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    Gladius avançava com passos firmes, mas algo dentro dele já cedia. A dor nos braços ainda pulsava, lembrando-o da luta recente, das forças que já não respondiam como antes. Cayan e Banners vinham logo atrás, atentos, silenciosos, mas era como se estivessem distantes. Como se tudo estivesse.

    A voz do Bastardo cortou o ar outra vez, vinda de algum lugar entre os ventos, ou talvez de dentro da própria mente de Gladius. Ele já não conseguia entender direito onde estava. O que tinha dito para Cayan não havia funcionado para ele.

    — Você ainda acredita que a lealdade é uma virtude? — zombou, a voz ecoando por entre os escombros de sua honra. — Bulianto morreu acreditando nisso. E veja só onde ele está agora.

    Gladius não respondeu. Não podia. As palavras pesavam demais. Continuou andando.

    — Ah, mas é claro — continuou o Bastardo, com aquele tom despreocupado, como quem fala de uma peça de roupa antiga. — Ele morreu com orgulho no peito, não foi? Isso deve valer algo, imagino. Levar os princípios para o túmulo, como se a morte respeitasse virtudes. Como se o oceano se importasse com isso.

    Não importava mais se Hindoe estivesse presente ou não, precisava chegar até o portão. Precisava chegar até lá.

    Gladius cerrou os punhos. Seu corpo tremia, mas não de frio. Era o que restava de sua convicção tentando resistir, tentando ficar de pé no meio dos destroços.

    — Você acha que a sua dor é sinal de força, Gladius? — o Bastardo sussurrava agora, mas era como se estivesse ao lado, falando em seu ouvido. — Não é. É o eco de uma alma quebrada. De um homem que confiou nos errados, que protegeu os traidores, que alimentou serpentes no próprio ninho.

    As imagens voltaram com violência. Os rostos dos que Gladius mais confiava. Alguns mortos. Outros… pior ainda. Ainda vivos. Ainda servindo ao inimigo. Ele lembrou da noite em que um de seus oficiais mais antigos passou informações para o Bastardo. Lembrou do olhar de arrependimento — falso ou não, nunca soube. E lembrou do peso que isso colocou sobre suas costas desde então.

    Isso era real? Ele viu alguém fazendo isso? Pareciam… memórias.

    Levou a mão a cabeça, agora doendo mais do que antes. Por que parecia que nada daquilo que lembrava era… de verdade?

    — Você ainda quer proteger esse lugar? — o Bastardo prosseguia. — Ainda acredita que existe algo aqui que mereça ser salvo? Seus soldados estão confusos. Seus aliados, frágeis. E você? Você é só uma estátua rachada prestes a desabar.

    Cayan disse algo atrás dele, mas Gladius não ouviu. A mente estava ocupada demais com o barulho de vozes antigas, promessas, juras de lealdade que agora pareciam piadas mal contadas.

    Por que Bulianto tinha feito um pacto se não iria cumpri-lo? Se continuasse de pé, então, poderia vencer as falsas promessas.

    — Eu sou o Rei do Leste agora, Gladius — disse o Bastardo, com gosto. — E você… não é nada além de um guardião de ruínas. Um homem feito de poeira. A única coisa que ainda carrega é a ilusão de que morreu por uma causa. Mas nem isso você conseguiu direito.

    Eles chegaram diante da porta da prisão. Gladius parou. Sentiu o gosto amargo da vergonha subindo pela garganta, mas engoliu em silêncio. A figura de Hindoe se formava à frente, como um presságio, mas Gladius mal conseguia focar os olhos nele. Tudo parecia turvo. Distante.

    Por um instante, pensou em Bulianto. Pensou nos momentos finais, nos olhos cheios de convicção e dor. Pensou no que aquela morte significava.

    Mas o Bastardo tinha razão. A morte carregava as virtudes, sim. Mas as enterrava. E ninguém cavava para buscá-las de volta.

    Gladius sentiu algo ceder por dentro. Não era apenas o corpo.Era o homem.

    E, pela primeira vez, por mais de algumas dezenas de anos, se perguntou se era possível erguer a cabeça para enxergar a si mesmo. Ele tocou a porta, mas sua mão escorregou com a falta de força nas pernas.

    Por um segundo, tudo pareceu escorregar. As forças nas pernas, o peso da respiração, até mesmo o som ao redor. Gladius sentiu que iria desabar ali mesmo, como uma muralha antiga que não aguenta mais o tempo.

    — Algumas das virtudes mais fortes… é a coragem.

    A voz não vinha de Hindoe, nem de Cayan ou Banners. Surgiu como um fio de memória, ou talvez um eco dentro do próprio espírito. Mas não era sua.

    Ele fechou os olhos. Queria aceitar aquilo. Estava pronto. A cabeça erguida, o pescoço exposto diante de Hindoe, como quem se oferece ao golpe final. Que ele terminasse o serviço. Que o libertasse da ruína interior.

    “Deixe-me encontrar… paz, ou esquecimento.”

    — Ouvi que as melhores promessas são aquelas que fazemos dentro da alma.

    Aquela segunda voz voltou, desta vez mais nítida. Vibrava com um tipo de calor que Gladius não sentia havia muito tempo. E quando veio novamente, parecia arranhar a estrutura invisível ao redor deles:

    — Dentro de nós. Feitas para nos elevar.

    Gladius ergueu a cabeça. Ainda respirava. Não estava quebrado — não completamente. Hindoe o observava, mas havia algo estranho em seus olhos. Não desprezo. Não superioridade. Apenas… um cansaço velho e compartilhado.

    E então, ela chegou.

    — Bastardo.

    O nome foi soprado como um vento quente cruzando um inverno rigoroso. Gladius sentiu a pele arrepiar. A temperatura do ar parecia ter mudado.

    — Deve ser um pouco triste ter que cuspir palavras tão ofensivas… quando sua principal motivação vem da morte de quem acreditou em você.

    A voz ecoava de todos os lados — invisível, mas presente. Cayan e Banners giravam o corpo, buscando algum sinal, algum alto-falante, algum truque. Mas ela estava em todo lugar. Dentro da própria Onkotho.

    — E no fim… quem diria que você traria consigo os que juraram lealdade ao homem — e negaram sua morte com a mesma boca que jurou fidelidade.

    Houve uma risada. Lenta. Grossa. O tipo de riso que não precisa de público para ser entendido. Gladius sentiu algo se mover dentro de si — um resquício de esperança ou vingança, não sabia ao certo.

    — Me disseram, certa vez, que eu deveria tomar cuidado com a minha lealdade.

    O rosto de Gladius girou devagar, como se ainda estivesse preso entre a dúvida e o instinto. Olhou os navios de Bastardo. Ainda estavam ali. Imponentes. Mas algo havia mudado.

    Na proa de uma das embarcações, a movimentação crescia. Um dos capitães da frota inimiga, o velho Glossário, corria em disparada pelo convés. Ele quase tropeçou ao chegar perto de Bastardo, apontando para os lados, esperando que pudessem entendê-lo, mas a expressão do Bastardo era a mesma que Gladius: confusão.

    E então gritou:

    — É o velho. — O som cortou o ar como uma espada. Todos congelaram. — Essa é a voz do maldito do Dante.

    E em seguida, a resposta definitiva:

    — Atirar!

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