Capítulo 361: Fatores
Cayan firmou os pés no chão. O eco das ordens de Humolo ainda ressoava nos seus ouvidos. Seus dedos se esticaram devagar, trêmulos, mas carregados de eletricidade estática. Ele sentia cada partícula metálica ao redor, o ferro dos estilhaços, o núcleo das balas, os restos retorcidos da muralha bombardeada. Tudo pulsava.
As palmas viraram para frente.
Um segundo de silêncio.
E então, como se puxasse o ar para dentro do peito, Cayan inspirou profundamente e liberou a energia.
Um estrondo metálico sacudiu o campo de batalha. Todos ouviram. As balas cravadas no chão, presas em destroços ou perdidas entre as rochas, estremeceram, tremeram… e começaram a vibrar.
Em questão de segundos, dezenas de projéteis se ergueram como marionetes sacudidas por cordas invisíveis. O magnetismo gritou com força brutal. O ferro dançava, obedecendo ao chamado do garoto.
— Agora… — murmurou Cayan, e fez um movimento circular com os braços.
As balas se alinharam em seu redor, girando em espiral, como satélites de uma estrela nova. O zumbido era ensurdecedor. A pressão no ar era tão densa que alguns soldados ao redor deram passos para trás. Gladius, ainda ajoelhado, ergueu os olhos, surpreso. Era mais do que controle — era domínio.
Com um movimento seco, Cayan jogou os braços à frente.
— Vão!
E elas foram.
As balas atravessaram o espaço, ganhando uma cor alaranjada e soprando com Energia Cósmica ao redor. Centenas de projéteis retornaram como cometas, em uma chuva compacta e destruidora, apontadas direto para os navios do inimigo.
Do outro lado, em meio ao mar agitado, Kanecy observava em silêncio do convés de seu navio. Seus olhos semicerrados refletiam o céu cinzento, enquanto o vento batia contra os cabelos molhados. O Bastardo o encarava de longe, como se pudesse enxergar dentro dele — sabia exatamente o que aquele rapaz estava prestes a fazer. Mesmo sem ser o mais decidido entre os seus, Kanecy tinha uma força incomum.
O motivo era simples: ele era a própria água.
— Tá esperando o quê? — gritou o Bastardo, a voz firme como aço. — Quer tomar um tiro antes de agir?
Kanecy coçou o pescoço, devagar, com a expressão de quem acabara de acordar de uma noite mal dormida. Os olhos, quase sempre caídos, passavam uma estranha calma.
— Só tô cansado, chefe. Ficar tanto tempo no mar me dá esse torpor… — disse, com um suspiro. Lentamente, esticou o braço na direção da linha inimiga. — Mas o senhor manda, eu obedeço. Sempre foi assim.
E então, como se o oceano atendesse a um antigo pacto, a água ao redor começou a se mover. Um som grave — profundo como as entranhas do mar — preencheu o ar. Em segundos, uma muralha líquida começou a se erguer diante da frota. Colunas de água ascenderam com violência, dançando e se entrelaçando até formarem uma parede viva, espessa, que cortava o horizonte como um escudo natural.
As primeiras balas voltando de Cayan bateram contra ela com estalos agudos. Algumas conseguiram atravessar as primeiras camadas, mas perderam força no caminho. Outras foram engolidas por redemoinhos e cuspidas de volta ao oceano. A muralha ondulava a cada impacto, reverberando como pele sob tensão, mas se mantinha firme.
No alto do mastro de um dos navios, um atirador não teve a mesma sorte. Uma bala atravessou as ondas e o atingiu em cheio no peito. Ele foi lançado para trás como uma boneca de trapo, soltando um grito abafado antes de despencar.
— Opa…
Alguns dos tripulantes agiram rápido e conseguiram segurá-lo antes que batesse no convés.
— Para de brincar, seu desgraçado! — berrou Cloud, surgindo da lateral, ofegante e irritado.
— E quem disse que eu tô brincando, idiota? — retrucou Kanecy, mantendo os braços erguidos enquanto o mar rugia ao seu redor. — Quem tá atirando isso aí não tá poupando força nenhuma. E eu tô segurando tudo com a cara e a coragem!
Bastardo desviou o olhar para o navio à esquerda. Lá, na mesma posição que ele, estava um homem mais velho, na casa dos cinquenta, de postura ereta e um rosto sereno, quase nobre. Os olhos dos dois se cruzaram brevemente. Bastardo apenas assentiu com a cabeça.
O homem respondeu com um gesto sutil e virou-se para um de seus subordinados.
— Hindoe, vá agora — ordenou com calma.
Bastardo então gritou:
— Kanecy! Aguente firme. Hindoe está a caminho.
Kanecy rangeu os dentes. As balas começavam a desacelerar, e sua muralha já tremia sob o esforço constante. Até que, num único instante, a barreira de água cedeu parcialmente, escorrendo como se estivesse sendo puxada para algum lugar.
Foi quando uma explosão colossal rugiu bem diante da frota.
O mar se abriu em um buraco negro e giratório. O impacto fez as embarcações estremecerem e a água ao redor foi sugada com força brutal. Os navios começaram a ser puxados em direção ao vórtice, e até mesmo o ar parecia escapar para dentro daquele vazio.
Kanecy cambaleou, sentindo a pressão contra o corpo. O frio na barriga veio junto com o som do casco rangendo.
Bastardo olhou para frente, em direção à prisão.
E lá estava ele.
Um velho de aparência frágil, ajoelhado sobre uma poça, com as duas mãos unidas no centro da água. O olhar sereno, imóvel, como se fosse parte da própria rocha. Era dali que a explosão viera.
Era ele. Aquele maldito…
— Banners! — Bastardo vociferou, os olhos arregalados como se visse um fantasma.
A risada que ecoou em seguida destoava completamente do caos ao redor. Enquanto o navio era arrastado para o centro do vórtice enegrecido, os gritos dos tripulantes enchiam o convés, todos em desespero, gesticulando sem rumo. Mas Bastardo sorria. Um sorriso largo, encantado, quase nostálgico.
Claro que aquele desgraçado estaria ali.
Banners era uma aberração. A personificação da imprevisibilidade. Sua habilidade, chamada apenas de Cópia, parecia simples: imitava habilidades de outros, com intensidade reduzida. Mas o que ele fazia com esse pouco… era assustador.
O buraco que abrira no oceano — o rombo abissal que girava e sugava tudo à frente — não fazia sentido algum. Bastardo sabia que nem mesmo o original daquela técnica teria causado tanto estrago. Só alguém como Banners poderia brincar com a realidade dessa forma.
— Senhor! — gritou Cloud atrás dele. — Tamires está pronta!
— Então chega de espera. Vai!
Um vulto cortou o ar. Surgindo entre eles como uma flecha viva, uma mulher saltou para a beira do navio. Tamires. Usava um colete fechado até o pescoço, luvas negras que reluziam no frio do ar salgado. Sem hesitar, lançou-se no abismo à frente, descendo direto na direção do buraco giratório.
Ela parecia deslizar pelo vento, e no exato momento em que atravessou o limiar. O ponto sem retorno, estalou os dedos.
A muralha de água tremeu com um rugido surdo. Ondas se retorceram, formando espirais que giravam ao seu redor. E então, no instante seguinte, quando tocou o fundo do vórtice, um jato monstruoso de água irrompeu de baixo, lançando-a de volta ao céu como se o mar a estivesse cuspindo.
Tamires subiu sobre uma pilastra colossal feita do próprio oceano. Por um momento, ficou suspensa no ar, com o buraco fechando lentamente abaixo de seus pés, agora sob controle. A água, antes rebelde, parecia obedecer à sua presença.
— Fica complicado trabalhar assim… — murmurou para si, franzindo o cenho. — Sempre eu que tenho que entrar nesses buracos absurdos no oceano. Tsk.
Com um movimento sutil das mãos, o pilar de água sob seus pés se torceu. Todo o volume se contorceu como um chicote fluido, moldando-se em uma rampa larga que descia em curva, apontando direto para a prisão à distância.
E então, com um gesto final, todo o caminho se congelou.
Num estalo seco, o oceano virou gelo. A rampa espelhada reluzia sob o céu cinzento, sólida como pedra, imponente como uma estrada construída pelos deuses. Bastardo ficou impressionado, não era qualquer que teria aquele controle e precisão, nem mesmo uma familiaridade para construir
Tamires desceu por ela com firmeza, seus passos ecoando pelo gelo recém-formado.
— Caminho aberto — anunciou, com um sorrisinho debochado nos lábios. — Agora, vamos mostrar pra esses bastardos como se atravessa um mar em guerra.
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