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    Glossário olhou para o céu por um segundo, como se tentasse encontrar alguma linha reta no meio da fumaça. Mas tudo era torto, instável, como ele mesmo. A raiva apertava seu peito, mas havia também um nó mais profundo, um que Duncan sabia tocar.

    — Você fala como se me conhecesse. — A voz saiu firme, mas sem gritar. Ele não precisava disso. — Como se entendesse o que é ser deixado num templo mofado, cercado por velhos que só sabiam recitar leis de homens mortos… enquanto o mundo ruía do lado de fora.

    Duncan permaneceu em silêncio. Ele não interrompia. Sabia que Glossário não ia parar.

    — Cresci ouvindo que devia ser um estudioso. Um conselheiro. Um servo com um colar de ouro no pescoço, ajoelhado diante de reis que jamais empunharam uma espada manchada de sangue. Disseram-me que este era o meu lugar. Que minha mente é meu bem mais valioso.

    Ele riu, sem graça.

    — Sabe o que descobri? Que todo aquele conhecimento, toda aquela sabedoria… não valiam um único disparo de canhão quando a fome batia à porta. Quando os soldados do Oeste vinham cobrar impostos, traziam uma tocha na mão.

    Glossário voltou-se totalmente para Duncan agora. Seus olhos ardiam, não por fumaça, mas por lembranças que ele preferia esquecer.

    — Você fala da minha mãe. Diz que ela queria que eu tivesse uma família e uma vida comum. Talvez. Talvez até quisesse. Mas sabe o que ela nunca entendeu? Que a decepção dela nunca foi tão pesada quanto olhar para mim mesmo no espelho e ver um servo.

    O convés tremeu com mais um impacto distante. Outro navio se partia ao meio. Mas Glossário não desviou o olhar.

    — O Bastardo me deu algo que ninguém mais deu. Não foi respeito. Foi liberdade. Liberdade para usar o que sei e me tornar algo além de um espectador. Eu não me juntei a ele por ambição. Eu me juntei a ele porque era isso ou voltar a rastejar.

    Duncan o observava como quem vê um animal ferido tentando morder com a última força.

    — Talvez você ache que eu me perdi — continuou o Glossário. — Mas eu prefiro estar perdido com um leme na mão do que amarrado a um trono de papel, esperando ordens que nunca fizeram sentido.

    Houve um breve silêncio, quebrado apenas pelo som das ondas e o ribombar das armas.

    Duncan, por fim, soltou um suspiro.

    — Você tem o leme, garoto. Só não sei se percebeu que está navegando direto para o abismo.

    O glossário não respondeu. Seus olhos voltaram aos navios, à confusão crescente entre os tripulantes e ao caos nas velas. Se aquilo fosse um abismo… talvez fosse o único onde ele pudesse ser ele mesmo.


    A noite em que tudo mudou não foi marcada por trovões nem por presságios. Foi marcada por silêncio. Um silêncio espesso, sufocante. Como se até os deuses se recusassem a testemunhar o que estava prestes a acontecer.

    Glossário caminhava descalço pelos corredores de pedra úmida. O templo era vasto, mas frio, e cada passo seu ecoava mais fundo que o anterior. Ele mantinha a túnica apertada ao corpo, o suor escorrendo sob o pano escuro. Em suas mãos, tremendo quase imperceptivelmente, a Pedra Lunar pulsava com um brilho débil — um azul profundo, como se guardasse um oceano dentro dela.

    Ele a havia roubado há dois dias. Atravessou câmaras seladas, desviou-se de encantamentos velhos demais para ainda funcionarem, e enganou os Guardiões com uma cópia mal feita da chave ancestral. Uma loucura. Uma heresia. Mas era sua única chance.

    Dois sacerdotes estavam na sala da Vigília. Eram velhos, quase pedra viva, com olhos esbranquiçados e bocas que só se abriam para sussurrar o que o “Alto Círculo” mandava.

    Eles o notaram tarde demais.

    — Glossário? O que faz aqui a esta ho—

    Ele ergueu a Pedra.

    Não soube exatamente como ativá-la. Só desejou. Desejou a morte deles. Desejou a liberdade. E a Pedra respondeu.

    O ar ficou denso, como se algo ancestral atravessasse aquele espaço com pressa. A luz da Pedra se espalhou em linhas rápidas, como veias flamejantes sobre os corpos dos sacerdotes. Em segundos, eles secaram. A pele colou aos ossos, os olhos sumiram, as bocas abriram num grito que nunca chegou a sair. As túnicas caíram vazias sobre os restos de carne cinzenta. Nenhum sangue. Nenhum traço de luta.

    .

    Glossário caiu de joelhos, arfando. Sentia como se parte de si tivesse sido drenada junto com eles. Mas havia algo mais: uma excitação febril, um alívio perverso. Ele não sentia culpa. Sentia… poder.

    Ao se levantar, a Pedra já havia escurecido. Como se tivesse comido demais.

    E ele a escondeu, no fundo de um saco de viagem, e deixou o templo naquela mesma madrugada, levando apenas o necessário: a Pedra, seus manuscritos, e o nome novo que escolheria ao amanhecer.


    O Bastardo não respondeu de imediato.

    Ficou olhando para a Pedra Lunar como se ela ainda tivesse algo a dizer. Mas o cristal continuava mudo, morto. Sem luz. Era como encarar o olho vazio de um deus que já partiu. E, por um segundo, o rosto dele — tão acostumado ao desprezo e à provocação — se tornou algo mais quieto. Quase humano.

    — O nome foi um presente — disse ele, enfim, a voz baixa, sem o veneno habitual. — Um rótulo pregado nas minhas costas antes que eu pudesse aprender a andar. Antes de ter um navio. Antes até de saber o que era poder.

    Ele girou a Pedra entre os dedos, e por um breve instante Glossário pensou que ele fosse esmagá-la. Mas Bastardo apenas a colocou sobre a mesa improvisada, entre mapas e registros.

    — E você? — perguntou, sem olhar. — Matou dois sacerdotes. Roubou um objeto sagrado. Fugiu como um rato-de-esgoto. E depois disso tudo, ainda se ajoelhou pra mim.

    Glossário sentiu o gosto amargo na garganta, mas não desviou o olhar.

    — Melhor ajoelhar diante de alguém que escolhi do que viver acorrentado a uma fé que nunca foi minha.

    O silêncio entre eles ficou espesso. O som das velas ao vento, dos homens em volta preparando as cordas e as velas do navio, era distante demais para aliviar o clima.

    Bastardo se virou devagar. Os olhos de ambos se encontraram, carregados de passado e desconfiança.

    — Você acha que me escolheu, mas a verdade é que caiu aqui. Um acidente. Um erro que achei que poderia aproveitar. — Ele ergueu a Pedra Lunar novamente, agora como se a pesasse. — Essa coisa aqui… não serve mais pra nada. Assim como você, talvez.

    Glossário sentiu o sangue esquentar. Mas conteve. Bastardo queria vê-lo quebrar. Queria que ele se ajoelhasse de novo — não com o corpo, mas com o orgulho.

    Então, ao invés disso, deu um passo à frente e disse, com a voz firme, quase calma:

    — Se não sirvo pra nada, por que ainda não me jogou ao mar?

    O Bastardo sorriu. Mas não respondeu.


    — Eu não vou me curvar a ninguém que eu não queira. – Não importava quantas explosões ou gritos ecoassem ao seu redor. Não importava se os homens caíssem mortos ou se jogassem ao mar por medo ou desespero. Não importava se na mente dos mais fracos existia um mundo onde eles poderiam ser mais corajosos, a honra só existia se você ficasse vivo. – Não vou morrer hoje.

    Sua mão adentrou a roupa e puxou a Pedra Lunar escurecida. A mesma pedra que um dia esteve em posse daqueles que queriam prendê-lo as amarras religiosas e a fé. Ela tinha o tom escuro, exatamente a cor do fundo do oceano, e por um segundo, seu brilho clareou.

    A face de Duncan se contorceu na mesma hora.

    — E mesmo que ele morra hoje, encontrei meu caminho novamente. Porque já fui chamado de muitos nomes, velhote, mas Glossário foi o que eu me intitulei quando vim para o oceano. – Ele apertou ainda mais, seu brilho acendendo mais, radiando ao redor. – Só eu posso ler o mundo inteiro como a palma da minha mão.

    Duncan se afastou um passo, não por medo, mas por respeito. O brilho que emergia da Pedra Lunar não era constante — pulsava, como um coração antigo despertando em meio ao caos. Uma luz azulada, afogada em sombras, que iluminava o rosto de Glossário de baixo para cima, conferindo-lhe um ar espectral, quase profético.

    O velho corsário observou, em silêncio, enquanto os olhos de Glossário pareciam fixos em algo além dali. Não eram os mastros, os tiros ou os homens gritando. Era o passado. E era também o futuro.

    — Então você escolheu um nome. — Duncan murmurou, sem ironia, sem escárnio. — Isso… é mais do que a maioria consegue.

    Glossário não respondeu de imediato. A luz da Pedra tremeluzia entre seus dedos, e mesmo apagada por tanto tempo, parecia reconhecer sua convicção. O convés ao redor deles balançava com as ondas e o impacto distante dos canhões, mas naquele espaço estreito, tudo parecia suspenso no tempo.

    — Escolhi, sim. — ele disse, enfim, os olhos fixos na pedra como se ela fosse um mapa do mundo. — E esse nome não foi dado por reis, por padres, nem por guerreiros. Fui eu quem o escrevi. Com sangue, com fuga, com silêncio.

    A brisa trouxe o cheiro salgado do mar, misturado à fumaça da batalha. Gritos surgiam e desapareciam entre explosões abafadas. A guerra rugia às suas costas — mas entre os dois, havia apenas aquela pedra acesa, e o peso do que ela significava.

    — Eu não nasci para matar. — Glossário falou, quase em voz baixa, quase para si mesmo. — Mas também não nasci para obedecer.

    Duncan assentiu lentamente. Havia ali um fio de respeito entre inimigos. Ou talvez, entre duas gerações que sabiam demais sobre o peso de um nome.

    — Então não morra hoje. — disse Duncan. — Mas esteja pronto pra morrer amanhã, se ainda quiser carregar esse nome como uma bandeira.

    Glossário guardou a Pedra de volta ao peito. O brilho cessou quase como uma reverência. E ao encarar Duncan pela última vez antes de virar o rosto para a batalha, disse com firmeza:

    — Se eu cair, será como quem sabe onde pisa. Não como um cordeiro no altar dos outros.

    E partiu, ele queria o poder da Pedra Solar, seu principal objetivo. E no final das contas, sua mãe ou seu passado eram apenas uma pequena parcela do que ele realmente era. Se fosse necessário, então, mataria até mesmo essa pequena centelha de medo.

    Poderia mentir para Duncan, mas nunca para si mesmo.

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