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    — Está vendo, Dante? — A risada que se seguiu foi saborosa, quase infantil em sua perversidade. — Meu plano sempre foi encontrar o verdadeiro local… aquele onde os antigos humanos faziam experimentos com os próprios humanos. E Bulianto os guardou para si. Foi tão egoísta comigo.

    A fala do Bastardo se misturava ao coro distorcido de vozes: homens, mulheres, gritos, súplicas, tudo sobreposto em um lamento gutural que fazia o chão vibrar.

    Dante sentiu um arrepio subir pela espinha quando percebeu que não eram apenas ecos: eram Energias Cósmicas sendo arrancadas dos corpos ao redor. E a sua… a sua também começava a ser puxada.

    Ele cravou os pés no chão, os olhos fixos naquela figura diante de si. Aquilo não era um homem. Não mais. A aura que envolvia o Bastardo era densa, pútrida, viva de um modo errado. Ele havia deixado a humanidade para trás. Agora, era uma criatura faminta, uma besta construída por dor e ambição.

    — A Energia Vital… é mais poderosa do que a Cósmica — murmurou o Bastardo, segurando o rosto de uma mulher trêmula dentro de uma das gaiolas. Seus olhos ardiam com fanatismo. — Anos. Anos para entender. Mas agora… agora eu posso realizar o impossível.

    Dante avançou um passo, os punhos cerrados. E então, se mexeu.

    Num instante, Bastardo foi lançado para trás como um boneco de trapo, voando até colidir com a parede do recinto. Mas a parede não quebrou. Uma barreira verde-esmeralda se ativara num instante, absorvendo o impacto com um brilho ofuscante.

    O Bastardo riu. Riu.

    Mesmo com o braço dilacerado, o peito aberto, a carne chamuscada… ele ergueu a mão ensanguentada como se aquilo fosse apenas mais uma etapa de seu espetáculo.

    — A dor… aquela que todos vocês temem — sua voz agora era um sussurro vibrante, distorcido, quase onírico — não significa mais nada pra mim.

    Dante observou, sem piscar, enquanto os músculos da criatura se retorciam e se recompunham. A Energia Cósmica fluía como um rio maldito, costurando os tecidos, reerguendo o braço numa tonalidade amarelada, grotesca, e inchando-o com uma força antinatural.

    Ele abaixou a espada. O som do metal raspando contra seu próprio braço ecoou como o fim de uma sentença. Um sorriso sutil surgiu nos cantos de seus lábios, enquanto o ar quente escapava de seus pulmões e virava gelo no instante em que tocava o mundo.

    A crosta de sua respiração congelava no ar.

    Dante inspirou fundo, o gosto da vontade e da determinação se misturando no fundo da garganta. Sabia que o que enfrentava ali não era um inimigo comum. E mesmo assim… não pretendia recuar. Não tinha porque recuar.

    — Já enfrentei outros monstros — disse Dante, erguendo a espada com firmeza, os olhos semicerrados como lâminas — piores do que um humano obcecado por viver para sempre.

    Deixou o aço brilhar por um instante sob as luzes trêmulas do recinto, então girou o punho e assumiu a posição de combate. Seu corpo se moveu com naturalidade, mas a tensão estava toda nos ombros, como se quisesse saltar contra o inimigo naquele exato segundo.

    — Já enfrentei até mesmo a personificação do que você sonha em ser. E, pra ser sincero… ela me dava mais calafrios do que você jamais vai causar. Então, Bastardo… se coloque no seu lugar.

    A resposta veio num tom surpreso e debochado.

    — Um humano vencendo a Energia Cósmica? — Bastardo entreabriu os lábios, como se fosse rir, mas uma ponta de inquietação passou por seus olhos. — Está falando do Mundo Espelhado? Hm… sim. Eu senti algo estranho quando estive lá. Uma distorção. Uma presença. Mas conheço as histórias… todas elas. Nada pode destruir aquele lugar.

    Ele deu um passo à frente, a voz agora escorrendo o veneno de sua própria personalidade quebrada.

    — Foi por isso que joguei seus colegas lá. Ah, o baque que foi para o anãozinho… e para a Sinora. Aliás… como está ela? — sorriu, impiedoso. — Lembro bem da picada. Um belo de um veneno. Letal, lento… doloroso. Aposto que sofreu.

    O mundo de Dante pareceu parar por um instante.

    Veneno?

    O nome de Sinora ficou suspenso em sua mente como uma lâmina prestes a cair. Ele piscou, mas não respondeu. Não podia. Não sabia que ela havia sido envenenada. Pomodoro cuidou dela pessoalmente, tratou dos ferimentos, trouxe a notícia de que estava fora de perigo… mas nunca mencionou isso.

    Ele não deve ter mencionado porque não era um problema. Confiava nele, precisava. As palavras de Bastardo nunca se tornariam uma dúvida, elas eram apenas destruição.

    O peito de Dante apertou, a raiva surgindo como uma maré escura e quente, semelhante ao que sentira quando encarou Moonlich no Farol. Aquela criatura deformada que falava como um rei e matava como um demônio. Ele também queria governar… também queria o mundo curvado aos seus pés, e faria isso pisando sobre cadáveres.

    Dante cerrou os dentes, os músculos pulsando sob a pele.

    Era sempre a mesma história. Homens que se achavam deuses. Que se alimentavam da dor dos outros para se sentirem imortais.

    — Se você correu até aqui desse jeito… Gladius deve ter contado sobre minha habilidade, não é? — Bastardo falava enquanto observava a própria mão, que se regenerava com precisão sobrenatural. Os tendões se uniam, os músculos se teciam sozinhos. Era como assistir a carne sendo moldada por uma força invisível — rápida, pulsante, viva. — A capacidade de me curar usando a Energia Cósmica. Uma dádiva que só cresce com o tempo… e com as vidas que carrego.

    Dante permaneceu em silêncio, apenas observando.

    — Ele deve ter contado sobre minha vida também — completou Bastardo, sorrindo de canto.

    — Mais de cem anos — Dante disse, a voz neutra.

    Bastardo soltou uma risada breve e sacudiu a cabeça.

    — Mais de cento e cinquenta, na verdade. Caminhei mais do que qualquer humano. Estudei, roubei, matei, sobrevivi. Atravessei continentes, Dante. Conheci o outro lado do mundo. Lá, eles se chamam de Divinos. — A palavra foi cuspida com certo desdém. — Mas mesmo para eles, eu era uma aberração. Foi… bem mais tortuoso do que imaginei.

    Enquanto ele falava, Dante não ouvia apenas as palavras — ele ouvia tudo. A respiração. O ritmo do sangue. O deslocar das articulações.

    Observava com atenção absoluta. O posicionamento da mão, a tensão na perna esquerda, o micro-ajuste nos ombros, os olhos que fugiam levemente para a esquerda antes de cada frase. O jeito como os fios de cabelo caíam com o peso da umidade e da energia no ar. Cada detalhe importava. Porque, contra alguém como o Bastardo, errar uma vez era o mesmo que morrer.

    Se fosse outro oponente… se fosse apenas mais um dos muitos que já enfrentara, bastaria um golpe limpo. Mas ali, não bastava ferir. A Energia Cósmica era o manto e a armadura daquela criatura. Ela não só curava — ela o reerguia como se fosse parte dele, como se tivesse sido moldada exclusivamente para mantê-lo vivo. Mas algo estava incompleto.

    Dante percebeu. O braço e a perna, sim, estavam perfeitos… mas o resto do corpo ainda resistia à harmonia. O ritual ainda não estava finalizado. Ele precisava de mais… precisava absorver mais pessoas.

    Ainda não era imortal. Ainda podia ser detido. Mas não ali. Não com todos aqueles prisioneiros ao redor. Não dentro de uma prisão selada por uma barreira esmeralda.

    Dante respirou fundo, sentindo o frio do ar queimar suas narinas. Seus pés se arrastaram levemente no solo. A pedra úmida e gelada sob suas botas respondeu com um rangido sutil. Ele precisava pensar com cuidado. Segurá-lo ali seria um erro. Mas fugir? Também era entregar as vítimas.

    A mente de Dante fervilhava de cálculos, possibilidades, riscos. Seus olhos não piscavam.

    O chão era frio.

    Chão?

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