Índice de Capítulo

    — Não deixem os navios serem destruídos!

    A voz de Glossário cortou o ar como um chicote, mas encontrou apenas o vazio, o eco, o olhar disperso dos outros capitães. Ele apertou os dedos no corrimão do convés, sentindo a madeira úmida e fria sob as mãos. A bruma não impedia a visão — era o medo que cegava.

    — Por que estão parados?!

    Os navios do Bastardo eram colossais, reforçados por armas, placas de ferro negro e homens treinados até os ossos. Eram superiores em tudo. Tática, força, moral… Pelo menos, até agora.

    Porque agora… o Bastardo se fora.

    Avançava sozinho para a prisão, ignorando o que deixava para trás como se seus homens fossem apenas peças de reposição.

    E aquilo quebrou algo.

    Glossário via. Ele sentia. Era o mesmo olhar que os ratos tinham antes de pular do navio.

    O vazio da liderança. A sombra da dúvida. A respiração irregular de um exército que perdeu a direção.

    Era a voz da covardia, sussurrando nas entrelinhas.

    Homens que se diziam leais… apenas quando o medo estava do lado deles.

    — Covardes… — a palavra escapou, mais amarga do que pretendia. Vários rostos se viraram. Um silêncio curto e cruel tomou o convés, como se até as ondas segurassem o fôlego.

    Mas Glossário não recuou. Que o encarassem. Que o odiassem. Ele dizia o que eles não tinham coragem de admitir.

    E então, uma voz que conhecia o bastante para detestar:

    — Você é corajoso o suficiente, então?

    Glossário virou-se instintivamente, mas Duncan já estava ali. Sentado casualmente sobre a borda do casco, como se o convés fosse a varanda de uma velha taverna. A barba grisalha trançada, os cabelos puxados para trás, e os olhos… olhos de quem já havia estado ali vezes demais.

    — Me perguntei, de verdade, por que você se juntou ao Bastardo — disse Duncan, sem pressa. — Mas agora vejo. Era por ambição. Só isso.

    Ele balançou a cabeça, os olhos seguindo a dança frenética dos navios que se quebravam ao longe.

    — Teve dias que achei que você fosse mudar. Dar um jeito na sua vida. Voltar pro continente, talvez. Ter uma família. Sua mãe queria isso.

    A menção dela bateu como um soco. Glossário cerrou os dentes. Não respondeu de imediato. Apenas firmou os pés no convés, como se precisasse se ancorar ali para não sair de si.

    — Eu não preciso de nada em terra firme — disse, a voz mais baixa, carregada de veneno. — Tudo o que eu quero saber está aqui.

    Duncan soltou uma risada curta, seca. Sem ironia, mas cheia de pesar.

    — Aqui? Nesse navio?

    Uma nova explosão iluminou o céu, tingindo o mar de laranja e fumaça. Gritos, estalos, madeira sendo partida como os ossos de um animal velho. Um dos navios aliados perdeu a direção e colidiu com outro, empilhando-se como carcaças à deriva.

    Duncan não se mexeu. Nem sequer olhou. Deixou que o som falasse por ele.

    E então, após um longo silêncio, murmurou:

    — Você ainda não sabe o que está procurando, não é?

    Glossário trincou a mandíbula. O peito inflava com raiva — não por ouvir mentiras, mas porque aquela frase o atingira em cheio, com a precisão de uma flecha bem lançada.

    — Ainda está perdido.

    — Não estou perdido. Estou procurando…

    Mais uma explosão lançou o navio a ser balançado. Glossário moveu o rosto para ver Tamires sendo confrontada por uma outra mulher. E elas se lançavam entre os navios, saltando e usando espadas e adagas para se matar.

    Houve também um abalo vindo de suas costas. Ele girou, vendo que dois Capitães seus foram soterrados por uma imensa onda de areia. E pôde ver o gigante Gregoriano, vindo da própria Singapura, com a espada larga apontada para um deles, rendido de joelhos.

    Não era diferente dos demais. Cada um dos navios de Bastardo, mesmo reunidos e organizados, foram acertados em cheio por um movimento apenas. Eles balançaram, mas Duncan nem pareceu sentir o impacto, sequer balançando.

    — Está procurando por algo que não existe em homens como o Bastardo. Você se perdeu no momento que vendeu sua habilidade, que muitos gostaria de cultivar para o bem, mas você teve medo, como me disseram, e cá estamos. — Ele abriu os braços. — Não fique chocado, eu ainda tenho contato com as pessoas de onde você veio.

    O maxilar do Glossário endureceu e ele apontou o dedo, gritando:

    — Não fale o que não sabe, velhote. Eu vim porque queria descobrir sobre o passado, não quero nada sobre reconstruir. Não quero saber dessas coisas estúpidas que vocês, idosos e caquéticos, gostam de mencionar. Por isso se juntou com aquele outro velho?

    Lentamente, um sorriso se moldou no rosto de Duncan. Era um sorriso perverso, mas sem malícia alguma.

    — Se fosse velho como eu, veria que Dante não é tão velho assim.

    — O que… quer dizer com isso?

    — Seus olhos enxergam o que você quer enxergar. Isso não é uma falha sua, é de todo o ser humano. O motivo de muita gente estar vinculada a achar a verdade do que aconteceu no mundo só diz que estão mais preocupados em manter ele como é hoje do que voltar a ser como era. O mundo sem regras é um caos, e um mundo caótico pode ser dominado por qualquer um. Por isso, você acha que vai achar o que quer aqui no oceano. Uma terra sem lei alguma, dominada por Reis e Rainhas que se dominam grandes apenas por conquistarem e oprimirem pessoas em suas próprias casas.

    Houve uma terceira e quarta explosão, dessa vez, alguém gritou para olharem para o alto. E eles fizeram. Havia três homens sendo enviadas como balas de canhão para os navios. Desceram como rapinas, explodindo em um dos navios do Bastardo e o deixando em frangalhos.

    A madeira do navio contorceu-se violentamente para dentro com um gemido agonizante, como se a própria embarcação gritasse de dor. Estilhaços voaram em todas as direções enquanto a estrutura cedia sob o impacto devastador. Muitos dos tripulantes, pegos de surpresa pelo ataque repentino, não tiveram sequer tempo para processar o que acontecia, quanto mais para buscar uma rota de fuga. Seus rostos congelaram em expressões de horror ao perceberem que estavam presos em uma armadilha mortal.

    A água salgada e gelada invadiu impiedosamente os níveis inferiores do navio, subindo com uma velocidade aterradora. As ondas engolfaram primeiro os pesados canhões de ferro, que afundaram como âncoras, e logo depois alcançaram os marinheiros desesperados que tentavam, em vão, escapar da morte iminente.

    Seus gritos foram abafados pelo rugido da água que preenchia rapidamente cada compartimento, cada corredor, cada esconderijo. O orgulhoso navio, antes símbolo de poder e domínio, foi reduzido a destroços flutuantes em questão de segundos, levando consigo as vidas de homens que, momentos antes, acreditavam estar no controle de seu destino.

    — Consegue ver a diferença entre eles agora? — a voz de Duncan cortou o ar como uma lâmina afiada, surpreendentemente clara e firme em meio ao caos ensurdecedor das explosões que continuavam a ecoar ao redor. Seus olhos, duros como pedras, fixaram-se em Glossário sem demonstrar qualquer traço de compaixão. — Seu Capitão foge como um rato assustado, enquanto o deles permanece na linha de frente, lutando ao lado de seus homens. Quando você veio para o mar, recebeu uma pergunta cuja resposta nunca compreendeu verdadeiramente. Agora ela está diante de seus olhos, escancarada como uma ferida aberta. Aí está sua resposta.

    Glossário negou com toda a força de seu ser, sacudindo a cabeça violentamente enquanto seu rosto se contorcia numa máscara de raiva e negação. Quis gritar, protestar, defender a honra de seu capitão e a sua própria, mas o destino tinha outros planos.

    Seus pés, antes firmemente plantados no convés, escorregaram traiçoeiramente em uma poça formada pela água do oceano que jorrava sobre o navio. Ele cambaleou, lutando para manter o equilíbrio, enquanto observava, com uma mistura de horror e incredulidade, seus subordinados correndo na direção do inimigo. Pareciam insetos hipnotizados, atraídos irresistivelmente para a luz que os consumiria.

    “Tolos”, pensava consigo mesmo, o desprezo amargo enchendo sua boca enquanto seus olhos permaneciam fixos em Duncan.

    Aqueles homens corriam para a própria morte, cegos por um senso de lealdade que ele jamais conseguira compreender completamente. E ainda assim, uma parte dele invejava aquela certeza, aquela convicção inabalável que os impulsionava.

    — Não passava de um covarde honrado — disse o velho para ele, cada palavra carregada de veneno e verdades que Glossário tentara enterrar por anos. — Apenas um covarde honrado com uma habilidade boa o suficiente para ser contratado, mas nunca valorizado. O bastardo fez de você um idiota, e você conseguiu provar com todas as suas capacidades mentais que realmente é um.

    As palavras atingiram Glossário como golpes físicos, cada sílaba penetrando fundo em sua carne, expondo inseguranças que ele julgava bem escondidas. Sentiu o sangue ferver em suas veias, a humilhação transformando-se rapidamente em fúria.

    — Pare com isso — ordenou, sua voz trêmula traindo a tempestade emocional que o consumia por dentro.

    — Parar com o quê? — Duncan retrucou, um sorriso cruel se formando lentamente em seu rosto enrugado pelo tempo e pelas batalhas. Seus olhos brilhavam com uma satisfação perversa ao ver o efeito devastador de suas palavras. — Não aguenta ouvir a verdade? Sua mãe ficaria desapontada. Ela, que sacrificou tudo para criar um homem de verdade, e não esta sombra que se esconde atrás de ordens e hierarquias.

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