braços cruzados diante do peito.
— Não gosto de visitas sem aviso — disse, com firmeza. — Ainda mais de homens que trazem títulos, mas não explicações. — Seus olhos pesavam. — Não me interessa se é rei, filho de rei ou maldito profeta. Esta é Onkotho. Aqui, você sangra igual aos outros.
O Bastardo manteve-se calmo, ereto, como se o frio do ar e a hostilidade não tivessem encontrado brechas para atravessá-lo.
— Não vim pelo seu respeito, Gladius. Nem para disputar sua muralha de ferro.
Gladius inclinou levemente a cabeça, desconfiado.
— Então por que veio?
O Bastardo olhou para os céus nublados acima da prisão. O vento arrastava nuvens densas, como se as próprias correntes do tempo se movessem com mais urgência ali. Era um lugar tão longe, mas também perto demais do que procurava.
— Porque os oceanos mudaram — respondeu, finalmente. — A água não responde mais como antes. As correntes estão erradas. A gravidade cede em pontos onde antes era firme. E… as Pedras Solares — sua voz perdeu um tom — estão silenciosas.
Gladius franziu o cenho.
— Está dizendo que perdeu controle sobre um objeto que não conhece em nada?
O Bastardo cruzou os braços lentamente.
— Estou dizendo que o que alimentava esse poder… se deslocou. Se tornou volátil. Incompleto. — Ele deu um passo à frente. — Você acha que o mundo ainda está sob os mapas antigos. Acha que as correntes obedecem à homens fortes com lanças afiadas. Mas a verdade é que algo abaixo de nós acordou. Algo mais antigo que nossas cidades. E vamos precisar de mais do que ferro e paredes para alcançá-lo.
Gladius não respondeu de imediato. O vento soprou com força entre eles, trazendo o cheiro azedo do sal e da umidade envelhecida de Onkotho.
— E o que quer de mim? — perguntou ele, por fim.
— Um prisioneiro — disse o Bastardo, firme. — Um homem que sobreviveu à fragmentação de uma Pedra Solar. Se alguém ainda escuta a voz da Energia Cósmica, é ele.
Gladius apertou o maxilar. Por um momento, a recusa já se formava em sua garganta, mas ficou presa.
— Isso é loucura.
— Loucura — respondeu o Bastardo com um meio sorriso — é continuar fingindo que ainda somos senhores de um mundo que já nos deixou para trás. Ele tinha uma facilidade para entender o que a Energia Cósmica quer, e eu preciso dele. Por isso estou aqui, carcereiro.
— Carcereiro? — As palavras acertaram Gladius como um tapa no rosto. Seus olhos se estreitaram. — Eu não sou mais o homem que era quando o antigo Rei pisou aqui. E mesmo que fosse, nunca foi o medo que me deu respeito.
Ele deu um passo à frente, firme.
— Se quer um prisioneiro, então faça como os familiares desesperados que nos enviam súplicas, seladas e chorosas. Espere. Espere pacientemente que ele saia por vontade do tempo. E, por todos os deuses que você diz venerar, Bastardo… espero sinceramente que ele nunca saia.
O Bastardo apenas sorriu, calmo. Sem escárnio, mas com uma frieza que congelava o ar entre os dois.
— Eu tenho todo o tempo do mundo, Gladius. O problema é que você não tem. Nem tempo, nem disposição para competir com o que vem por aí. Eu fui sincero — sua voz desceu um tom. — Vim com um propósito. E não sairei sem ele.
Ele ergueu a mão lentamente.
Ao longe, os canhões do Escárnio de Ferro giraram em uníssono, como olhos de titãs despertando. Todos apontaram para a direção da prisão. As bocas de ferro tremeram com o ranger de suas engrenagens, prontas para cuspir destruição.
Mas os dois homens não se moveram.
Gladius permaneceu imóvel, os olhos deslizando pelo navio de uma ponta à outra. O respeito que não confessaria em voz alta se revelava no modo como não piscava diante da ameaça.
— Se eu contasse todos os idiotas que já pisaram aqui querendo tirar algum prisioneiro, amigo ou inimigo, perderia meu dia inteiro — murmurou Gladius, sem erguer a voz. — Não precisa me ameaçar.
Virou o rosto apenas o suficiente para encará-lo.
— Você pode levar quem quer… sem derramamento de sangue. Só precisa do selo da Marinha III. Não é tão difícil. Para quem sabe pedir.
O Bastardo inspirou fundo. O ar parecia mais pesado entre eles agora.
— Acha mesmo que eu deveria mendigar um selo que nem Bulianto conseguiu?
Gladius sorriu pela primeira vez, mas não havia leveza em seu sorriso. Era o tipo de sorriso que precedia o som de um portão se fechando para sempre.
— Pode acreditar no que quiser. Mas você conhece a história dele. E se conhece, sabe que o Rei do Leste jamais pisou fora do Oceânico Polar II sem razão. E nunca provocou a Marinha III. — A voz dele endureceu. — Porque sabia que não é só um oceano que se vira contra você quando mexe com a prisão de Onkotho. É o mundo inteiro que se move. Você quer mesmo fazer isso?
O Bastardo ficou em silêncio. O mesmo silêncio com que já jurara lealdade a homens errados, a causas condenadas, a reinos que não existem mais. Gladius sabia. Sabia que ele carregava o tipo de orgulho que vem não do nome, mas da sobrevivência. O tipo de homem que só permanece de pé porque nada mais ao redor ainda está.
— Então? — continuou Gladius. — Vai insistir nessa estrada?
O Bastardo não respondeu com palavras.
— Você tem dois dias para preparar meu prisioneiro. — Bastardo girou nos calcanhares com frieza, caminhando de volta sem pressa, deixando que apenas o peso de suas palavras permanecesse no ar como uma sentença.
Cloud o seguiu, ainda tentando entender o recuo.
— Senhor… por que estamos indo embora? — perguntou, inconformado. — Podemos vencer essa batalha. Nem mesmo Gladius conseguiria nos deter agora.
Já próximos da prancha de embarque, Bastardo parou por um instante. O vento carregava o cheiro da chuva misturado ao sal e à ferrugem, mas havia algo a mais. Algo antigo, denso. A prisão diante deles, tão colossal e silenciosa, não parecia mais o mesmo lugar que ele visitara anos atrás. A atmosfera havia mudado.
— Ele não está apenas guardando um prisioneiro. — Bastardo subiu a prancha, e Cloud o acompanhou. — Ele está guardando a própria Pedra Solar.
No meio do grande pátio de pedra, entre as duas torres imensas que vigiavam a entrada de Onkotho, Gladius observava em silêncio. O Escárnio de Ferro desaparecia pouco a pouco no nevoeiro gélido, tragado por uma tempestade que parecia respeitá-lo. Um navio que nunca tivera dono agora se curvava a um homem que Bulianto sempre manteve à margem — e isso nunca foi por acaso.
Gladius apertou os olhos. Se ao menos eu tivesse entendido as palavras dele naquela época… Se eu tivesse escutado como devia.
Bulianto ainda estaria vivo. Tinha certeza disso.
Ele se virou, com o manto tremulando ao vento, e desceu pelas escadas internas de pedra, com a voz firme ecoando entre os corredores gelados.
— Parece que terei que me preparar para uma guerra. — disse sem hesitar. — Lagarto, mande uma mensagem para a Marinha. Diga que o Bastardo está atrás da Pedra Solar que Bulianto confiou a mim.
Das sombras do pátio, uma figura emergiu lentamente, a camuflagem desfazendo-se como poeira ao vento. Um homem de aparência reptiliana, com o corpo parcialmente coberto por escamas esverdeadas e rachadas, surgiu diante dos soldados. Seus olhos, amarelos e largos, analisavam tudo com uma calma inquietante.
— Daqui a dois dias, Onkotho estará em guerra — disse Gladius com um sorriso enviesado. — Mande também mensagens ao Rei do Oeste… e às Duas Rainhas.
Ergueu seu chapéu surrado, revelando o rosto cheio de cicatrizes antigas e pele partida ao redor dos olhos. Ele e Gladius começaram a caminhar em direção à entrada principal da prisão.
— Achei que você iria querer saber. — Lagarto quebrou o silêncio, com um tom quase divertido. — Há um nome circulando. Alguém que derrotou o Bastardo desde que ele se autoproclamou Rei do Leste.
Gladius não se virou, apenas assentiu, o olhar fixo nas muralhas à frente.
— Envie também uma mensagem para Nekop. Diga que um conflito de proporções colossais se aproxima… e pergunte o que ele pretende fazer.
Talvez houvesse uma saída sem sangue. Talvez ainda existisse espaço para diplomacia. Gladius queria acreditar nisso. Mas o mar, o maldito mar, era um lugar que criava monstros. E os monstros nem sempre lutavam por razões nobres. Alguns queriam poder para mudar o mundo. Outros, apenas para moldá-lo ao próprio reflexo.
Infelizmente, só um tipo deles morria defendendo o que era certo.
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