Capítulo 355: Finalmente, em Casa
O sol ainda não havia nascido por completo, mas a luz alaranjada do amanhecer já tingia o convés do Nokia com tons dourados e tristes. Uma tristeza que fazia Dante sorrir, mesmo assim.
As gaivotas giravam distantes, e o vento soprava frio, trazendo consigo o cheiro do sal e também do rum que derramaram nos últimos dias. Mesmo que eles fossem embora, ainda carregavam uma vida inteira do que foi estar preso em um lugar.
Dante estava encostado na amurada, observando o mar com olhos perdidos. Ouviu os passos se aproximando atrás de si. Dois pares distintos. Conhecia bem aqueles sons mesmo estando tão pouco tempo com eles.
Virou-se devagar e encontrou Humber, com seu velho casaco de couro jogado por cima do ombro, e Kefiane, com os cabelos presos em um lenço escuro, os olhos fixos nele como se quisessem gravar tudo em silêncio.
— Então é isso — disse Dante, sem rodeios. – Está na hora de nos despedirmos.
Humber assentiu com pesar.
— A estrada nos chama. Dos últimos quarenta anos, os últimos dois dias foram os únicos que não reclamei por estar preso.
— Nem tenho do que reclamar — disse Kefiane com um sorriso satisfeito, pousando a mão na barriga. — Comi por todos os dias que ficamos aqui, e um pouco mais.
Dante soltou uma risada breve, sincera, enquanto o vento agitava levemente os fios do seu casaco.
— Fico feliz que tenham sido bem recompensados. Vocês mereciam. Mas sei que esse não é o lugar onde vão querer ficar. Há terras esperando por vocês, e aposto que vai ser um evento e tanto quando regressarem. Só espero que sejam recebidos com a bondade que merecem.
— Não somos os mesmos de quando partimos — disse Humber, com a voz firme, mas calma. — Eles vão querer respostas. E vão tê-las. Talvez não da forma que esperam, mas terão. O Rastro poderia ter nos moldado… mas foi um velho quem nos venceu.
Kefiane bocejou, encarando o nascer do sol que tingia o céu de tons quentes e suaves.
— Ah, chega de papo profundo — murmurou, espreguiçando-se como uma gata. — Vamos logo com isso. Quero ver como está a minha terra. Vai ser divertido ver meus irmãos com a boca aberta me vendo chegar.
Dante assentiu, puxando algo do bolso. Um pequeno papel dourado, fino como seda, mas com um brilho sutil e constante. Estendeu-o com cuidado.
— Nekop me deu essas duas páginas. São comunicadores. Se escreverem aqui, a mensagem chegará até mim, não importa onde estiverem. Quero ter certeza de que chegaram bem… e que não foram mandados para algum buraco errado nesse mundo rachado.
Humber pegou a primeira folha, dobrou com cuidado e guardou no bolso da túnica, como quem guarda uma promessa.
— Não se preocupe, enviaremos notícias assim que colocarmos os pés em casa.
Kefiane tomou a outra e fez o mesmo. Depois, olhou para Dante com os olhos levemente úmidos, mas sem perder a firmeza.
— Yieno não é o melhor lugar do mundo, pode acreditar. Mas… se um dia aparecer por lá, será bem-vindo. Por mim e pela minha família. — Estendeu a mão, surpreendendo até a si mesma. — Obrigada. Por me libertar de algo que nem eu sabia que queria sair.
Dante segurou sua mão com firmeza, um gesto silencioso e cheio de significado. Em seguida, apertou a de Humber. O velho comandante não soltou de imediato. Fitou-o nos olhos com uma expressão generosa, de quem reconhecia a coragem em outra alma.
— Farei o que for preciso — disse Humber. — Pode confiar.
Dante apenas assentiu. Não precisava de mais palavras.
Os dois então se entreolharam. Numa sincronia quase simbólica, levaram a mão direita ao pulso esquerdo. Lá, uma pequena flor de lótus brilhou em dourado, como se despertasse apenas naquele momento. A luz do sol, agora surgindo completamente no horizonte, iluminava suas figuras.
A pele dos dois começou a se desfazer em filamentos dourados, como poeira levada pelo vento. Dante os observou serenos, enquanto seus corpos se dissolviam e eram sugados lentamente para o alto, em direção ao teto do Mundo Espelhado.
E então… desapareceram.
Os flocos dourados restantes foram levados pelo vento, espalhados como sementes de uma promessa antiga.
Dante permaneceu imóvel, os olhos presos no céu.
— Daria tudo pra ter o mesmo fim — murmurou, quase imperceptível.
A amargura subiu à garganta, travando qualquer palavra que ainda restava. Ao virar o rosto, viu centenas de outros flocos se elevando, desaparecendo junto de seus respectivos capitães. Todos se foram.
E sem perceber, sua própria tripulação havia emergido ao convés, em silêncio. Estavam lá, ao lado dele.
O sol, agora pleno, se tornava forte demais para encarar. Dante fechou os olhos.
Quando os abriu novamente, o mundo parecia mais denso. Os ventos estavam mais lentos. As águas, mais escuras.
Estavam em casa.
— Capitão — disse Nekop atrás dele, com a voz baixa, mas firme. — Sei que não é uma boa hora, mas recebi uma mensagem… de um homem que servia ao Bulianto. Como nós.
Dante não respondeu de imediato. Apenas virou-se um pouco, ouvindo.
— Por que ele mandou uma mensagem agora?
— Existe uma prisão no Oceânico Polar III, próxima à divisa com o Polar I. Bulianto a visitava todo ano, pelo menos uma vez, mas nunca soubemos o porquê. Talvez fosse parte de um acordo com a Marinha. Mas… esse cara não mandaria mensagem só por isso.
Dante franziu o cenho.
— Bulianto continua nos arrastando para lugares onde nem deveríamos pisar, não acham?
Nekop hesitou. Os outros membros da tripulação também ficaram desconfortáveis. Bulianto tinha raízes por todo o mapa. Evitar sua sombra era como tentar fugir da própria história.
— Sei que o senhor não precisa seguir isso, mas Onkotho custou muitos dias de conversa e contratos para esta tripulação — disse Nekop. — Gladius, por mais extremista que seja, nunca nos enviou mensagem alguma. Até hoje.
— Capitão… — a voz de Pomodoro cortou o momento, arrastada, mas convicta. — Sei que não tenho o mesmo peso de voz que os Vanguardistas, mas se Nekop diz que Onkotho precisa de ajuda… então por que não ajudar?
Dante ficou em silêncio.
Salvar aliados. Mandar guerreiros para casa. Vencer um Rastro. Nada disso significava algo se não pudesse corresponder àqueles que ainda chamavam por ele.
O sol poderia ser coberto por nuvens e tempestades, mas ainda estaria lá, acima de tudo.
Ele sorriu.
Virou-se, encarando os seus.
— Então… vamos até eles.
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