Índice de Capítulo

    Gladius sentiu os olhares dos aliados recaírem sobre ele no instante em que se pôs de pé. A dor ainda martelava seus braços como marretas, cada músculo tremendo sob o esforço. Mas ele se manteve erguido — firme, apesar de tudo. Sabia que um líder caído doía mais no coração de seus homens do que a própria derrota. Ser visto em pé, mesmo ferido, era uma declaração silenciosa: ainda não acabou.

    Com um leve suspiro, ele estendeu a mão e bateu no ombro de Cayan.

    — Você fez um ótimo trabalho.

    — Obrigado, senhor — respondeu o rapaz, ofegante.

    O suor escorria por seu rosto, misturando-se à poeira e ao cansaço que deformavam suas feições. Mas ali, no meio da exaustão, havia um sorriso. Pequeno, mas genuíno.

    Gladius então se virou para o homem que se aproximava por trás.

    — Você também, Banners. — Seu tom carregava respeito. — Não esperava menos de você.

    Banners apenas assentiu com um brilho de loucura nos olhos, ainda com o riso contido, como se estivesse se divertindo em meio ao caos.

    Mas o momento não durou. Gladius olhou para o caminho de gelo que agora cruzava o mar até a prisão — uma estrutura congelada, sólida, impossível de ignorar. O que o preocupava não era a passagem em si, e sim quem a havia construído.

    — Temos outro problema — disse, sério.

    Aquela mulher não era conhecida apenas por sua força. Tinha fama por crueldades que deixavam marcas e traições que custaram vidas. Muitos preferiam sussurrar seu nome, como se ela pudesse ouvi-los até mesmo de longe.

    — Tamires não é uma mulher fácil de lidar — disse Humolo, avançando alguns passos. Sua voz agora era firme, decidida. — Deixe ela comigo. Eu cuido disso.

    Ele olhou para os demais com intensidade, e sua presença parecia crescer ali mesmo.

    — Os outros, fiquem com o chefe. E protejam esta prisão com tudo que têm.

    Gladius assentiu silenciosamente, e por um breve instante, sentiu-se menos sobrecarregado.

    — Vamos realizar um recuo estratégico — disse Gladius, a voz firme, embora a dor ainda latejasse em sua mão e antebraço. A pele queimada pelo uso do Pulso Azul ardia como se ainda estivesse em chamas. Mesmo ferido, ainda era suficiente para lutar… mas não por muito tempo. Banners e Cayan, ao seu lado, estavam na mesma condição: o olhar carregado, os músculos tensos, o cansaço colado nos rostos.

    — O restante de vocês fica aqui — continuou Gladius, encarando os soldados que o cercavam. — Ajudem Humolo. Vamos nos recuperar e voltar logo.

    — Tem alguns medicamentos lá dentro — comentou Humolo, os olhos fixos em Tamires, que permanecia imponente sobre a ponte de gelo. — Não precisa correr. Lagarto está cuidando das coisas por aqui.

    Gladius assentiu e deu o primeiro passo em direção à porta da prisão, ladeado por Banners e Cayan. Seus passos eram pesados, mas decididos. À medida que atravessavam a linha dos soldados, uma voz rastejou por entre os ecos do vento, vindo de trás.

    — Está fugindo de mim depois do que disse naquele dia? — zombou o Bastardo. A provocação cortava o ar como lâmina embebida em veneno. — E o heroísmo? Onde foi parar aquela bravura teatral? Bulianto confiou a você esse lugar, e em troca… você virou mais um prisioneiro.

    Cayan lançou um olhar indignado ao seu comandante, mas se conteve.

    — Ele é só um lunático, senhor. Não vale a pena ouvir.

    — Se concentre na batalha — murmurou Gladius sem virar o rosto. Faltavam apenas alguns passos para a porta. — Aquele homem tem o dom maldito de fazer você duvidar de si só com palavras. Não dê ouvidos. Continue andando.

    Mas a voz continuava a persegui-los como uma sombra que não aceita ser ignorada.

    — Achou que bastava resistir a alguns ataques? Que esse punhado de homens seria o bastante pra conter minha frota inteira? — Bastardo fez uma pausa, deixando o silêncio pesar. — Acha mesmo que eu não estou infiltrado entre os seus?

    Gladius inspirou fundo, o maxilar contraído. Sentia o olhar preocupado de Cayan cravar-se em suas costas, mas não respondeu. Seguiu em frente.

    — Ou será que acha que eu seria estúpido o suficiente pra ignorar o tabuleiro onde todos os Reis jogam há anos? — a voz dele agora soava mais baixa, mais grave. — Eu sou o Rei do Leste agora. Você me deve os joelhos, o pulso, a cabeça… e o coração. Eu comando este oceano. E você, Gladius… perdeu.

    Eles pararam. A porta estava ali — mas não estavam sozinhos.

    Uma figura solitária caminhava pela plataforma de pedra e concreto, vinda do interior da prisão. Os passos eram leves, despretensiosos, como se desfilasse por um salão de baile. Ele parou diante da porta e pousou a mão sobre a pedra lisa, como quem cumprimenta um velho amigo.

    Cabelos puxados para trás, roupas alinhadas, o mesmo ar presunçoso de sempre. Nada parecia incomodá-lo. Nem o caos ao redor. Nem a guerra que se aproximava.

    Era Hindoe.

    O maldito.

    — O que… você está fazendo aqui? — a pergunta escapou da boca de Gladius antes que pudesse contê-la.

    Hindoe ergueu uma sobrancelha, deu de ombros e esticou a mão para o lado, como se a resposta fosse óbvia demais para ser dita. Estava vestido como se fosse entrar em uma festa, e havia uma serenidade quase cínica em seu semblante.

    — Faz um bom tempo, não é? — Sua voz saiu grave, arrastada, com um certo prazer amargo. — Da última vez que nos vimos, eu estava sendo transportado num navio, e você me disse… “não faço prisioneiros”.

    Ele soltou uma risada curta e fria.

    — Difícil acreditar que você tenha sobrevivido tanto tempo sendo tão idiota.

    — Não quero saber quando você me viu, quero saber como… — Ele parou, sentindo um aperto no seu peito. — Não, você…

    Hindoe balançava a cabeça, a face de decepção estampada.

    — Quando eu sai daquele lugar, eu persegui você, Gladius. Queria saber tudo sobre você e sobre sua humilde casa. — Seus olhos percorreram a porta extensa, tocando até o teto, e ele soltou uma risada debochada. — É um lugar e tanto, admito. Mas, esqueceu que seus homens não são como esse lugar.

    Os olhos de Hindoe caíram sobre ele, mais pesados, mais estreitos. Gladius sentiu o aperto novamente.

    — Eles são todos feitos de moral, e isso pode ser comprado com as melhores promessas ou muito ouro. E quem diria que alguns deles seriam tão desprezíveis ao ponto de dobrarem seus joelhos tão facilmente, não é? Sabe o que eu fiz pra isso acontecer. — Ele estalou os dedos, brincando. — Um toque de mágica.

    Gladius ficou desnorteado. Não queria, não queria se virar, mas foi obrigado. Quando fez, haviam mais de trinta soldados abaixados, com seus joelhos dobrados e cabeças baixas. Não havia um pingo de culpa ou vergonha, apenas ganância.

    Nada do que… disseram para ele era verdade.

    — Sabe por que não o mataram antes disso começar? — a voz de Bastardo ecoou novamente. — Porque eu queria ver sua cara quando a traição batesse na sua porta. Eu queria ver como você se sairia com o desespero ao seu lado, Gladius.

    Cayan e Banners rapidamente se colocaram em posição para batalhas. Gladius, entretanto, sentiu o peso cair em seu ombro.

    — Tudo… foi…

    — Forjado — terminou Hindoe. — Não fique decepcionado. Você até que foi longe, mas eu conheço mais os corações dos desertores do que você conhece a bravura deles. Não fique tão apegado nisso. Logo, logo, você vai cair de joelhos também. Vivo ou moro.


    Dante sentia o vento gélido acariciar sua pele, não o frio natural do oceano, mas aquele que vinha da ponte de gelo construída por Tamires. A estrutura parecia viva, ameaçadora, como se carregasse o peso de uma maldição. Ele estava parado na proa do Nokia, os olhos fixos no horizonte congelado, atento aos sons, às sombras, às movimentações. Ao seu lado, Duncan parecia inquieto — e com razão.

    — Por que está esperando tanto? — a voz dele soou mais como um empurrão do que uma pergunta.

    Dante não respondeu de imediato. Respirou fundo, mantendo o olhar firme. Ele precisava de mais tempo. Mais um instante.

    — Essa invisibilidade não vai durar muito tempo — insistiu Duncan. — Podemos atacar de qualquer maneira.

    Dante apertou a mandíbula. Não era medo, tampouco hesitação. Era cálculo. Era o pressentimento de que o Bastardo ainda não havia revelado sua última peça.

    — Ainda falta algo… — murmurou, quase para si mesmo. — Está ouvindo?

    Duncan o encarou, confuso.

    Dante nem olhou de volta. Seus olhos estavam presos no vazio diante da ponte. Lembrava-se da forma como Bulianto morreu: não em batalha, não com glória, mas esmagado por uma sensação cruel de fracasso. O Bastardo não vencia apenas com armas. Ele minava a alma de seus inimigos. Fazia-os desabar por dentro antes de derrubá-los por fora.

    — Bastardo gosta de dar um golpe forte antes de terminar o serviço. Foi o que fez com Bulianto. Quebrou o coração dele. Fez questão disso.

    — E daí? — Duncan soava impaciente. Como sempre, direto.

    Dante sentiu os cantos dos lábios se curvarem em um sorriso discreto, uma expressão incomum nele. Mas havia um certo gosto em imaginar o Bastardo provando do mesmo veneno que sempre servira aos outros.

    — Qual deve ser o gosto de provar do próprio prato frio?

    Como se fosse uma resposta ao pensamento, o casco do Nokia começou a se abrir. Uma a uma, as portinholas deslizaram para os lados, revelando os novos canhões e janelas reforçadas. O som metálico ecoou como um prelúdio para o caos.

    Dante observou o equipamento recém-instalado. Havia algo de reconfortante em ver aquilo funcionando. Lembrava-se dos dias que passaram preparando tudo, dos cálculos, dos reparos, das dúvidas. Ver o Nokia armado até os dentes e silencioso como uma sombra era como ver um velho amigo de volta à ativa.

    — O revestimento parece que ficou bom — disse Duncan, avaliando. — Vai dar conta de, pelo menos, uns seis deles. Você não quer mandar seus navios primeiro? Antes de usar essa beleza aqui?

    Dante negou com a cabeça, sem pressa.

    — Não. Eu vou estar na frente.

    Virou-se ligeiramente, lançando um olhar para trás. E ali estavam — uma esquadra inteira. Mais de quinze navios alinhados, camuflados sob a mesma invisibilidade que cobria o Nokia. A visão era quase surreal: embarcações de guerra escondidas sob um manto invisível, como predadores de olhos fechados, esperando o comando para atacar.

    — Porque assim que a gente disparar… — murmurou, agora com o coração pulsando mais rápido — …eles vão aparecer. Como fantasmas surgindo das profundezas.

    Por um breve momento, Dante fechou os olhos. Inspirou o ar gélido, sentiu a brisa cortante nos lábios rachados. Pensou em Bulianto, pensou em todos que morreram tentando impedir o avanço do Bastardo e naqueles que ainda lutavam por isso. Aquilo era mais que uma emboscada. Era justiça em forma de estratégia.

    — E aí, Duncan… — abriu os olhos, animado ainda mais com o jogo — não vai haver onde ele consiga escapar.

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