Índice de Capítulo

    — Não precisa falar tão rápido, Talia — murmurou Render, os cotovelos apoiados nos joelhos, o corpo pesado no sofá ao lado de Linda. A esposa cruzava os braços, séria, como se tentasse manter um equilíbrio invisível entre os dois. A filha havia retornado e com ela, as perguntas.

    A cor preta do uniforme dos Comandos ainda a cobria como uma sombra. Diziam que combinava com ela, que realçava seu poder e presença. Mas, naquele instante, Talia não se importava com elogios. Ela queria respostas.

    — Eu sei o que vi, pai.

    Render suspirou, os ombros caindo como se o peso do passado se alojasse neles de novo.

    — Ver… e saber que é real são coisas diferentes. Não vou dizer que você está errada — disse ele, a voz grave — nem que imaginou coisas. Até porque você trouxe alguém que estava lá naquele dia.

    Ele levantou os olhos, encontrando a presença imóvel atrás dela. O Comandante Humber não parecia se intimidar. Estava de pé, braços cruzados, expressão relaxada. Foi o sorriso de canto, no entanto, que irritou Render mais do que qualquer palavra dita até então.

    — Está rindo por quê? Não contei piada alguma.

    — Não foi por isso — respondeu Humber, divertido. — É que ele se parece com você. Pelo menos… fisicamente. Seu filho, como imaginei, passou pelo processo da Energia Cósmica, não foi?

    Linda lançou um olhar de advertência para Talia, mas era tarde. A filha e a mãe já se entreolhavam, surpresas.

    — Foi como pensei — completou Humber.

    Dalia, a oficial que tinha autoridade para estar ali, permanecia sentada mais afastada, confusa, observando a tensão entre os três sem compreender os detalhes. Ela se remexeu na cadeira.

    — Do que estão falando? — perguntou, franzindo a testa. — O que houve com o Dante?

    — Bom… se minha memória não falha — começou Humber, lançando um olhar afiado a Render —, ele é mais velho do que eu. E, se não estou enganado, você só o submeteu ao processo porque ele não atingiu o potencial que você esperava.

    Talia virou o rosto rapidamente para o pai, chocada.

    — Está certo sobre isso — murmurou ela, antes que pudesse se conter.

    A boca se abriu num misto de incredulidade e revolta.

    — Meu irmão não atingiu…? Como assim? — Ela apontou para a porta aberta, onde o campo de bambus balançava com o vento. — Dante passou a vida naquele lugar tentando… tentando te fazer sentir orgulho!

    Linda se mexeu de súbito, erguendo a mão de forma ríspida.

    — Pare com isso agora.

    O gesto silenciou Talia por um segundo. Mas o susto logo deu lugar a algo mais profundo: medo.

    — O que você fez com o Dante, pai?

    Render respondeu com um tom seco, sem sombra de culpa:

    — Nada que um pai não faria para impedir que seu filho morresse na primeira oportunidade.

    Humber riu. Não era escárnio. Era riso amargo, o tipo que revela mais do que diz.

    — Agora tudo faz sentido. Dante nunca foi tolo. Pelo contrário — ele encarou Render novamente — entre os capitães, ele era o mais inteligente. Mas havia algo nele que não encaixava. Agora sei por quê.

    Render não se defendeu.

    — Fiz o que devia ser feito — disse, com dureza. — Dante nasceu com uma força monstruosa. Mas nunca teve controle. Então fizemos ele acreditar na realidade, em vez de encher sua cabeça de sonhos.

    — Queríamos que ele tivesse uma boa vida — acrescentou Linda, quase em um sussurro. — Mas a habilidade dele… está além do que desejávamos. Render não teve culpa. A culpa é minha. Quando trouxemos Dante a este mundo, só queríamos que ele se adaptasse, que tivesse um lar, uma infância.

    Humber negou com a cabeça, como se estivesse ouvindo uma velha história reciclada.

    — Vocês fizeram o mesmo que os antigos bastardos do Comandos. Tentaram criar um feto com duas habilidades. Mas Dante… — ele olhou para Linda — não nasceu com a sua. Foi com a dele, não foi?

    — Ele veio com a minha habilidade — respondeu Render, já irritado.

    Silêncio. Talia estreitou os olhos, tentando entender.

    — Mas, pai, sua habilidade é corporal. Você mesmo disse isso. Ensinou a ele.

    — E você acreditou? — Render soltou uma risada seca. — Minha habilidade é uma cadeia de técnicas físicas criadas para conter a própria força. Eu sou o limite. Mas Dante… Dante ultrapassou esse limite. Ele deveria ter herdado a ambientação da mãe com a minha estrutura, mas o que veio foi algo mais instável.

    — Um soldado perfeito para a linha de frente — comentou Humber. — E o que deu errado, Render? Ele superou até o que você era capaz de controlar?

    Render abaixou o olhar.

    — Dante nunca teve controle da Conversão Cinética. Algumas habilidades corporais são mais destrutivas do que outras. Descobrimos isso quando ele quebrou o braço da própria mãe. Tinha… dois anos. Estava chorando.

    Talia, em choque, olhou para Linda. A mãe desviou o olhar, mas a mão repousou instintivamente sobre o braço direito. O gesto era antigo, ela já o tinha visto inúmeras vezes. A cicatriz ali… sempre estivera ali. Mas ela nunca soube o porquê.

    Foi Dante.

    — Comandante Humber — disse Render, erguendo o tom — se seu filho fosse uma ameaça com um ano de idade, você o deixaria solto? Ou faria de tudo para impedir que ele ferisse alguém?

    Humber nada respondeu. O silêncio, agora, era pesado.

    — O que Dante fez para salvar vidas, o que ele fez por amigos, não chega perto do que ele é. — Render encarou o chão, e sua voz vacilou. — Ele é filho do meu erro.

    Talia sentiu o mundo girar.

    — Eu… eu bati nele – continuou Render. — Até ele desistir de ser alguém importante. Queria impedir que fosse um soldado. Que fosse um Comandante. Eu temia que se tornasse alguém que nem eu pudesse parar. Por isso… fiz o mesmo que meu pai fez comigo.

    Até então Dalia manteve-se quieta, mas encarou Humber.

    — A transição da Energia Cósmica, algo que não está datado dos registros do Comando, é isso, senhor?

    — Sim. Um ritual feito para que a Energia Cósmica consuma ela mesmo nos corpos. Era feito com os Felroz, muitos anos atrás, quando a Capital ainda era bem idiota em tentar mudar o curso das coisas. O problema desse ritual era que ele também selava qualquer evolução no corpo da pessoa. Ou seja, Dante nunca poderia ir além do que ele era. E pior, a Energia Cósmica consumia a si mesmo, criando um limite também na própria habilidade.

    A Oficial o encarou, mas sua mente não deixava as lembranças que teve de Dante irem embora. Aquela última vez, contra os Felroz, ele era o único capaz de bater contra as criaturas, mas nunca imaginou que… ele tinha sido forçado a diminuir seu próprio potencial.

    — A Energia Cósmica consome a si – disse Render. – Limite a habilidade, mas sua força bruta aumenta. A pele fica mais forte, seus sentidos melhores. Não fiz aquilo para tirar a vida do meu filho, fiz porque diferente de mim, ele não sabia do que era capaz.

    — Nunca esteve tão errado, senhor Render.

    Talia e Dalia encararam o Comandante.

    — Seu filho Dante sabe muito bem do que é capaz, mas você não contou tudo ainda. E nem quero saber mais. Aquele homem não vai desistir até voltar para casa e te provar que estava errado, e quando o fizer, como nós todos vimos, não vai ser porque você fez um favor a ele.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota