Capítulo 370: O Filho do Erro (I)
Dante franziu o cenho ao se levantar. O corpo ainda latejava com os resquícios da luta, mas era a mente que pesava mais. Seus olhos recaíram sobre Gladius, escorado contra a parede em meio aos escombros e sombras. A respiração do velho era pesada, marcada por um esforço que não era só físico. Ele ainda tinha a expressão cansada de antes, marcada por perdas, dúvidas demais.
Mas algo havia mudado. Como se, finalmente, um dos grilhões invisíveis que o prendiam tivesse se rompido. Era a pressão de contar um segredo tão antigo.
Gladius ergueu o rosto devagar, os olhos fixos no teto rachado, e falou em tom baixo, mas firme:
— Não sei o motivo de Bulianto ter te escolhido, mas… você precisava ver isso. Precisava saber.
Antes que Dante pudesse responder, o solo tremeu, não como uma vibração comum, mas como se a prisão inteira estivesse sendo engolida por algo ancestral. As pilastras vibraram, o teto gemeu. Areia e pó se soltaram das paredes, caindo como chuva seca. O som era surdo, mas opressor, e o tremor durou mais do que deveria. Mais de cinco segundos de tensão comprimida.
Então, veio o fluxo.
Uma onda de Energia Cósmica, densa, viva, violenta, subiu do fundo da prisão como um grito soterrado. Dante sentiu a pressão nas costelas, fios invisíveis agarram-se em suas costelas, tentando puxá-lo para baixo, querendo afundá-lo com tudo que carregava.
Gladius virou o rosto, olhando diretamente para ele. Os olhos ainda estavam cansados, mas carregavam a convicção, e Dante não sabia o porquê.
— Precisa ir agora — ele disse. — Se ele tem a Pedra Solar… então precisa ser parado. De qualquer forma.
Dante assentiu, sem rodeios. Os olhos se estreitaram, e seu corpo pareceu se alinhar com a intenção. Nenhuma dúvida. Nenhum medo.
— Deixe comigo.
Sem dizer mais nada, girou nos calcanhares e partiu. O som dos seus passos ecoava pelo chão rachado, mas sua presença parecia silenciosa, como se ele já fizesse parte daquela ruína. Gladius o acompanhou com o olhar.
Era estranho ver um homem velho, de costas eretas e cabelos prateados, caminhar com tamanha presença. A postura não era altiva por arrogância. Era a naturalidade de quem carregava um poder que não precisava ser provado. Dante caminhava como um abismo em movimento.
Para Gladius, observá-lo era como encarar o próprio fim da luz. Havia escuridão em Dante — densa, sufocante — mas, no instante em que ele sorriu de canto, Gladius foi jogado para outro mundo.
Um mundo marinho.
Era como olhar para as estrelas refletidas num oceano profundo e escuro. Belo, mas cruel. Era ver o céu debaixo d’água, onde até o brilho mais intenso se desfazia nas ondas. Aquele homem carregava dois universos dentro de si.
— Senhor… — disse um dos soldados próximos, hesitante. — Tem certeza que ele vai ser capaz de vencer o Bastardo?
Gladius não respondeu de imediato. Respirou fundo, ainda sentindo o reflexo daquela dualidade que o havia puxado para dois mundos ao mesmo tempo. Um homem dividido. Metade empurrada por uma luz eterna que insistia em matá-lo. A outra, sufocada por sombras que exigiam silêncio.
Bulianto não era assim, pensou. Nenhum outro que conhecera era.
O chão voltou a estremecer, mas desta vez Gladius percebeu: não era a prisão que tremia. Eram suas mãos. Inconscientes. Assustadas.
Ele firmou o punho. Encarou o caminho pelo qual Dante seguira e, por fim, murmurou:
— Está tudo bem…
Porque mesmo que o mundo desabasse, mesmo que o inferno surgisse vestido de homem… aquele homem iria ao encontro.Como um titã caminhando em direção a um monstro. Dois filhos do abismo, condenados a lutar até que só restasse o silêncio.
O silêncio do bloco mais profundo foi rompido por um grito.
Não era um grito qualquer — era um som dilacerante, rasgado pela garganta de alguém que já não sabia mais onde a dor terminava e o medo começava. As correntes tremiam, os portões de ferro reverberavam, e mesmo os prisioneiros mais endurecidos recuavam até os cantos escuros de suas celas, apertando os olhos, como se isso fosse suficiente para bloquear o que estava acontecendo a poucos metros deles.
No centro do salão, o Bastardo permanecia imóvel.
Seu corpo flutuava alguns centímetros acima do chão, envolto em uma espiral crescente de Energia Cósmica. Ela não vinha dele. Pelo contrário — ele a puxava, a arrancava de dentro dos corpos à força, extraindo a alma de cada prisioneiro por um fio invisível.
Alguns homens ainda estavam vivos quando a energia saiu. Gritavam, suplicavam, debatiam-se nas correntes. Outros já estavam meio mortos, pálidos e vazios, olhos virados, com a boca tremendo sem som. A câmara ecoava num canto profundo e ancestral, e suas vozes se transformavam em uma opera de suplicas e pedidos.
O Bastardo não dizia nada. Apenas apreciava o momento.
Seu rosto estava parcialmente encoberto por sombras. Os cabelos colados à testa pela umidade do ambiente, os olhos semiabertos, como se visse algo além das paredes, além do presente. Ele respirava devagar, quase em transe. Como um sacerdote de um culto perdido, absorvendo o poder de um ritual proibido.
A cada alma sugada, a energia se acumulava em torno dele, formando uma espiral cada vez mais densa e brilhante. Era caótica, como se o universo estivesse sendo dobrado ali dentro, gota por gota, grito por grito.
Então, o corpo dele começou a mudar.
O braço direito se contorceu — os ossos estalaram, a pele se abriu como tecido fino, e em seu lugar surgiu uma massa líquida e incandescente de Energia Cósmica. Não era apenas energia bruta. Ela pulsava, viva, com textura e forma. Como se estivesse tentando criar algo diferente a partir da destruição.
A perna direita seguiu o mesmo destino. A estrutura física dissolveu-se em faíscas e fragmentos, até que restasse apenas aquela luz sólida, feroz, tremulante como fogo comprimido.
O Bastardo arfou, e um sorriso leve cortou sua expressão. Um sorriso calmo… perigoso.
— Eles resistem, mesmo sabendo que vão morrer — murmurou, a voz ecoando como um trovão abafado, distorcida pela vibração da energia ao seu redor.
Ele não estava ciente de que a prisão inteira estava tremendo pelo seu poder, degustando da própria destruição e da morte enquanto rotacionava com a Energia Cósmica. A vontade da Energia Cósmica era sua, e por ser sua, ele a comandava da forma que quisesse.
E então, Bastardo sentiu uma estranha pressão vindo da saída.
Ele girou para observar uma criatura se aproximando dele. A aura roxa emanava para os cantos, vindo da escuridão. Mas, o Bastardo já tinha visto aquele semblante mais vezes do que gostaria.
— Dante, Dante, Dante. – O nome mais parecia um elogio do que uma ofensa. – E pensar que viria tão longe apenas para salvar alguns poucos guardas.
Dante apareceu suspirando lentamente. Os rostos dos prisioneiros mudaram, havia esperança em seus olhos, suas faces contorcidas ganharam um pouco de luz.
— Ajuda… por favor… — murmurou um deles, mal conseguindo manter os olhos abertos. — O que… o que você está fazendo?
O Bastardo sorriu indo diante dele. Inclinou levemente o corpo. Seus olhos não tinham raiva, nem compaixão. Só havia fome.
— Silêncio — disse, com voz baixa e firme, com um sussurro emitindo uma fumaça gélida. — Você viveu além do que merecia.
Ergueu a mão direita.
A corrente de Energia Cósmica se manifestou de imediato, como uma serpente faminta saindo das sombras. Ela girou em torno do braço do Bastardo e, em seguida, lançou-se contra os prisioneiros. Não havia luz naquela energia. Era negra, densa, viva. Um vórtice pulsante de séculos de dor.
Eles começaram a gritar.
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